Ação Penal 470: jornalista afirma inocência de Zé Dirceu

Não há, nos autos da Ação Penal 470, conhecida como o julgamento do ‘Mensalão’, provas da existência de pagamento mensal a deputados federais da base aliada ao Palácio do Planalto. É o que afirma, com ao Diário da Manhã, o jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, autor de A Outra Tese do Mensalão (2012), Editora Manifesto.

Aos 72 anos, com 48 de profissão, Raimundo Rodrigues Pereira construiu sólida reputação no jornalismo. É fundador de Opinião (1972-1977) e de Movimento (1975-1981), semanários de resistência à ditadura civil e militar (1964-1985).

Nos anos de chumbo, uma reportagem de sua autoria denunciou as graves violações dos direitos humanos que encharcavam de sangue os porões do regime civil e militar. Em Veja, no ano de 1969, revelou as torturas a presos políticos. Com Mino Carta, então editor-chefe da revista da Abril.

Mensalão

Segundo ele, um estudo feito com as datas de entrada de dinheiro do ‘valerioduto’ nas contas de parlamentares ou de seus prepostos mostra não haver qualquer relação com as votações das emendas cujos resultados teriam sido comprados. “O que houve foi acerto financeiro para pagamento de campanhas eleitorais”, frisa.

“Duda Mendonça que, todo mundo sabe, recebeu mais de 10 milhões de reais pelas campanhas que fez para o PT. Roberto Jefferson, o autor da denúncia do mensalão, diz que recebeu do valerioduto 4 milhões para pagar despesas de campanha exatamente graças ao acordo que fez com o PT”, analisa.

Ele garante que não ocorreu desvio de recursos públicos do Banco do Brasil, como apontou o STF. “Não houve o crime básico que ela supõe, o desvio de dinheiro do BB, repassado para gastos do banco, seja de que forma, pelo Fundo de Incentivos Visanet, para a publicidade da venda de cartões de bandeira Visa”.

Raimundão, como é chamado, conta que houve uma interpretação oportunista da teoria de Domínio do Fato. “Mas, volto ao ponto: o problema da AP 470 não é este. Não se está, por exemplo, acusando José Dirceu de saber que o PT repassava dinheiro para Duda Mendonça, para o PL de Costa Neto, para o PTB de Jefferson”.

O ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu é inocente, dispara o editor de Retrato do Brasil, revista nacional de circulação mensal. “Do que ele é acusado na AP 470, de comandar uma quadrilha que desviou dinheiro público para comprar deputados, eu não tenho dúvidas de que ele é inocente”.

Leia a íntegra da entrevista:

Diário da Manhã: O mensalão, pagamento regular, mensal, de mesada aos deputados federais da base aliada existiu?
Raimundo Rodrigues Pereira: Nos autos da AP 470 não há qualquer prova disso. Ao contrário, na defesa do deputado José Genoíno existe uma ampla lista de depoimentos em contrário e um estudo feito com as datas de entrada de dinheiro do valerioduto nas contas de parlamentares ou de seus prepostos mostra não haver qualquer relação com as votações das emendas cujos resultados teriam sido comprados.

Houve dinheiro público nas movimentações financeiras?
Há, como dizemos na revista especial sobre o mensalão e nas duas grandes matérias que fizemos sobre as auditorias feitas no Banco do Brasil, provas de que o dinheiro da Visanet para ações de publicidade feitas pela empresa DNA a pedido do BB não era contabilizado de acordo com as regras do banco para a sua própria publicidade. Mas, como explicamos, isso decorria de decisão de 2001, que não tem nada a ver com o mensalão, mas se referia às conveniências da CBMP – Companhia Brasileira de Meios de Pagamento -, o nome real da Visanet, que agregava num só propósito o de vender cartões de bandeira Visa, concorrentes poderosos – como Bradesco e BB – que tinham interesses conflitantes. Por esse motivo, por decisão do BB e da CMPB em 2001, no governo FHC, portanto – não havia contrato assinado entre CBMP, BB e DNA. De outra parte, como mostramos, nas milhares de páginas das auditorias do BB que estão nos autos da AP 470 existe uma multidão de indícios de que os serviços de publicidade da DNA, para o BB, com o dinheiro da Visanet foram realizados. Você acha, nos autos, por exemplo, dezenas e dezenas de páginas de empresas que contabilizam a quantidade de vezes que um anúncio para a venda de cartões de bandeira Visa pelo BB foi veiculado nestas tevês de aeroportos ou foi mostrado nesta ou naquela cobertura de ponto de ônibus, nesta ou naquela rua, desta ou daquela cidade.

