O deboche, a palhaçada e o jogo de interesses
“Não aceitamos e não acataremos este estupro coletivo da Comissão de Direitos Humanos. Da forma que está, ela está acabada. Não existe mais. Se continuar assim, sugerimos que os partidos aliados dos direitos humanos não indiquem membros para esta comissão”.
Por Toni Reis*
Publicado 15/03/2013 16:46
Testemunhei, pessoalmente, o troca-troca na Câmara dos Deputados na semana passada (6 e 7 de março) para eleger o presidente e indicar integrantes da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, criada há 18 anos para institucionalizar a luta pela igualdade e contra a discriminação. Foi escandaloso, vergonhoso e inaceitável. Vi com meus próprios olhos a manipulação e o jogo de interesses. Vi o machismo e o autoritarismo desrespeitosos do líder do PSC para com a deputada Antônia Lúcia (PSC-AC). Tive a infelicidade de ouvir Jair Bolsonaro (PP-RJ) falar que a eleição de Marco Feliciano (PSC-SP) foi o melhor presente de aniversário e Natal que já teve em todos os tempos.
Oito deputados do mesmo partido numa só comissão não é coincidência, é trampa, e a maioria é ligada ao fundamentalismo religioso evangélico. No total, agora 13 dos 18 titulares da comissão são pastores. Estuprar a proporcionalidade da representação partidária na comissão está equivocado e fere o Regimento Interno da Câmara: as comissões devem ser plurais.
Com essa eleição, a Câmara dos Deputados rasgou a Constituição Federal e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tornou-se, mais uma vez, uma vergonha para o Brasil e para o mundo. O Parlamento brasileiro retornou à idade das trevas. É preciso que os (as) parlamentares relembrem e ajam de acordo com o princípio (e a lei) de que o Brasil é um Estado laico. Com a ascendência do fundamentalismo religioso no Congresso Nacional, assiste-se a um espetáculo que relembra o surgimento da tomada do poder pelos nazistas na Alemanha dos anos 1930.
O episódio foi especialmente vergonhoso pela conivência do PMDB, PSDB, PR, PTB e PP em cederem vagas na comissão para o PSC, além da incabível indicação de Jair Bolsonaro para integrá-la, bem como o PSB, o PSD e o PV indicando pastores em detrimento de pessoas historicamente atuantes no campo dos direitos humanos.
As origens de alguns desses partidos simbolizam a luta pela democracia e o rechaço ao autoritarismo no Brasil da abertura. Quem diria?! Das 20 comissões permanentes da Câmara, a de Direitos Humanos foi a penúltima a ser escolhida, mostrando uma falta de prioridade generalizada.
Não é de se surpreender a estimativa de que uma pessoa é assassinada a cada dez minutos no Brasil (Instituto Sangari, 2011) e que em 2011, segundo o Escritório sobre Drogas e Crime das Nações Unidas (UNODC), o país estava em primeiro lugar no ranking do mundo neste quesito. O exemplo vem de cima, o Congresso Nacional não está preocupado com os direitos humanos e as consequências que este descaso traz.
Decepcionou também a falta de prioridade dada pelo PT e pelo PCdoB. Uma pergunta que ficou no ar é por que o PT priorizou a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional em detrimento da Comissão de Direitos Humanos e Minorias?
Repetiu-se, mais uma vez, a imperdoável negociação dos direitos humanos em troca de interesses políticos e do projeto de manutenção do poder, o que – no caso da população LGBT, negra, mulheres, indígenas – tem se tornado corriqueiro na atual legislatura. Estamos cansados (as) de ser moeda de troca.
É uma aberração eleger para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias uma pessoa que é objeto de ação penal e inquérito no Supremo Tribunal Federal, acusada de estelionato, racismo e homofobia.
Não faltam exemplos nas redes sociais comprovando algumas dessas alegações contra o Pastor Marco Feliciano, eleito presidente da comissão em 7 de março:
Em 30 de março de 2011, ele afirmou em sua página no twitter que os africanos são descendentes de um “ancestral amaldiçoado por Noé” e que “sobre o continente africano repousa a maldição do paganismo, ocultismo, misérias, doenças oriundas de lá: ebola, Aids, fome…”.
Neste link consta vídeo no qual Feliciano afirma que “a Aids é uma doença gay”; que existe um ativismo gay promovido por satanás que está “infiltrado” no governo brasileiro; que “enquanto crentes não saem para evangelizar… satanás levantou o seu ativismo [das pessoas LGBT] neste país. Ação de satanás contra a família brasileira”. Diz, ainda, que “o problema é o ativismo gay, o problema são pessoas que têm na sua cabeça o engendramento de satanás”. Prossegue ele: “São homens e mulheres que usam dos mesmos mecanismos que Stanley usou no seu comunismo nazista, usam a mesma linguagem de Hitler… uma mentira contada várias vezes com muita ênfase se torna verdade”.
Da mesma forma, no caso da censura presidencial ao vídeo da campanha do Ministério da Saúde de combate a DST/AIDS no Carnaval de 2012, com personagens gays, o deputado Marco Feliciano não só comemorou a retirada do vídeo da campanha com o casal gay do ar como também creditou à Frente Evangélica o “feito”. Em seu twitter, o deputado postou o link de uma matéria sobre a censura do material e sentenciou: “Pressão nossa”, numa clara demonstração da interferência religiosa na laicidade do Estado.
