Liza Long: “Eu sou a mãe de Adam Lanza”
Como a tentativa de enfrentar doenças mentais com hipermedicação ou mesmo cadeia favorece, nos EUA, tragédias como a de Newtown.
Por Liza Long, em The Blue Review*
Publicado 19/12/2012 17:12
Três dias antes de Adam Lanza, 20 anos, matar sua mãe, e abrir fogo contra uma classe cheia de crianças em Connecticut, meu filho Michael (nome fictício), de 13 anos, perdeu o ônibus da escola porque estava usando calças que não eram as do uniforme.
“Eu posso ir com essas calças”, disse ele, o tom crescentemente agressivo, as pupilas negras engolindo as íris azuis.
“Elas são azul marinho”, respondi. “Sua escola diz que as calças só podem ser pretas ou cáqui”.
“Eles me disseram que eu podia usar dessa cor”, insistiu. “Você é uma vaca idiota. Posso usar as calças que bem entendo. Estamos na América, tenho direitos”.
“Você não pode usar as calças que bem entende”, eu disse, em tom afável, razoável. “E definitivamente não pode me chamar de vaca idiota. Você está proibido de brincar com seus jogos eletrônicos pelo resto do dia. E agora entre no carro que vou levá-lo para a escola.”
Vivo com um filho que tem uma doença mental. Amo meu filho, mas ele me apavora.
Algumas semanas atrás, Michael puxou uma faca e ameaçou me matar e depois se suicidar, quando o mandei devolver à biblioteca livros que já estavam vencidos. Seus irmãos de 7 e 9 anos já conhecem o esquema de segurança – antes mesmo que eu mandasse, correram para o carro e trancaram as portas. Eu consegui tirar a faca das mãos do Michael, e então recolhi metodicamente todos os objetos pontiagudos da casa e os guardei num pote de plástico que agora anda colado em mim. Enquanto isso, ele continuava, aos gritos, a me insultar e ameaçar me matar ou me ferir.
Aquele conflito acabou com três corpulentos policiais e um paramédico contendo meu filho para colocá-lo em uma maca, de onde seguiu para uma dispendiosa viagem de ambulância até a unidade de saúde de emergência mais próxima. O hospital psiquiátrico não tinha leito naquele dia, e Michael se acalmou no pronto socorro. Depois, eles nos mandaram para casa com uma receita de Zyprexa e uma consulta marcada com um psiquiatra infantil.
A gente ainda não sabe o que Michael tem. Espectro do autismo, ADHD, Transtorno Desafiador ou Desordem Explosiva Intermitente – todos eles foram sugeridos nos vários encontros com oficiais de condicional, assistentes sociais, conselheiros e professores e administradores da escola. Ele está metido num pântano de medicações antipsicóticas e alteradoras do humor, uma novela russa de planos comportamentais. Nada parece funcionar.
No início do sétimo ano, Michael foi aceito em um programa intensivo para estudantes superdotados em matemática e ciência. Seu QI está acima da média. Quando está de bom humor, ele de bom grado falará sobre assuntos que vão da mitologia grega às diferenças entre a física einsteiniana e newtoniana. Está de bom humor grande parte do tempo. Mas, quando não está, é preciso cuidado. E é impossível prever o que o deixará fora de si.
Depois de algumas semanas em sua nova escola, Michael começou a exibir comportamentos cada vez mais estranhos e ameaçadores. Decidimos transferi-lo para o programa local de comportamento mais restritivo, um ambiente escolar contido onde crianças que não podem conviver em classes normais podem reivindicar seu direito a cuidados públicos e gratuitos das 7h30 às 13h50, de segunda a sexta, até completarem 18 anos.
Na manhã do incidente das calças, Michael continuou a argumentar comigo no carro. Ao fim, pediria desculpas e se mostraria cheio de remorsos. Pouco antes de chegar à escola, ele disse: “Mãe, me desculpa. Posso jogar vídeo game hoje?”
“De jeito nenhum”, respondi. “Você não pode agir como agiu de manhã e pensar que terá seus privilégios de volta tão rapidamente.”
Seu rosto assumiu uma expressão fria, e seus olhos ficaram cheios de uma raiva calculada. “Então vou me matar”, ele disse. “Vou pular fora do carro e me matar.”
Isso aí. Depois do incidente da faca, eu disse para ele que, se falasse essas coisas de novo, eu o levaria direto para o hospital psiquiátrico, sem se, e ou mas. Não fiz mais nada, exceto virar o carro na direção oposta, para a esquerda ao invés da direita.
“Onde você está me levando?”, ele disse, repentinamente preocupado. “Aonde estamos indo?”
“Você sabe aonde estamos indo”, respondi.
“Não! Você não pode fazer isso comigo! Você está me mandando para o inferno! Está me mandando direto para o inferno”.
