“O poder passa, ficam as mudanças que deixamos”, diz Carvalho

Gilberto Carvalho frequenta o primeiro escalão do governo há dez anos. Em entrevista, admite ter envelhecido com a intensidade da rotina, mas dá graças a Deus por estar ali. “O poder passa, ficam as mudanças que deixamos para o país”.


foto: Agência Brasil

Nos oito anos de mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, Gilberto Carvalho foi seu chefe de gabinete. Desde a posse de Dilma Rousseff, é ministro da Secretaria-Geral da Presidência. Nos últimos dez anos, não há decisão na República que tenha sido tomada sem ter passado em sua órbita. Um dos mais importantes canais de interlocução entre o Palácio do Planalto e os movimentos sociais, Carvalho tem rotina intensa, à qual atribui, com bom humor, um envelhecimento mais acelerado de 2003 para cá. O agendamento desta entrevista mesmo foi uma novela que se arrastou por meses, já que os editores reivindicavam pelo menos uma hora de gravação. “Mais de uma hora de conversa eu não tenho nem com a Dilma”, brincava. Mas a conversa aconteceu, no último dia 5 de fevereiro, em seu gabinete.

O ministro é cristão fervoroso, diz que o ritmo intenso de trabalho não o afasta da convivência afetiva com os filhos e que é grato pelo privilégio de viver no centro das decisões sem jamais ter se deixado levar por vaidades dos ritos de poder. Afirma que não eram apenas interesses mesquinhos o que impedia governantes anteriores de promover as mudanças sociais ocorridas no país na última década. Faltava-lhes, acredita, a sensibilidade, a sabedoria e a coragem do operário de nove dedos e da ex- guerrilheira. Gilberto Carvalho revela ver na reta final deste mandato de Dilma o “horizonte” de sua missão: “Eu diria que sou um homem cansado, mas muito feliz, com muita vontade de continuar lutando. Para isso eu não preciso estar aqui”.

Revista do Brasil: O senhor está no Palácio do Planalto desde 2003, como chefe de gabinete do presidente Lula e agora ministro da Secretaria-Geral. Há diferenças entre o atual governo e o anterior?

Gilberto Carvalho:
O governo da presidenta Dilma, no essencial, tenta consolidar aquilo que já veio se tornando uma cultura, uma prática de governo na gestão Lula. Na economia, com a questão do crescimento com distribuição de renda, o mote essencial e uma fixação é acabar com a miséria. O programa Brasil sem Miséria, assim como o Brasil Carinhoso, tenta até 2014 fechar a tarefa iniciada no governo Lula. Há ainda toda a incrementação do programa ligado ao Pronatec, à educação. O ex-presidente Lula teve um grande trabalho de expandir o ensino universitário; Dilma faz agora um trabalho muito forte com as escolas técnicas, começado com Lula. E, assim por diante, área por área, estamos conseguindo cumprir uma missão que eu digo que é da nossa geração: devolver a dignidade ao povo. Eu fui ontem (4 de fevereiro) com a presidenta Dilma inaugurar um laticínio, uma cooperativa de agricultores assentados no norte do Paraná, e vi a alegria daquelas pessoas, a maneira como acolhem a presidenta. E fiquei pensando: qual governo reuniria, dentro de um assentamento rural de trabalhadores do MST, a presidenta da República, três ministros, três senadores, o presidente do BNDES, o vice- presidente do Banco do Brasil e mais uma série de funcionários altamente qualificados para celebrar com os sem-terra? Este é o grande sinal que estamos dando: é o povo retomar sua autoestima, acreditar que é participante da construção de um país.

