Del Roio: Golpe foi tramado por minoria infame
A indignação contra a usurpação de um poder legalmente constituído – firmado em bases nacionais e populares dos trabalhadores do campo e da cidade – levou inúmeros brasileiros a atacar como podiam o regime autocrático. Uns pela ação grevista e pela luta sindical, outros por passeatas que cobriram avenidas e praças do país, outros tantos pela ação parlamentar e alguns pela ação armada.
Por Paulo Barsotti, no Margem Esquerda
Publicado 20/12/2012 18:22
José Luiz Del Roio enveredou por esse último caminho e, logo após o golpe, rompeu com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), ao qual era filiado desde os 17 anos, para fundar com Carlos Marighella (1911-1969), entre outros, a Ação Libertadora Nacional (ALN).
A serviço da organização, vai a Cuba, em seguida ao Peru – durante o governo nacionalista de Juan Velasco Alvarado (1909-1977) – e, na sequência, para o Chile do socialista Salvador Allende (1908-1973). Com o golpe de Pinochet, desloca-se para a Europa. Em 1975 reencontra Luis Carlos Prestes (1898-1990) e retorna ao PCB. Dois anos mais tarde, responsabiliza-se com outros pela retirada de importantes documentos e acervos do PCB, incluindo as bibliotecas de Astrojildo Pereira (1890-1965), que davam conta de peças (jornais, livros, revistas) das primeiras décadas do século 20 do movimento operário brasileiro. O material foi recolhido e retirado do país, numa fantástica operação, para ser abrigado na Fundação Giangiacomo Feltrinelli, em Milão.
Assim, além da luta no exílio contra o terrorismo de Estado implantado em nosso país, Del Roio – atento à necessidade da preservação da história e da memória brasileira – constrói o Archivio Storico del Movimento Operaio Brasiliano, incorporando o novo material produzido durante a resistência à ditadura.
Anistiado em 1979, retorna ao Brasil. Anos mais tarde, os documentos são trazidos da Itália e, desde 1994, encontram-se abrigados sob custódia no Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (Cedem-Unesp). Ainda na Itália, em 2006, por sua dupla cidadania, é eleito senador (pelo Partido da Refundação Comunista) e torna-se membro da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa em Estrasburgo e membro da União Europeia Ocidental em Paris. Além de sua intensa e contínua militância, escreveu vários livros, entre eles Zarattini: a paixão revolucionária, A história de um dia: 1º de maio e As capas desta história.
Esta entrevista foi concedida a Paulo Barsotti em São Paulo, em setembro de 2012, com transcrição e apoio técnico de Silvia Letícia Marques.
Margem Esquerda/: Como você, vítima da ditadura militar instalada após o golpe de 1964, perseguido e exilado político durante anos, vê essa Comissão Nacional da Verdade sendo realizada, depois de mais de quarenta anos do início da repressão ditatorial no país?
José Luiz Del Roio: A verdade é que foram nestas três últimas décadas, em várias partes do mundo, que começou essa história de comissão da verdade, com nomes diferentes de país para país. Foram criadas no Timor Leste, nas Filipinas, em Gana, em Ruanda, na África do Sul, em El Salvador, no Panamá, no Peru… Uma quantidade incrível. Então, nós estamos chegando extremamente atrasados. Mas acontece que a realidade brasileira tem uma série de especificidades, portanto a nossa Comissão Nacional da Verdade é diferente das outras.
Quais seriam essas diferenças?
Primeiro porque ela surge muito tempo depois dos acontecimentos, muitos criminosos e vítimas já faleceram. É difícil buscá-los, foi uma luta dura e infernal, sobretudo da comissão dos familiares de mortos e desaparecidos. Creio que uma homenagem deve ser feita a todas essas comissões que existiam e existem em diversos estados e que jamais deixaram de lutar. Mas tudo isso está ligado à maneira como o Brasil saiu da ditadura, basicamente através de uma conciliação de setores das classes dominantes. Não houve uma derrubada da ditadura – embora tenha havido enormes movimentos de massas –, mas os setores das classes dominantes conseguiram direcionar o processo. Pense um pouco: a anistia é de agosto de 1979, ou seja, em plena ditadura, um projeto de lei é enviado ao congresso por uma Junta Militar, um presidente militar, e assim foi aprovada aquela Lei da Anistia. Aliás, nunca podemos nos esquecer de que foi aprovada por somente cinco votos em um parlamento que tinha uma dezena de parlamentares biônicos. Esse é um problema sério, nós temos uma lei da anistia aprovada por parlamentares biônicos, dentro de um jogo complicado de “vamos esquecer tudo”. Como assim? O Estado mata, tortura, violenta, e nada acontece? As consequências disso nós podemos ver na ditadura continuada, como nós chamamos, que permanece até os dias de hoje, não é? Agora vamos esquecer tudo, que é clássico em nossa história, aliás. É a repetição do “vamos esquecer a escravidão”, “me desculpe, foi só uma coisinha”, para que ficar se lembrando da escravidão? E das consequências da escravidão na formação deste país, se esquece? Apesar do imenso movimento popular, tivemos uma lei da anistia muito ruim, em contraste com uma lei eleitoral, um sistema eleitoral democrático e avançado. Mesmo com o forte movimento de massas pelas “Diretas Já” não conseguimos impedir a saída limitada, condicionada, da ditadura, e o primeiro presidente foi eleito de forma indireta. A verdade é que os diversos setores, fragmentos e correntes da burguesia, da oligarquia, conseguiram essa saída permanente da historia brasileira de dizer: vamos esquecer, vamos esquecer…
É a clássica reforma pelo alto, a conciliação de todos os setores dominantes contra o avanço democrático e a exclusão das massas populares.
