Antártida: nova estação, novos desafios
Incêndio que destruiu quase completamente a Estação Antártica Comandante Ferraz, mantida pelo Brasil, pode ser visto como um aprendizado para a reconstrução da base de pesquisa de acordo com princípios mais funcionais e amigáveis ao ambiente.
Por João Paulo M. Torres, Larissa Cunha, Adriana Rodrigues de Lira Pessoa, Erli Costa e Begoña Jimenez (*)
Publicado 26/01/2013 17:40
Em 25 de fevereiro de 2012, no início da madrugada, um incêndio de grandes proporções destruiu quase inteiramente a estação de pesquisas do Brasil na Antártida – a Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF). Os primeiros módulos dessa estação foram inaugurados há 30 anos, e aos poucos o Brasil ocupou em definitivo essa área na enseada Martell, da baía do Almirantado, na ilha Rei George, a maior do arquipélago das Shetland do Sul. A área abrigava anteriormente uma estação do Serviço Geológico da Inglaterra.
Ao longo das três últimas décadas, o Programa Antártico Brasileiro (Proantar) se transformou na maior e mais longa operação anual da Marinha do Brasil. Esse programa de logística complexa, que conta ainda com o apoio da Força Aérea Brasileira, permite a realização de pesquisas científicas de alta qualidade, garantindo ao Brasil uma posição importante entre os países do Tratado da Antártida, do qual é signatário desde 1975.
No momento, está em preparação a 31ª Operação Antártica Brasileira, e o governo já anunciou a liberação de R$ 40 milhões para remoção de escombros e reconstrução da EACF. Este texto não pretende se concentrar nas causas do incêndio, mas em suas consequências para o estágio atual das pesquisas científicas e para o futuro da presença brasileira na Antártida.
Continente protegido
Por força do tratado internacional, a Antártida é considerada um continente onde pretensões territoriais estão ‘congeladas’. Isso implica que qualquer exploração comercial de seus recursos naturais também está proibida.
Essa proibição vale para o continente, mas não para os oceanos que o circundam. Nestes, a exploração ainda é grande, em especial por navios pesqueiros – inclusive os que capturam baleias. Vale lembrar que, no século 19, quando não havia produção de energia elétrica, a humanidade dependia basicamente do óleo de baleia para a iluminação pública, o que impulsionava a caça desses grandes cetáceos.
No final daquele século e no início do século 20, a captura de baleias foi intensa na região ao redor da Antártida, resultando na drástica redução das populações de muitas espécies – entre elas a baleia-azul, maior animal existente hoje no planeta. Por conta dessa devastação, a paisagem atual das ilhas subantárticas é assustadora: suas praias estão coalhadas de ossos de baleias, resquícios da época de quase extermínio desses animais.
O Tratado da Antártida determina o uso pacífico do continente gelado e permite a realização ali de pesquisas científicas. Hoje, cerca de 30 países desenvolvem estudos nesse território, apesar das condições inóspitas. As pesquisas antárticas têm grande importância: ajudam a entender a dinâmica do clima global, da atmosfera e das correntes oceânicas.
Hoje, por exemplo, os cientistas buscam entender como as correntes marinhas e atmosféricas levam poluentes persistentes para essas latitudes e que processos estão envolvidos na formação das ‘frentes frias’ que fazem cair a temperatura na América do Sul, inclusive no Brasil, chegando a alterar o clima até no sul da Amazônia.
Incêndios como o que destruiu a EACF e tirou a vida de dois profissionais da Marinha do Brasil servem, antes de qualquer coisa, como um aprendizado. Já ocorreram acidentes como este em estações de outros países. O que deu errado em nossa concepção de uma estação na região talvez tenha sido o adensamento das instalações.
Estas foram construídas ao longo dos anos e recobertas com um teto único, para que as áreas de vivência e de trabalho pudessem ser acessadas sem exposição ao frio excessivo. A estação brasileira, operada o ano inteiro, era confortável: tinha biblioteca, cozinha, refeitório, bons dormitórios, ampla sala de estar e facilidade de comunicação. Era um pedaço do Brasil próximo ao círculo polar.
Por isso mesmo, alguns problemas inerentes ao país também eram observados ali com relativa frequência. O sistema de tratamento anaeróbico de esgoto já dava sinais de estar no limite de sua capacidade de operação (a estação recebia 60 pessoas no verão) e a geração de lixo (incinerado na própria EACF) também era grande. A temperatura interna, muitas vezes, era mais alta do que a necessária para agradar os ‘friorentos’.
Pesquisas mantidas
A expectativa agora é construir uma estação nova e mais moderna, também mais funcional e mais amigável com o ambiente, tanto no tratamento do lixo e do esgoto gerados quanto nos gastos de combustíveis derivados do petróleo. Aliás, uma das grandes perdas no incêndio foi o protótipo de gerador a etanol, desenvolvido em parceria da Companhia Vale do Rio Doce, da Petrobras e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, para reduzir a emissão de gases.
Os estudos sobre a biologia de micro-organismos sofreram grande baque com a perda de bancos de amostras mantidos na estação. Também houve perdas significativas em outras pesquisas biológicas, além das geológicas e de contaminação ambiental. Não foram atingidos pelo fogo os alojamentos de pessoal, os laboratórios de meteorologia, química e de estudo da alta atmosfera, os tanques de combustíveis e o heliporto. Os pesquisadores da Operantar, alguns com 10 anos ou mais de atuação no programa e outros em suas primeiras expedições à estação, continuam abalados por terem vivenciado o incêndio.
Após a reconstrução, as novas instalações permitirão estudos científicos com ainda maior qualidade e rigor e facilitarão a meta de minimizar os impactos ecológicos da estação brasileiraMas há boas notícias: enquanto a nova estação não for projetada e implantada (o que deve acontecer em prazo de quatro a oito anos), a pesquisa científica não será interrompida. Estão sendo instalados na área do heliporto módulos do tipo contêiner para abrigar, de início, o grupo de operações que desmontará a antiga estação e retirará os escombros. As pesquisas foram deslocadas para acampamentos em áreas próximas, auxiliadas pelos navios de apoio oceanográfico brasileiros.
Após a reconstrução, as novas instalações permitirão estudos científicos com ainda maior qualidade e rigor e facilitarão a meta de minimizar os impactos ecológicos da estação brasileira. O Proantar – coordenado pela Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (Secirm), em conjunto com os ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação (Coordenação para Mar e Antártida) e do Meio Ambiente, e do qual participam a Força Aérea Brasileira, universidades e centros de pesquisa – seguirá adiante, revigorado, para o progresso da ciência no Brasil.
(*) João Paulo M. Torres, Larissa Cunha e Adriana Rodrigues de Lira Pessoa são do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, Universidade Federal do Rio de Janeiro; Erli Costa é do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Associação de Pesquisadores Polares em Início de Carreira; Begoña Jimenez é do Instituto de Química Orgânica Geral, Conselho Superior de Investigações Científicas (Espanha)
Fonte: Ciência Hoje