Em outra ocasião afirmou que “a podridão dos sentimentos dos homoafetivos leva ao ódio, ao crime e à rejeição”.
Pastor Marco Feliciano, que diz não ser homofóbico, também é autor das seguintes proposições, entre outras, que visam a negar a igualdade de direitos à população LGBT:
– Projeto de Decreto Legislativo 637/2012 – Ementa: Susta a aplicação da decisão do Supremo Tribunal Federal proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, que reconhece como entidade familiar a união entre pessoas do mesmo sexo.
– Projeto de Decreto Legislativo 521 e 495/2011 – Ementa: convoca plebiscito sobre o reconhecimento legal da união homossexual como entidade familiar.
Ele também apoia o Projeto de Decreto Legislativo 234/2011, que susta a aplicação do parágrafo único dos artigos 3º e 4º da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1, de 23 de março de 1999, que estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual.
A cruzada anti-LGBT promovida por Feliciano e outros fundamentalistas no Parlamento Brasileiro vai contra a maré internacional, tanto dos países vizinhos como Argentina e Uruguai, quanto de europeus como França e Inglaterra, todos se esforçando para garantir o alcance da plena igualdade de direitos pelas pessoas LGBT.
No nosso continente também o presidente Obama não tem medo de expressar essa convicção publicamente, como fez no discurso da posse em janeiro deste ano: “Nossa jornada não será completa até que nossos irmãos e irmãs LGBT sejam tratados como qualquer outro perante a lei – pois se somos verdadeiramente criados iguais, então certamente o amor que dedicamos um ao outro deve ser igual também.” Não queremos privilégios, queremos tão somente direitos iguais, nem menos, nem mais.
Assim como Feliciano, os correligionários eleitos na mesma ocasião na semana passada também atuam na contramão da plenitude e universalidade dos direitos humanos em outras questões também, como as terras indígenas, os direitos sexuais e os direitos reprodutivos das mulheres, as políticas afirmativas de acesso da população negra às universidades, e assim por diante. Com sua nova composição, como bem disse a deputada Luiza Erundina (PSB-SP), “esta Comissão não é mais de direitos humanos”.
Entendemos que o fundamentalismo e a intolerância religiosos manifestados pelo Pastor Marco Feliciano e seus asseclas não são representativos da maioria das pessoas evangélicas e somos defensores intransigentes da liberdade de opinião e crença, desde que não se tornem apologia de preconceitos, discriminação, violência e crimes, como o racismo e a homofobia.
Que a Câmara prime pelo bom senso e que realize uma nova eleição da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, uma vez que a maneira como a eleição foi realizada, a portas fechadas no dia 7 de março, contrariou o artigo 48 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Isto faz lembrar os idos de 1964.
Perdemos uma batalha, mas não perdemos a guerra. Todo apoio à criação da Frente Parlamentar dos Direitos Humanos e nossos agradecimentos pelos esforços expendidos pelos/as seguintes parlamentares, entre outros (as), na tentativa de reverter a desastrosa eleição: Janete Pietá (PT-SP), Domingos Dutra (PT-MA), Jean Wyllys (Psol-RJ), Érika Kokay (PT-DF), Ivan Valente (Psol-SP), Chico Alencar (Psol-RJ), Padre Ton (PT-RO), Nilmário Miranda (PT-MG), Luiza Erundina (PSB-SP), Dr. Rosinha (PT-PR), Janete Capiberibe (PSB-AP), Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Luiz Couto (PT-PB), Paulão (PT-AL) e Arnaldo Jordy (PPS-PA).
Que o ministro Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal conclua a análise do inquérito sobre o Pastor Marco Feliciano e que seja realizado o julgamento o mais brevemente possível.
No sábado, 9 de março de 2013, em todo o Brasil milhares pessoas que ficaram revoltadas com a imoralidade da eleição da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados saíram às ruas para protestar e exigir a correção deste erro. Em Curitiba, as palavras de ordem incluíam: “Nem podridão, nem maldição, queremos igualdade na nação.” “Pelos direitos humanos, fora Feliciano”.
O paralelo com as manifestações “Fora, Collor” ficou evidente. Agora tem-se o movimento “Fora, Feliciano”. Que continue havendo protestos até que sejam reinstaladas a democracia e a ética na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Que as organizações de classe, sindicatos e todas as pessoas e instituições ligadas à promoção e defesa dos direitos humanos se juntem às manifestações de repúdio ao acontecido e reforcem a mobilização em prol da anulação dessa eleição indigna.
Não aceitamos e não acataremos este estupro coletivo da Comissão de Direitos Humanos. Da forma que está, ela está acabada. Não existe mais. Se continuar assim, sugerimos que os partidos aliados dos direitos humanos não indiquem membros para esta comissão.
A luta tem de continuar:
“Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles,
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
* Professor especialista em sexualidade, mestre em Ética e Sexualidade e doutorando em Educação. Preside a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) e é conselheiro do Conselho Nacional LGBT.