O bom é que as coisas não ficam impunes. Durante um tempo se pensou que as coisas estavam resolvidas. O fato é que a questão dos desaparecidos ficou latente na sociedade brasileira. Passaram-se vinte anos de ditadura de 1964 a 1984, e não era possível que um período tão grande, já dentro de um capitalismo industrial, fosse esquecido. Quando os tempos não são os do faraó do Egito, dizer sobre os acontecimentos: “Paciência, não foi nada”… Como que não é nada? Sempre houve uma pressão da sociedade, e cada vez que a pressão era muito forte alguma coisa era concedida. Por exemplo, no governo Fernando Henrique Cardoso concedeu-se aos familiares dos desaparecidos o direito ao atestado de óbito. Pode parecer um absurdo, mas eu só consegui o atestado de óbito da moça com quem eu fora casado 23 anos depois do desaparecimento dela! Muitos vão dizer que isso é uma coisa formal, mas não é nada formal.
Eu gostaria de saber exatamente o que significa isso.
Não é nada formal, você não pode se casar de novo, por exemplo. Você fica casado com uma pessoa que não está morta, você não consegue explicar onde ela está, ou melhor, pode até explicar, mas não aceitam a sua explicação. Então tem de ser um presidente da república que se mova para dar o atestado de óbito, e o atestado de óbito é um avanço.
Mas nesses casos o crime foi cometido pelo Estado. É o próprio Estado que tem de reconhecer isso e dar o atestado de óbito?
Ele reconhece que cometeu o crime, mas uma questão mínima como um atestado de óbito demorou todo esse tempo! Outro aspecto é a injustiça do ressarcimento monetário das vítimas, dos anistiados logo depois que se abriu a comissão da anistia. Podemos discutir a questão se a reparação monetária cobre a injustiça extrema cometida. Pessoas que ficaram totalmente desajustadas por tortura continuada ou pessoas que tiveram entes mortos, assassinados ou desaparecidos. Mas, de qualquer forma, essa reparação é injusta porque reflete a injustiça existente na sociedade. Se um rico jornalista foi perseguido, ele vai ter um ressarcimento, um pagamento compatível com o altíssimo salário que tinha como diretor de jornal, com todas as correções monetárias. Se você pega um operário gráfico, que ganhava um salário mínimo e meio, sua viúva vai receber um salário mínimo e meio. Isto reflete a injustiça da sociedade em relação aos companheiros ou resistentes que lutaram no mesmo patamar, é uma infâmia difícil de engolir. Foram feitos através dos anos muitas tentativas de reajustar isso, mas a sociedade é dividida em classes e isso se reflete também nesse aspecto. Toda essa luta teve um logo percurso, até que a pressão aumentou com a presidência de Lula, provocando uma reação ideológica incrível das classes dominantes – e dos setores intelectuais a elas ligados – para não reabrir essa discussão: para quê reabrir as feridas? Isso tudo era a mesma manobra da extrema direita, que cansei de ver na Europa: “Não vamos reabrir as feridas do fascismo, para quê?”. Como se dizia na Itália, destruindo a história italiana e o país junto: “Não vamos mais falar da resistência armada conta o nazifascismo, porque nos dois lados tinham pessoas bem intencionadas”. Oh, Jesus Cristo, obrigado! Oh, obrigado por nos dois lados existirem pessoas bem intencionadas! Só que um era torturador e o outro era o torturado, mas os dois eram bem intencionados. Há três anos atrás, aqui na imprensa brasileira, foi vista essa batalha: “Não vamos reabrir feridas”. Mas quais são as feridas? São as minhas feridas, são as feridas do arrocho salarial feito pela ditadura que até hoje não foi solucionado, é a ferida de passar a polícia militar de cada estado para o comando das Forças Armadas – em última instância, militarizá-la –, como se fosse o Exército combatendo seu inimigo exterior – e, é claro, o Exército é feito para matar, não tem outro jeito. Não digo que o Exército é feito de assassinos, mas ele é feito para matar, melhor não entrar em guerra, mas se entrar ele tem de matar. Ora, polícia não, a polícia não é feita para matar.