Estacionei em frente ao hospital, acenando freneticamente para um dos médicos que estava de pé ali fora. “Chame a polícia”, eu disse. “Correndo.”
Michael já se encontrava então totalmente fora de si, gritando e batendo. Eu o abracei apertado, de modo que não pudesse escapar do carro. Ele me mordeu várias vezes e cravou os cotovelos na minha caixa torácica repetidamente. Ainda sou mais forte que ele, mas isso não vai durar muito tempo.
A polícia veio rapidamente e levou meu filho gritando e chutando para dentro das entranhas do hospital. Comecei a tremer, e meus olhos se encheram de lágrimas conforme eu preenchia a ficha de entrada: “há dificuldades com… em que idade seu filho… havia problemas com… seu filho alguma ver experimentou… seu filho fez…”
Pelo menos agora temos seguro de saúde. Recentemente aceitei um emprego em uma faculdade local, desistindo da minha carreira como freelancer, porque quando você tem uma criança como essa, precisa de benefícios. Faz qualquer coisa para conseguir esses benefícios. Nenhum plano individual de saúde cobre esse tipo de coisa.
Durante dias, meu filho insistiu que eu estava mentindo – que fiz tudo aquilo pra me livrar dele. No primeiro dia, quando liguei para saber como estava, ele disse, “eu te odeio. E vou me vingar assim que sair daqui.”
No terceiro dia, ele era novamente o meu menino doce e calmo, todo remorsos e promessas de tornar-se melhor. Venho ouvindo essas promessas durante anos, não acredito mais nelas.
Na pergunta do formulário, “Quais suas expectativas quanto ao tratamento?”, escrevi, “Preciso de ajuda”.
E é verdade. Esse problema é grande demais para eu resolvê-lo sozinha. Às vezes não há boas opções. Então o que você tem a fazer é só orar e confiar que, em retrospectiva, as coisas vão fazer sentido.
Estou compartilhando essa história porque sou a mãe de Adam Lanza. Sou a mãe de Dylan Klebold e de Eric Harris. Sou a mãe de James Holmes. Sou a mãe de Jared Loughner. Sou a mãe de Seung-Hui Cho. E esses jovens – e suas mães – precisam de ajuda. No despertar de outra horrenda tragédia nacional, é fácil falar sobre armas. Mas é tempo de falar sobre doença mental.
De acordo com a revista Mother Jones, de 1982 para cá ocorreram 61 assassinatos em massa envolvendo armas de fogo nos Estados Unidos. Dentre os matadores, 43 eram homens brancos, e apenas uma era mulher. O foco da Mother Jones foi em se os assassinos obtiveram suas armas legalmente (a maioria conseguiu). Mas sinais de doença mental extremamente visíveis, como esses, poderiam nos levar a considerar quantas pessoas nos EUA vive com medo, como eu.
Quando perguntei ao assistente social do meu filho sobre minhas opções, ele disse que a única coisa que eu poderia fazer seria dar um jeito de acusá-lo de algum crime. “Se ele voltar ao sistema prisional, será fichado”, disse. “É o único modo de conseguir alguma coisa. Ninguém vai prestar atenção a você a não ser que faça acusações contra ele.”
Não creio que meu filho seja caso de cadeia. O ambiente caótico exacerba a sensibilidade de Michael a estímulos sensoriais e não é capaz de lidar com a patologia subjacente. Mas parece que os Estados Unidos estão usando a prisão como solução para pessoas mentalmente doentes. De acordo com o Human Rights Watch, o número dos doentes mentais nas prisões dos EUA quadruplicou de 2000 a 2006, e continua a aumentar. Na verdade, o índice de doentes mentais entre a população encarcerada é de 56%, cinco vezes maior do que a da população não prisioneira.
Com os centros de tratamento e hospitais estatais fechados, as prisões são agora o último lugar a se recorrer em caso de doença psiquiátrica – Rikers Island, County Jail de Los Angeles e Cook County Jail em Illinois abrigaram os maiores centros de tratamento do país em 2011.
Ninguém deseja mandar para a cadeia um gênio de 13 anos de idade que ama Harry Potter e sua coleção de animais. Mas nossa sociedade não nos dá outras opções, com seu estigma à doença mental e seu sistema de saúde fragmentado. Então outra alma torturada atirará em um restaurante fast food. Em um shopping. Uma classe de jardim da infância. E a gente vai juntar as mãos e dizer, “Alguma coisa precisa ser feita.”
Concordo que alguma coisa precisa ser feita. É tempo de termos uma conversa ampla e significativa sobre doença mental. É o único modo de a nossa nação poder curar-se de verdade.
* Liza Long é escritora, música e estudiosa da antiguidade clássica. Também é mãe de quatro crianças brilhantes e amadas, uma delas com necessidades especiais.
Fonte: Outras Palavras