Revista do Brasil:
O senhor citou o MST. A presidenta esteve com a CUT no dia seguinte. Como o senhor, interlocutor do governo com os movimentos sociais, vê essa relação? Está enfraquecida?
GC: Há uma mudança de estilo, mas não de linha. Hoje, vendo a presidenta conversar com a CUT de uma maneira carinhosa, de igual para igual, pensando juntos um programa estratégico, ontem com os sem-terra, e em todas as audiências e reuniões que tivemos aqui no Palácio, eu devo dizer: embora mude o estilo, a linha de trabalho, de ouvir os movimentos e permitir sua participação, de maneira alguma foi alterada. Acho que ela até deu algum salto em termos de organização. Por exemplo, a consolidação do compromisso da cana-de-açúcar com o setor sucroalcooleiro, a criação do compromisso do trabalho decente na construção civil, as mesas de negociação que continuamos tendo aqui.

Revista do Brasil: No ano passado, o governo conviveu com uma série de greves no funcionalismo. Com o Orçamento limitando a margem de manobra, como o governo se prepara para as próximas demandas salariais que certamente vão ocorrer?
GC: Tivemos durante o governo Lula um crescimento econômico grande do país, que nos deu folga e possibilidade de fazer uma correção na situação salarial dos trabalhadores públicos federais. Tínhamos de restaurar a dignidade desses trabalhadores e refazer seu poder de compra, muito aviltado nos governos passados. Demos um salto. Houve uma recuperação salarial importante. Nos próximos dois anos, vamos ver a evolução orçamentária, a evolução da economia. O governo não pode cometer irresponsabilidades, sob risco de mais tarde ter uma repercussão negativa para os próprios funcionários. Estamos trabalhando forte para a regularização da Convenção 151 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que determina a negociação com os servidores.

Revista do Brasil: Após as eleições da Câmara e do Senado, parlamentares petistas pregaram a necessidade de uma reforma política. Essa será uma bandeira também do Executivo?
GC: Não dá para ter partidos sérios no futuro se não tivermos a coragem de realizar a reforma política, particularmente com a questão do financiamento público e com o voto em lista. Eu considero essencial que o governo apoie essas medidas. Sempre digo que o financiamento privado de campanha é um dos grandes fatores de corrupção. Então, espero que todos os partidos da nossa base, todos os partidos sérios do Brasil, joguem muito peso nessa campanha. O governo da presidenta Dilma vai apoiar esse processo.

Revista do Brasil: Durante boa parte do governo Dilma houve uma tentativa da oposição e de parte da imprensa de “cooptar” a presidenta e de afastá-la do ex-presidente Lula?
GC: A gente que vive aqui no dia a dia fica olhando para essas coisas com uma certa perplexidade. Um dia, por exemplo, um jornalista me ligou dizendo que Lula seria candidato em 2014 e que Dilma poderia se juntar a Eduardo Campos contra Lula. Eu respondi: manda internar quem disse isso, com todo o respeito aos que vivem internados. Não vamos brincar. Estou cansado de ver gente que tem plantado informações na tentativa de separar Dilma de Lula. Eu vivo aqui há dez anos e conheço a presidenta Dilma desde quando ela era ministra. Nunca vi uma relação política entre duas pessoas tão madura, equilibrada, respeitosa e carinhosa como a dos dois. Não há hipótese nenhuma de haver uma separação ou um racha entre os dois. Essas plantações são um pouco parte desse jornalismo que vive excessivamente do colunismo, e não do noticiário sério e do tratamento democrático da informação.

Revista do Brasil: A democratização da comunicação no Brasil é bandeira de boa parte da sociedade e um clamor das bases do PT. Essa é uma bandeira também do governo?
GC: O governo não tem como não apoiar qualquer iniciativa de democratização dos meios de comunicação, sobretudo no que diz respeito ao acesso aos meios, dar voz àqueles que não têm. Sobre o projeto que foi elaborado ainda no tempo do ministro Franklin Martins, a presidenta está analisando. Eu não quero me arvorar em porta-voz dela nessa questão. Muitas vezes falta iniciativa, como essa de vocês, de montar uma revista, de montar uma rede de rádio e de televisão. Os setores populares perderam muito tempo na história. Católicos e evangélicos montaram redes que são legítimas e disputam a opinião pública, assim como o poder econômico que expressa o pensamento das elites montou os grandes jornais, TVs e outras mídias. São donos, e controlam, naturalmente, quem fala e quem não fala. E contratam quem eles desejam que expresse seus pensamentos. Faltam no Brasil veículos que possam expressar a imensa voz das maiorias. Eu fui a um evento com a presidenta Dilma maravilhoso. Nos jornais de hoje nada expressa aquilo que foi ontem, a valorização dos assentados, devolver autonomia a pessoas que foram subjugadas a vida inteira, moraram debaixo de lona e hoje são produtores e estão construindo a riqueza de uma região. Nada disso foi disponibilizado como informação ao cidadão.