E na medida em que não houve um fim da ditadura e sim um arranjo dos setores militares e de setores civis da classe dominante, muita gente se esquece que a militarização da polícia civil foi obra da ditadura, que permanece e fica para a história, para as novas gerações, como se isso sempre tivesse sido assim.
Não foi assim, não nasceu assim, ela é uma excrescência da ditadura. Essa polícia que temos hoje, na qual a tortura é normal e que praticamente todo dia custa vítimas, é uma herança daquele período. Em todos os estados da federação se tortura nas cadeias, não os políticos, mas a população pobre de todo o país. Então, como não vamos reabrir tudo isso? O que foi o golpe? Nós não podemos esquecer que o golpe militar aconteceu um ano depois do referendo em relação ao governo João Goulart, a questão do presidencialismo e do parlamentarismo. As ações populares no governo Jango tiveram um “pequeno” apoio de 89% dos votantes! Quer dizer, era um governo com amplo apoio popular, que tinha eleições marcadas para um ano depois do golpe, em 1965, quando seguramente seria eleito alguém mais da esquerda ou menos da esquerda, mas comprometido com as reformas de base e toda a movimentação popular. Se forem feitas as contas, o golpe foi realizado com financiamento da grande indústria, do imperialismo norte-americano, e por cerca de trezentos militares. Desgraçaram, romperam, rasgaram a Constituição, violaram o Supremo Tribunal Federal e violaram o parlamento.
Trezentos oficiais militares da alta cúpula?
Isso, alta cúpula das Forças Armadas. Então, a Comissão da Verdade vai aumentando a pressão e, com a presidenta Dilma, a questão ficou insustentável, ela é uma torturada, é uma resistente de armas na mão, não adianta virar e revirar, e não adianta também pedir para ela esquecer, então o quadro ficou insustentável. A criação da Comissão Nacional da Verdade era inadiável, mas mesmo assim foi muito difícil. A Folha de S.Paulo ainda falava da “Ditabranda”. Então saiu a famosa lei n. 12.528, que cria a Comissão Nacional da Verdade. No parlamento, houve um acordo entre os partidos, ela foi aprovada por aclamação, e aqui começa a sua especificidade. Diferentemente de outras nações, onde as comissões foram criadas por atos da Presidência da República ou por comissões internacionais ligadas à ONU – como na África e na América central, na maior parte das vezes financiadas pelo exterior, pelas condições de pobreza desses países –, no Brasil ela foi aprovada pelo parlamento por unanimidade e pela presidente da república. Sua formação foi uma encenação muito hábil: foram convocados todos os presidentes civis eleitos, o presidente do Supremo, o chefe das Forças Armadas, o presidente da Câmara, o presidente do Senado etc. Então ela passa a ser uma Comissão do Estado e não do presidente da república. Isso lhe dá uma força extraordinária em relação às outras – fato ainda pouco explorado –, porque todo mundo pensa que essa comissão da verdade é “fraca”. Mas não, ela é muito forte. Porque ela tem o grito e o poder da convocação, coisa que as anteriores não tinham. Não é possível que um funcionário público aposentado não acate uma convocação, não é possível que alguém feche arquivos do Estado, tudo tem de ser aberto. E, é preciso admitir, alguns ministérios têm aberto todos os seus arquivos, a começar pelo das Relações Exteriores, o Itamaraty. Ainda nesta semana, o Ministério da Educação abriu seus arquivos, o que é muito importante não só para saber a quantidade de professores e alunos expulsos, mas também para saber a respeito daqueles que colaboraram com tais expulsões, pois muitos casos se deram a pedido dos próprios colegas ou em tribunais internos.
Mas nem tudo são “rosas”.
A comissão só está com um pequeno problema com o Ministério da Defesa, isto é, como todos os ministérios estão abrindo seus arquivos, o Ministério da Defesa alega que queimou tudo em 1978. A CNV diz que é crime queimar documentos de Estado, então vem a primeira resposta, que diz que existia uma lei secreta na ditadura que permitia a queima, o que é uma aberração. Então perguntou-se: quem queimou? Vem a segunda resposta: os documentos relativos a quem queimou foram queimados segundo a mesma lei. Evidentemente, isso não pode ser uma resposta, isso é inaceitável. Mas, de qualquer forma, os arquivos estão sendo abertos, o que demonstra a força da CNV. Além disso, ela não começa do nada. Durante todos estes trinta e poucos anos muita informação foi acumulada por outras comissões, por familiares que trabalharam duramente e fizeram um levantamento de mortos, de listas de torturadores, de financiadores etc. O próprio Estado já publicou parte desse material. Sei que a Secretaria de Direitos Humanos já publicou vários volumes sobre isso, a própria Comissão da Anistia contempla mais de 60 mil casos já registrados de violação aos direitos humanos cometidos por agentes do Estado. Então, ela tem o que as outras comissões não tinham, que começaram do zero. A CNV, portanto, parte desse resultado e tem mais força. Ela, insisto, tem o direito à convocação. Vamos supor, se um funcionário público aposentado for convocado e se recusar a ir, ele pode perder todos os seus benefícios, a começar pela aposentadoria.
