Paulo Fonteles Filho: A segunda morte de Carlos Alexandre Azevedo

Por vários dias tenho pensado em ti, Carlos Alexandre. Teu desaparecimento atingiu-me numa tranquila e chuvosa tarde de domingo, daquelas preguiçosas, silentes, onde tudo, o tempo e as pessoas parecem imperturbáveis.

Por Paulo Fonteles Filho*

Através das redes sociais é que soube, enfim, que havias como dizem alguns jornalistas, enfrentado tua segunda morte. A primeira, em 1974, onde te submeteram mesmo com um ano e oito meses a infames torturas. Infante levastes choques elétricos, tivestes o maxilar quebrado, passastes fome por dias, além de outras sevícias próprias daqueles terríveis dias onde os verdugos comandavam não apenas os destinos de nossa humanidade, mas decretavam como professores de deus, a morte e a última morada de toda uma geração de brasileiros.

A fina navalha do tempo cortou-me a carne e desde então, estiolado, convivo com a madrugada em que partistes, solitário, com as digitais do carrasco em teu corpo adulto. Fora a forma de libertar-te daqueles porões.

Dias depois fui visitar teu pai, Dermi Azevedo. Conheci um homem que, mesmo devastado pela tua ausência, respirava a impune convicção de que, mais do que nunca, é preciso travar a contenda em defesa da memória dos que lutaram para emancipar o país brasileiro, em definitivo, dos tempos da cadeira-do-dragão, dos estreludos generais que têm as mãos sujas de sangue, do covarde silêncio como regra e dos calam sobre teu corpo, em tua morte, como ensina a canção de Milton Nascimento.

Sento-me nesta madrugada porque, também, fui contigo por estes caminhos onde, dentro da gente, há uma indignação atroz na qual convivemos por todos os dias, desde a mais tenra idade até a maturidade. São os sucessivos dias, milhares deles, em que o peito tinge-se em luta, a luta pelas estradas a seguir, se nos quedamos e ficamos de joelhos ou se nos levantamos como nossos pais, e tomamos a espada em nossas mãos. Na brutalidade da somatória de todas as guerras estamos como rudes e ensangüentados soldados, combatendo os lobos febrentos, os mordaceiros da luz e os violadores de crianças.

Teu grito, último, denuncia.

Meus pais, como os teus, também foram presos e barbaramente torturados. Minha mãe, grávida, levou chutes na barriga crescida e por meses fora brutalizada no Pelotão de Investigações Criminais do Ministério do Exército em Brasília. Nasci no antigo Hospital da Guarnição, hoje Hospital das Forças Armadas (HFA), em fevereiro de 1972.

Tenho em mim, Carlos, a memória do ventre.

Sinto as reminiscências da carne violada e o heroísmo de Hecilda que, mesmo em cativeiro teve a ousadia de peitar o bandidesco general Antônio Bandeira. No dia em que vim ao mundo, derrotados por não terem nos matado e jogado num cemitério como indigentes, como fizeram em Perus e no Araguaia, cunharam a célebre “Filho desta raça não deve nascer”. Depois atrasaram a entrega à família porque, segundo a memória de minha avó, não haviam encontrado algemas que davam em meus pulsos de recém-nascido.

Uma das primeiras coisas que soube sobre mim mesmo é que havia nascido na prisão e de que meus pais eram comunistas.

Nesta hora reflito sobre eles, poderiam ter se acomodado. Mas não, voltaram a estudar e ao combate, depois de enquadrados pelo artigo 477 (cuja autoria deve-se ao fascista Jarbas Passarinho) que preconizava que estudantes condenados por “terrorismo” não poderiam retornar aos estudos por três anos. Refeitos, minha mãe segue a carreira acadêmica como professora de Ciência Política na Universidade Federal do Pará e meu pai, advogado de posseiros no Araguaia, foi covardemente assassinado pelo latifúndio em 1987.

Mas o que fazer diante destes testemunhos, de tua segunda morte?

Sinto amigo, que em tempos de Comissão Nacional da Verdade (CNV) devemos cobrar que estejam embutidos, no relatório que será apresentado aos brasileiros em maio de 2014, os acontecimentos criminosos que foram perpetrados, por questões políticas, contra a infância deste imenso país dos trópicos.

Tua segunda morte carrega o legado de que, mais do que nunca, devemos cuidar da tenra idade contra os infanticidas, dos de ontem como, também, na atualidade.

Com ousadia, sem procuração alguma, a não ser pela memória da carne violada, tomamos para nós, por tais testemunhos, a exigência de que quem nos torturou, no ventre ou fora dele, responda pelos crimes de inexorável covardia, contra aqueles que devem ser protegidos desde a fecundação.

Assim cumprimos com a civilizatória missão de proteger os filhos do povo brasileiro.

* Paulo Fonteles Filho é membro da Associação dos Torturados da Guerrilha do Araguaia e colaborador do Vermelho