Não se trata de pagamento de despesas e acertos de campanhas?
Há inúmeras provas nos autos de que foi isso que aconteceu. O maior dos recebedores de dinheiro do valerioduto, por exemplo, foi o Duda Mendonça que, todo mundo sabe, recebeu mais de 10 milhões de reais pelas campanhas que fez para o PT. O Roberto Jefferson, o autor da denúncia do mensalão, diz que recebeu do valerioduto 4 milhões de reais para pagar despesas de campanha exatamente graças ao acordo que fez com o PT. O então vice-presidente da República, José de Alencar, disse em depoimento que negociou com o PT o pagamento de dinheiro para seu partido, PL, e nos autos estão as declarações de Valdemar Costa Neto, desse partido, de que recebeu o dinheiro em função desse acordo.

Qual é a prova do erro do STF apontada por Retrato do Brasil?
Nós mostramos uma lista da CMPB (Visanet) feita para ser entregue à Receita Federal, por seus advogados, mostrando que todos os serviços da DNA ao BB com os R$ 73,8 milhões supostamente desviados do banco tinham sido realizados e que a companhia tinha os recibos e provas materiais de que os serviços tinham sido feitos. Como o desvio deste dinheiro era a prova básica da existência do mensalão, o pilar da tese do mensalão é falso. A acusação, a Procuradoria Geral da República, e o relator da AP 470 tentaram mostrar que não existiam os empréstimos tomados dos bancos Rural e BMG e repassados ao PT por uma das agências com vínculos a Marcos Valério, a SMP&B. Para a PGR e o relator, os empréstimos eram falsos, tinham sido inventados para disfarçar sua origem, de dinheiro desviado do BB. Esse era o "grande crime da história da República". Uma quadrilha chefiada por José Dirceu, graças a seu grande poder, tinha desviado dinheiro público para comprar votos. Mas o desvio não existe. Há provas amplas de que ele não existe.

O dinheiro da Visanet não é público?
O dinheiro da Visanet nem passava pelas contas do BB. Mas o problema não é esse. O problema da AP 470 é que não houve o crime básico que ela supõe, o desvio de dinheiro do BB, repassado para gastos do banco, seja de que forma, pelo Fundo de Incentivos Visanet, para a publicidade da venda de cartões de bandeira Visa.

Os empréstimos bancários ocorreram?
Eles foram todos contabilizados pela SMP&B e pelo Banco Rural. A PF ouviu todos os que receberam o dinheiro, graças a essas listas e aos depoimentos de Marcos Valério e de Delúbio Soares que, são, essencialmente, coincidentes nesse ponto.

O crime seria, então, qual? Caixa dois?
Do que está nos autos está claro que foi. O problema é que a procuradoria e as forças políticas dominantes no Congresso naquela época da criação do mensalão, como dizemos, se voltaram para atacar uma ala do PT e enfraquecer o governo Lula.

Qual a sua crítica sobre a utilização da teoria de Domínio do Fato no episódio?
Acho que foi uma utilização oportunista. É óbvio que quem é chefe de uma organização com grandes poderes tem sempre alguma responsabilidade com os malfeitos dessa organização. Mas, volto ao ponto: o problema da AP 470 não é este. Não se está, por exemplo, acusando José Dirceu de saber que o PT repassava dinheiro para Duda Mendonça, para o PL de Costa Neto, para o PTB de Jefferson. Qualquer criança, após um mínimo de informações, deduziria que Dirceu deveria ser responsabilizado de alguma forma pelo caixa dois do PT. Mas não é disso que se trata.