Você está dizendo que a CNV é forte e que essa seria a diferença em relação às comissões anteriores, pois é uma comissão do Estado. Mas, mesmo assim, ela tem suas contradições. Em alguns lugares há o acatamento da autoridade estatal, mas em outros ela encontra obstáculos para averiguar e investigar. Posso até estar me antecipando, mas fico pensando: quais são suas reais possibilidades? Afinal de contas, ela termina seus trabalhos e aí, quais serão as consequências?
Bom, aí vamos ver se ela é forte. Seus trabalhos estão determinados, ela tem a possibilidade de averiguar, de investigar e tem como obrigação publicar um documento, um relatório final, que deve sair em maio de 2014. Na verdade, para ficar bastante claro, é importante destacar que as atribuições da comissão vão do dia 18 set. 1946 até 5 out. 1988, o que é um fato curioso. Porque vai de constituição a constituição, desde quando foi emanada a Constituição democrática de 1946, depois da ditadura Vargas, até quando foi emanada a nova Constituição democrática, de 5 out. 1988. Este é o período de seu trabalho. É evidente que a CNV não teve tempo de investigar tudo, sua investigação se concentrará provavelmente a partir de 1961, quando começou a gestação do golpe. Na verdade, a gestação do golpe de 1964 se inicia quando Jango assume o poder. Já em 1961 tentaram o golpe, não conseguiram, mas não desistiram. Todos os setores da burguesia – sobretudo o financeiro, imperialistas, latifúndios, setores da Igreja – começaram a elaborar um novo golpe. Então isso tem de estar na comissão, o golpe não saiu no dia 1º de abril, tem de ter havido alguma coisa antes e que permanece até 1988, e isto é interessante porque vai pegar um período que extrapola a Lei da Anistia. A CNV tem de fazer um relatório analisando as causas do golpe, o que foi o golpe e o que puder falar sobre as violações cometidas. Eu digo “o que puder” porque não se pode pedir que a CNV seja exaustiva. Calcula-se 50 mil presos só nos dois primeiros meses do golpe militar! Quero recordar que eram tantos os prisioneiros que não havia mais cadeia, tiveram de ancorar navios em Santos para colocar prisioneiros – aliás alguns professores da Universidade de São Paulo ficaram em navio, recordo só o nome de Luiz Hildebrando. A comissão tem de refazer essa história, dar o nome possível das conivências, a explicação, o nome dos agentes que violaram os direitos humanos etc. Esse relatório será um relatório de Estado, é essa a sua função. É a posição do Estado sobre aqueles acontecimentos. Mas a CNV não pune, não tem o poder de punição, esse poder é somente da Justiça atual. A Justiça atual, muitas vezes covardemente, diz que esbarra na Lei da Anistia e, como tudo foi anistiado, não pode fazer nada. Mas na verdade a coisa não é bem assim, porque existem juízes e promotores corajosos, valentes, sobretudo os mais jovens, que agora estão se movendo e abrem pelo menos processos civis, penais, ou seja, cuja penalidade é mais declaratória ou é de indenização. O caso mais famoso é o do coronel Brilhante Ustra, que foi declarado torturador e assassino. É uma coisa curiosíssima. A Justiça declara uma pessoa muitas vezes assassino, muitas vezes torturador, e não acontece nada! Porém, podemos chegar na frente dele e dizer: “Torturador!”, “Assassino!”, e ele não pode fazer nada. Todas essas contradições vão se acumulando, e uma juíza federal já abriu os primeiros processos penais – ou seja, criminais – lá no Pará, que dão cadeia. Existem outros casos que podem ser reabertos, como o do Rio-Centro de 1982, que está fora da Lei da Anistia e que será tratado na CNV. Vem aí também a grande e terrível discussão do crime continuado – a situação das famílias que não receberam notícias dos corpos de seus entes. A recusa dos agentes do Estado em fornecer informações não é anistiável, e o crime continua enquanto não se resolve a questão dos corpos.
Isso é um desdobramento da primeira não averiguação? O direito entende que são dois crimes diferentes?