Revista do Brasil: A presidenta Dilma abriu caminho para mudar a relação do sistema bancário com o setor produtivo e os consumidores? Ainda pode avançar nesse enfrentamento?
GC: O cuidado de um governo é não hostilizar nem eleger inimigos. Seria muito fácil você eleger inimigos e dizer: bom, esse aqui vai pagar o pato. O que a presidenta Dilma fez foi uma medida natural e necessária para romper a barreira para o crescimento que nós tínhamos no Brasil. Inclusive diante da crise internacional, os juros eram obstáculos absurdos para podermos continuar crescendo. Com cuidado, pedagogicamente e com muita comunicação, fez a mudança. Trabalhou forte os bancos estatais para a questão do spread. E não fez nenhuma determinação, nenhum decreto, mas um processo de indução para que o sistema financeiro se adapte ao padrão internacional. A mesma coisa o setor elétrico. Se você já tinha pagado todo o investimento das usinas, por que agora iria renovar o contrato e deixar da mesma forma, não mexer nas tarifas? Mas esses setores têm os porta-vozes deles, os famosos especialistas, que vêm anunciar que vai ter apagão, que o Brasil não vai crescer mais. Falta a gente ter voz para dizer: esses caras estão falando isso porque representam tais e tais interesses.

Revista do Brasil: Como o senhor vê hoje a correlação de forças dentro da Igreja Católica? Houve uma guinada à direita? A Teologia da Libertação estaria em decadência?
GC: É inegável que houve uma mudança no papel da Igreja. Sob a ditadura, os movimentos sociais não tinham como se pronunciar, não havia partidos livres nem liberdade sindical e de expressão. A igreja foi um espaço sagrado e necessário para que a gente pudesse reconquistar a democracia. Tivemos dom Hélder Câmara, dom Pedro Casaldáliga, dom Tomás Balduíno, uma série de saudosos bispos que desempenharam papel fundamental. Na Pastoral Operária, fazíamos muito o que o movimento sindical não podia fazer. Foi natural que, com o advento do movimento sindical mais livre e mais combativo depois de conseguirmos derrotar a ditadura, a Igreja deixasse de ter esse protagonismo.

Mas parece ter havido uma mudança em relação a valores sociais que acaba influenciando os rumos da política. É inegável também que houve uma política orientada por Roma – pelos papas João Paulo II e Bento XVI – que determinou um recuo da igreja, o que eu acho lamentável. Acho triste. Com esse recuo, a igreja perdeu a oportunidade de vivenciar na América Latina em geral e no Brasil em particular um processo de construção de uma sociedade muito mais solidária e com valores muito mais orientados pelo cristianismo. Se é verdade que não se tem mais de combater a ditadura, é tão verdade também que temos de combater o individualismo, o consumismo, a cultura da violência. Ao perder legitimidade social, a igreja perde a capacidade de influenciar nesses temas. E poderia estar influenciando muito mais.

Revista do Brasil: O senhor é muito próximo do ex-presidente Lula. Como vê a volta dele ao jogo político?
GC: Ele tem ainda uma missão grande, no sentido de animar e mobilizar a sociedade. Quem sabe um dia ele volte à Presidência da República, talvez em 2018, a gente ainda não sabe. Ele é hoje referência na América Latina, na África e no mundo. Então, tem muita coisa ainda a contribuir, vai ser muito importante para a gente, para a presidenta Dilma e para o nosso projeto.