José Dirceu não tinha ascendência sobre José Genoíno, Delúbio Soares e Marcos Valério?
Conheço razoavelmente o PT. E o seu grande defeito é ser um partido de facções. Do que sei e de depoimentos indiretos que colhi, junto ao próprio presidente Lula, na época, Delúbio Soares – pessoa pela qual, aliás, tenho grande respeito, tendo em vista sua militância, sua coragem e firmeza demonstrada nessa história – era mais ligado ao presidente do que ao seu chefe da Casa Civil.

O mensalão teria sido um "julgamento de exceção"?
Meu qualificativo é outro. Foi um julgamento medieval. Naqueles tempos não se precisava, primeiro, provar o crime, e só depois ir em busca dos possíveis culpados. Se pegava a bruxa e se torturava, para que ela confessasse os crimes que teria cometido. Se ela não confessasse nenhum crime depois de torturada, como disse num de seus livros o irônico cientista Carl Sagan, aí sim é que estavam provadas suas infames práticas, pois só quem tivesse um pacto com demônio teria aquele tipo de resistência. A procuradoria e o ministro Barbosa esqueceram o princípio básico que separou a justiça medieval da Justiça surgida do Iluminismo: provar a materialidade do crime em primeiro lugar. No caso, provar o desvio de dinheiro do BB.

À sentença cabem recurso e embargos declaratórios?
Não sou jurista para responder sobre aspectos formais dos recursos. Mas acho que algum tipo de revisão dessa sentença tem de ser possível.

Condenado, José Dirceu tem mais onde recorrer?
Acredito que sim.

É possível acionar a Corte Interamericana de Direitos Humanos?

Há muita gente dizendo que sim.

Não seria necessário um duplo grau de jurisdição para José Dirceu?
Foi o que defenderam vários advogados no julgamento, como o ex-ministro Marcio Thomaz Bastos. Foi essa também a opinião do ministro revisor e do ministro Marco Aurélio.

Qual o comportamento da mídia na cobertura do caso?

O dos grandes jornais e revistas conservadores foi muito ruim. Como disse um de seus destacados colunistas no início de 2012: o Supremo deveria julgar a AP47 "com a faca no pescoço". A faca era e foi essa mídia.

José Dirceu é inocente?

Do que ele é acusado na AP 470, de comandar uma quadrilha que desviou dinheiro público para comprar deputados, eu não tenho dúvidas de que ele é inocente.

Qual a sua análise sobre a abertura de investigação da suposta participação de Lula?
Na edição com que celebrou a condenação de José Dirceu como chefe de quadrilha, no final do ano passado, a revista Veja como que cobrou da oposição que ela agora deveria ir atrás de Lula, coisa que não teria feito em 2005 por covardia.

Em resumo, o que traz de revelação a edição especial de Retrato do Brasil, de abril, sobre o escândalo?
Nós trabalhamos muito na investigação do mensalão, a Lia Imanishi, que começou a investigação, no segundo semestre de 2011, dirigida por nosso editor, Armando Sartori, e depois eu pessoalmente, também, já no segundo semestre de 2012, também como repórter. Como se diz, nós ralamos muito até descobrir o que era mesmo a história que estávamos investigando. A chave foi a localização do Sávio Lobato, advogado de Henrique Pizzolato, em Brasília. Pizzolato era o elo fraco da corrente de defesa dos petistas. Ele tinha sido abandonado por grande parte dos companheiros. Quando ouvimos pacientemente o Sávio e depois o Pizzolato, por muitas e muitas horas, quando descobrimos, inclusive, o trabalho da companheira de Pizzolato, Andrea, que conhece os autos mais do que ninguém, descobrimos a falsidade da acusação do desvio de dinheiro público.

Fonte: Diário da Manhã