Exatamente, mas tudo é muito complicado e há muita discussão sobre o assunto. O Supremo Tribunal Federal decidiu deixar tudo como estava, porque a Lei da Anistia vale para tudo. Isso é uma vergonha, uma mancha para o Supremo Tribunal de Justiça: permitir esquartejar, violentar, roubar… Meu Deus do céu, volta a ladainha “não vamos reabrir feridas”, ou seja, toda a elite brasileira se exprimiu nas palavras da maioria do juízes da corte do Supremo Tribunal Federal, que sempre – evidentemente – pode mudar de posição. Mas, por isso, o relatório da CNV é importante, sim, porque passa a ser a posição do Estado e, assim, pode-se pensar em alguma modificação dessa situação. O Estado deve se mexer para que a população brasileira saiba desses fatos, não só publicando milhões de cópias do tal relatório ou de parte dele, mas também fazendo isso entrar nas escolas e em todos os lugares públicos.
Pelo menos como um resgate da história brasileira, com a publicação de documentos que podem ser objeto de reflexão e de análise.
É, mas eu queria acenar para uma coisa que acho muito importante e da qual se fala pouco também. O setor que, proporcionalmente, mais sofreu com a ditadura, foram as Forças Armadas: 7.500 é o número calculado dos militares que sofreram repressão – a CNV vai refazer essas contas. Esses militares foram punidos ou porque eram disciplinados e democráticos e respeitaram a Constituição, ou porque não queriam matar e torturar brasileiros. Matar tropas inimigas é uma coisa, agora, matar brasileiros desarmados é uma infâmia para qualquer farda de qualquer Exército. Então, esse é um aspecto importante.
Se entendi o que você disse, a CNV tem seus limites: o máximo que se pode alcançar são processos civis. Mas também vejo outro limite no espectro projetado após 41 anos para a investigação, de 1947 a 1988. Penso que a coisa, desde o início, era para não avançar muito. Outra questão polêmica, que os setores da direita insistem em colocar, é a das vítimas daqueles que resistiram à ditadura com armas nas mãos. Como você vê isso?
Olha, tudo nasce da própria análise do golpe. O golpe foi tramado por uma minoria infame e poderosa, tanto no Brasil quanto no exterior, por forças externas. A minha posição – e espero que seja a da CNV – é que era um direito combater contra o golpe. Direi mais: era um dever. Você não pode deixar que, impunemente, a Constituição de seu país seja rasgada, quando uma imensa maioria do povo apoia um processo de reformas de bases, apoiado justamente nessa Constituição! A questão das características que assume essa resistência fez parte da história. Eu acho é que o companheiro Ivan Seixas que diz que a resistência brasileira foi muito articulada, que todo mundo disparou contra a ditadura. Um disparava em jornalzinho de igreja, de bairro, outro disparava uma greve dentro de um sindicato ou numa comissão de fábrica, enfim, todos disparavam. Houve grupos que dispararam balas, por assim dizer. Foram covardes? Não. Lutaram em condições ínfimas, a relação de força era totalmente desfavorável, lutou-se em uma situação dramática e heróica. Então é muito claro, o golpe é o pecado original, quem usou o golpe para reprimir o povo brasileiro é o culpado. A lei que cria a CNV é claríssima, essa comissão existe para averiguar as violações de direitos humanos cometidos pelos agentes do Estado e ponto. Não tem essa discussão, pode-se discutir teoricamente outras coisas…
Mas existem vozes na mídia que vão nessa direção.
Vão nessa direção porque não conhecem a lei – e, se a conhecem, mentem. A lei é para isso, é para quem resistiu, para quem teve suas casas roubadas, verdadeiramente invadidas, assaltadas e depredadas, para aqueles que pagaram caros anos de prisão, de muita tortura, exílio etc.
Para aqueles que tiveram um futuro totalmente desarticulado e comprometido.
Agora os outros estão com ótimas aposentadorias de coronéis. Os grandes torturadores, já em 1977 e 1978, foram retirados para fazer trabalho diplomático, servir nas embaixadas, com adendos salariais altíssimos. O que é isso? Não tem essa de que não aconteceu! Agora quero falar de outro aspecto, que é óbvio: a CNV evidentemente vai causar um grande impacto quando sair seu relatório. Para mim e para você não vai contar muito, talvez. Mas para a grande população vai. Sobretudo se for colocada – e acho que será – a questão da ditadura continuada: como foram destruídas as escolas públicas, como foi o arrocho salarial que se arrasta até hoje, a questão da militarização da polícia, a persistência da tortura etc. Bom, isso vai causar impacto, e precisamos desse impacto para ir para frente, para conseguir a justiça.
A CNV tem a obrigação de fazer uma ampla divulgação de seu trabalho ou essa divulgação ficará a cargo de setores da sociedade civil?