Revista do Brasil: Como o senhor resumiria esses dez anos de PT no poder?
GC: Eu tentaria sintetizar dizendo que o PT – e aí não vai nenhuma arrogância – mudou o Brasil. A classe trabalhadora no Brasil serviu sempre para votar, para ser operário, soldado, e ponto. Os trabalhadores podem governar. Tivemos a sorte de esse cara ser um cara genial – um dom de Deus, eu insisto –, e nós pudemos então começar a mudar as coisas no Estado que nenhum dos grandes doutores tinha se dado conta. Por que esses caras não tinham enxergado uma coisa tão óbvia como os recursos que estavam parados no BNDES, na Caixa Econômica, no Banco do Brasil e no FAT e só serviam para pagar os juros da dívida? Eu me recuso a imaginar que era apenas má-fé, compromisso com a banca. Eu não sei o que faltou para esses caras tão ilustrados verem que bastaria fazer movimentar essa máquina do governo. Foi preciso ter inteligência e muito amor no coração para dizer: não, eu vim de lá e vou mudar aquilo lá. Essa é a essência do nosso governo. É claro que erramos muito e poderia ter sido melhor. Mas na somatória… Basta ver a presidenta Dilma andando na rua. Ou, então, experimenta colocar Lula ao lado de Fernando Henrique na Avenida Paulista (risos).

É simples assim. O povo entende e conhece, mais do que os sabichões imaginam, quem fez o bem e quem poderia ter feito muito mais. Por isso nosso zelo para que esse nosso projeto possa continuar. Quando, mais tarde, olharmos para os nossos netos e contarmos a eles o que aconteceu nesse tempo, vamos poder dizer que a nossa geração teve o orgulho de combater a ditadura, de construir a democracia e de abolir – na essência, vamos ter clareza – a miséria no Brasil.

Revista do Brasil: Como é sua rotina, a convivência com suas filhas pequenas? Como foram estes últimos dez anos para o homem Gilberto Carvalho?
GC: O que aconteceu foi que envelheci pra caramba (risos). A vida aqui é muito intensa, e eu já estou vendo o horizonte da minha missão agora no final deste governo da presidenta Dilma. Se eu ficar até o final, vão se completar 12 anos de Palácio do Planalto.

De um lado, agradeço muito a Deus o privilégio e a honra de ter podido trabalhar todos esses anos com Lula e com Dilma. Também sou grato ao partido, porque, se não fosse o PT, a bondade e a compreensão dos amigos, eu não estaria aqui. Eu me considero um homem muito feliz. Tenho cinco filhos: três do primeiro casamento e duas meninas adotivas, de 7 e 9 anos, que vieram como presente de Deus, há três anos. Elas são a alegria de casa. Dão uma trabalheira danada. Às vezes eu saio daqui morto, à noite, e tenho de contar historinhas, porque é sagrado a gente contar uma história antes de elas dormirem. Procuro, mesmo na loucura disso aqui, ter atenção com a família. Não dá para separar a militância política da sua vida. Da sua autenticidade, da sua camaradagem, de você não se deixar levar pela vaidade. Quando cheguei aqui, em 2003, e entrei na minha sala, fiz dois pedidos a Deus. O primeiro, para que a gente não se desviasse do ideal político e ético que nos trouxe até aqui, que é cuidar dos pobres, cuidar dos excluídos, que é o estabelecimento da justiça e da dignidade para o nosso povo. O segundo, para que a gente não se deixasse levar pelos ritos do poder, pela vaidade. Tudo isso aqui passa, o poder passa. O que vai valer e durar é a rede de fraternidade e comunhão que construirmos ao longo desses anos e o serviço que prestarmos ao povo. Então, é isso que a gente procura viver aqui. Tenho uma equipe maravilhosa. Tenho o apoio da presidenta Dilma. Eu diria então que sou um homem cansado, mas muito feliz, com muita vontade de continuar lutando até o último dia da minha vida. Para isso eu não preciso estar aqui.

Fonte: Revista do Brasil/Rede Brasil Atual