Pode-se dizer que este é um problema técnico. A CNV vai fazer um livro, provavelmente abrangendo diversos aspectos. É um dever do Estado. Mas ela não terá força de divulgação, não é editora, não é rede de distribuição. A CNV entrega o relatório à presidenta da república, e o Estado – que tem meios poderosíssimos – deverá fazer a distribuição e divulgação. O que preocupa, porque quando se publicam excelentes livros através da Secretaria dos Direitos Humanos ou do Ministério da Justiça muitas vezes eles ficam encalhados. A produção é pequena, destinada mais para estudiosos, para as vítimas, e essa frágil distribuição é um dos problemas do Estado. Não estou dizendo que é do governo. Esse governo vai ter de se virar para que isso chegue às escolas, a cada biblioteca, a todo lugar público. Sua função é essa. Eu enviaria para tudo aquilo que é organizado nas camadas da sociedade civil: sindicatos, igrejas, escolas, bibliotecas etc. Vamos lutar para isso, para que a difusão seja muito grande, que tenha edições simplificadas, evidentemente com cuidado na linguagem, que não pode ser difícil. Terá de ter anexos, com listas de vítimas… E isto está ligado a outro problema. Conversei com o responsável da Comissão Nacional da Verdade da Conciliação do Peru, que fizeram um trabalho de 17 mil entrevistas no campo. Foram em cada casa de cada canto dos Andes, conversaram em várias línguas com diferentes tribos, fizeram um trabalho incrível. Então perguntei a ele: qual foi o resultado? A resposta: nenhum. Por quê? Aí é que veio o problema. Pois a sociedade não estava mobilizada para receber os resultados. Na verdade, ele explicou que o “nenhum” era um pouco exagerado. Porque existe a ideia de que esse trabalho ajuda a vítima. A vítima pode falar livremente, passa a sentir que realmente tinha razão, vê o Estado reconhecendo isso. Realmente ajuda. Mas nós queremos justiça. Não se trata de encher a cadeia de velhinhos, apesar de outros países fazerem isso. Há poucos dias, foram condenados mais catorze velhinhos na Argentina à prisão perpétua, mas por quê? A comissão da verdade da Argentina era melhor? Não era melhor, acontece que existia um movimento poderosíssimo da sociedade que foi crescendo, rompeu com a chamada Lei do Ponto Final e, sob pressão, a justiça começou a abrir processos que estão chegando ao fim. A mesma coisa se repetiu no Chile, onde a pressão popular levou à prisão os principais responsáveis pelo golpe. No Brasil a luta é essa. Não basta só a CNV. É preciso criar um movimento para receber adequadamente seus resultados, que acho que serão bons. A CNV sozinha não é nada. Ela pode ser interessante porque podemos utilizar seus resultados.
Como você pensa esse movimento?
Bom, aqui entra outra questão, e que em nosso país toma uma dimensão específica. A CNV é verdade e memória, trabalha com isso. Já falei isso outras vezes, mas gosto de repetir: o Brasil sofreu um fenômeno curioso, bom e ruim. Quando o fascismo italiano – que durou 22 anos, como a nossa ditadura – assumiu o poder, a Itália tinha 32 milhões de habitantes. Quando ele acabou, já eram 40 milhões de italianos. Quando começou a ditadura no Uruguai, sua população era de 3 milhões de habitantes. Quando acabou, havia um pouco menos de 3 milhões, porque a imigração foi tanta… A mesma coisa aconteceu na Argentina. No Brasil, não. Aqui houve um fenômeno curioso, que foi o enorme crescimento demográfico nos últimos anos de ditadura. O que isto significa? No dia do golpe nós tínhamos mais ou menos 70 milhões de brasileiros e, quando ele acabou, éramos cerca de 140 milhões, isto é, dobramos a população! Quando se dobra a população em pouco tempo é um milagre manter a memória do país. Para manter a memória histórica é preciso ter um sistema escolar, um Estado altamente democrático, ótimas condições econômicas etc. Tudo ao contrário do que a gente tinha na ditadura: péssimas condições econômicas e sociais, além de um processo de destruição de todo o sistema escolar. Então, temos uma população que sai do golpe sem saber nada, não sabe o tamanho do país, não sabe se Pedro I vem antes ou depois de Getúlio. Não existe um sentido histórico. Ora, o Brasil está se transformando em uma grande nação econômica, com peso internacional, mas não existe uma grande nação sem memória! Os Estados Unidos construíram sua memória – posso estar em desacordo com o quê eles construíram, mas isso não importa. Da China o que se pode falar? Que a China não tem memória? Então essa historia de “não vamos reabrir feridas”, “vamos deixar isso pra lá”, porque tudo isso vai contra a segurança nacional, é apagar a memória e é ir contra o futuro do país! Então a CNV tem esse dever, que não é só dos anos da ditadura, e talvez precisássemos de uma comissão da verdade também para tratar da questão da escravidão. Então, o problema da memória está em choque aqui, e com aquilo que a comissão vai fazer. Ora, se a CNV vai produzir essa memória, mas não tem condições de divulgá-la, é necessário um movimento social que absorva isso criticamente e saiba que ela não falou tudo, que o que falou não basta. Primeira coisa: continuaremos a querer justiça, que a CNV não vai dar. Precisamos derrubar essa Lei da Anistia, pressionar a Justiça brasileira a se mover, a se democratizar, apoiar suas melhores iniciativas. Ir para esta batalha. Por que a Justiça não se democratiza? É preciso democratizá-la, democratizar os parlamentos, democratizar tudo… É uma grande batalha que está sendo travada, mas ainda é pequena. Ela é travada com a criação de uma série de comissões da verdade, localizadas em diferentes zonas. E isso tem de ser valorizado. Atualmente devem existir cerca de cinquenta comitês – digo isso porque a cada dia nascem outros. São comitês populares de comissão por memória, verdade e justiça, em geral incentivados por velhos militantes, seus familiares, filhos, sobrinhos e netos, que nasceram depois, mas sentiram a obrigação de criar esses comitês.
Esses comitês formam uma rede independente? E como outros novos podem ser criados?
É uma rede totalmente independente. Por isso ela se chama “Memória Verdade e Justiça”. Ela tenta manter uma relação dialética com a CNV, às vezes em choque, às vezes não. Pressiona, mas tenta manter o contato. Muitos dos próprios componentes da CNV – embora estejam ligados à Justiça e aos direitos humanos – não viveram e não têm a história desses comitês, que precedem a CNV. Além desses que estão em criação, começam a se formar comitês específicos ou corporativos, no bom sentido. Assim, surge o Comitê da Verdade e da Justiça da OAB, vai ser criado o Comitê da Confederação Nacional dos Jornalistas, a CUT está criando o Comitê Nacional dos Direitos Trabalhistas. Há poucos dias atrás, foi criada uma Comissão Nacional da Verdade sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais, e assim por diante. Tratam-se de comitês específicos.
E nas universidades, como está a situação? Existem comitês?
Veja, na Universidade de Brasília foi criada a Comissão de Justiça da UnB, cuja repressão foi intensa. Estamos falando das universidades mais antigas, onde houve muita resistência e muitas vítimas. O AI-5 praticamente nasce dentro da USP. Por que se fala somente dos seus mortos, que giram em torno de quarenta? E os que perderam emprego? E os professores e funcionários que foram expulsos, que tiveram sua carreira interrompida? Também não se fala da grande colaboração que a repressão teve no interior das universidades, de professores, funcionários e alunos. Veja como o quadro é complexo. E nós vemos esse choque tremendo que está acontecendo dentro da USP, e então não se consegue criar uma comissão da verdade, porque ela representa um pouco das contradições da sociedade brasileira: o confronto é muito grande. Mas existem outros tipos de comissão da verdade. Em muitos estados, nas câmaras estaduais dos deputados, têm sido criadas comissões da verdade, como em São Paulo. E algumas cidades, nas câmaras dos vereadores, criaram suas próprias comissões da verdade, memória e justiça. Existe outro problema bem mais complexo, que não sei como resolver no momento. Surgiu a comissão estadual em dois estados: Pernambuco e Rio Grande do Sul, em que o governador cria uma comissão com prerrogativas totais de investigação, abertura de arquivos etc., dentro de seu estado.
Elas não entram em choque com a CNV?
No momento esse problema não se coloca. Inclusive o ministro Gilson Dipp pediu ao governo Sérgio Cabral a imediata instalação da comissão estadual da verdade para o estado do Rio de Janeiro. Porque o mapa que está vindo de fora do Rio é assustador: 63 centros de tortura, onde se queimavam e despedaçavam corpos! E o número de vítimas aumenta. Então, é provável que vários estados criem suas comissões estaduais para falar a verdade. Enfim, está se criando uma rede. Mas ainda não basta, é preciso mais. Se essa rede for potente, ela não termina em maio de 2014. Em alguns outros países, como no Chile, houve a necessidade de convocar outra comissão nacional da verdade, porque o movimento foi tão forte que não bastou só o trabalho da primeira. Foi então que se rompeu a Justiça, e assim por diante. Isto aconteceu porque houve, apesar das dificuldades, uma grande divulgação para seus pouco mais de 18 milhões de habitantes. No Brasil, isto fica muito mais difícil. Temos uma população de cerca de 200 milhões, com os problemas de leitura, de comunicação e dos meios de comunicação que todos nós sabemos. Por isso é que nós temos de incentivar a construção dessa rede com o apoio do Estado. Problemas tais como se será melhor publicar o relatório numa grande editora ou na Imprensa Oficial do Estado – que tem melhores condições de fazer a divulgação para milhões de pessoas – são mais técnicos. Eu prefiro acentuar a questão dessa rede que está se criando, que ainda não é suficiente.
Existem universidades participando dessa rede, apesar das dificuldades que você já comentou?
A Universidade Estadual do Rio de Janeiro, por exemplo, tem um grupo de estudos específico, sobre a história do Rio de Janeiro, que está mobilizado, organicamente ligado, trabalhando para a CNV. A CNV tem um trabalho histórico a ser feito, então precisa do apoio das universidades. No Nordeste ela tem apoio em várias universidades, mas sem dúvida nenhuma isso precisa ser ampliado.
Qual tem sido a participação das igrejas para a CNV?
Você também só traz problemas complicados…
Fiz a pergunta porque, durante certo período, elas foram as instituições sociais – talvez das mais significativas – na luta contra a violação dos direitos humanos.
Exatamente, e aqui não vamos falar de uma Igreja específica, vamos falar de igrejas. Porque nós temos de nos referir também, além da Igreja Católica Apostólica Romana, às igrejas protestantes históricas. Não tenha dúvida que em todas as igrejas encontramos pessoas que lutaram contra a ditadura. Poderíamos citar vários nomes. Mas também em todas elas existiram setores que combateram o governo constitucional e popular de Jango, conspiraram, elaboraram e apoiaram o golpe militar no Brasil, tanto as católicas quanto as protestantes. Nós precisamos que essas igrejas abram uma comissão nacional da verdade interna. Não foram poucos os capelães e pastores que ajudaram na repressão. Esta é uma ferida muito grave. Como se abre, numa igreja, uma comissão da verdade? Mas posso garantir que existem católicos e protestantes lutando nesse sentido.
Até existe a questão, posta desde as revoluções burguesas, da relação entre o Estado e a Igreja…
A Igreja deve fazer sua própria comissão nacional da verdade, ela deve se olhar e se arrepender, ela deve fazer sua metanoia, mas com um arrependimento de atos reais e não dizer “Deus me perdoe”. Isso não adianta. Tal reparação social seria uma grande coisa e de grande ajuda para essas igrejas. Estou convencido disso. Veja na Argentina, quando o chefe das Forças Armadas vai para televisão e diz: “O golpe foi um horror, o que nós fizemos foi contra a pátria, nos envergonhamos, juramos nunca mais repetir, seremos soldados leais e democráticos e respeitosos”, nesse momento as Forças Armadas sanam suas feridas. Aqui no Brasil temos de fazer a mesma coisa, porque existe um número imenso de oficiais que nasceram em 1970 ou mesmo em 1980, que não podem ser acusados de repressão e não merecem essa mancha em suas fardas. Além disso, espero que a CNV faça um apelo para mudar os currículos das escolas militares, que – no melhor dos casos – é de um extremo neoliberalismo. E, no pior, é antipopular, no estilo das escolas militares clássicas: apoia a repressão de Contestado, glorifica a figura de um traidor como Castelo Branco… Esta história antipopular é o que separa as Forças Armadas do povo. Então, essas duas instituições – a Igreja e as Forças Armadas –, cada uma com sua especificidade, têm de tirar a mancha que possuem.
Além desses setores, quais outros que você destacaria?
Eu diria que existem outros setores, mas um que não pode ficar de fora é o dos empresários, como a Fiesp. Muitos deles financiaram o golpe, e, o que é ainda pior: financiaram a repressão. Nós temos provas que industriais, além de financiarem, acompanhavam sessões de tortura.
E torturavam também, como aqui em São Paulo, na Oban, caso do presidente da Ultragaz, o dinamarquês Henning Albert Boilesen.
Há casos em todo o Brasil. Então não é possível que a associação dos empresários e dos industriais – que financiaram a tortura, desaparecimentos, assassinatos – fique de fora. Também a imprensa não pode ficar de fora, não basta dizer: “Nós éramos contra a censura”, e ficar por isso mesmo. A CNV não poder fazer tudo isso, mas fica claro que vai dar um grande passo. Daí a importância da mobilização de que falamos para ajudar a pensar o Brasil e a repensar sua história, sua formação e seu passado. Não se deve esquecer que o passado sempre se transforma, o passado não é congelado, depende da releitura que se faz dele. Há trinta, quarenta anos atrás, índio era “para se matar”. Isso começou a ser revisto, e as lutas antiescravistas começaram a ser recuperadas. Então o passado mudou para construir o futuro. Nós temos de aproveitar essa oportunidade para lançar uma releitura da nossa formação, para saber se vamos ser gente grande no século 21ou se o nosso destino é o de “república das bananas”. Essas questões passam também pela CNV.