Um gênio das curvas: Niemeyer faria 105 anos hoje

 Nunca é demais recordar as criações de Oscar Niemeyer. Especialmente neste sábado, 15 de dezembro, em que ele completaria 105 anos. 

"Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein", Oscar Niemeyer

Na breve história de cinco séculos do Brasil ainda são relativamente poucos os brasileiros que, pelo gênio criativo, conseguiram ir além das fronteiras do nosso imenso país para se afirmar no resto do mundo. Oscar Niemeyer, o arquiteto de Brasília, é um deles. Mestre do concreto armado, elemento plástico ao qual seu nome está definitivamente ligado, ele semeou, ao longo de 8 décadas de trabalho ininterrupto, obras arquitetônicas que mostram, todas, a sua marca precisa.

Autor de projetos para diversos países, Niemeyer continuou a produzir até o fim, aos 104 anos de idade, em seu estúdio no Rio de Janeiro, com a mesma intensidade de talento e de alma. Com a mesma energia, não parou de viajar de um lado para outro, seguindo pessoalmente a execução dos seus projetos. Para ele, a arquitetura não é ciência exata: é, muito mais, profissão de fé, de beleza, de imaginação e de poesia.

Para usar suas próprias palavras “é preciso aprender a velha lição do passado: a arquitetura capaz de seguir a evolução da técnica; o claro e o escuro; a terceira dimensão; a escala humana; tudo aquilo que, desde sempre procurado, foi depois esquecido”. Niemeyer é um clássico porque, embora tenha atingido as audácias fantásticas do futurismo, afunda as suas raízes naquilo que de melhor foi capaz de produzir o gênio humano: da Grécia à Roma antigas, com longa parada na mística das catedrais góticas, absorvendo a luminosidade e a elegância dos palácios do Renascimento, na alegria do barroco, ele não desprezou nada. Tudo absorveu, digeriu e metabolizou para depois sintetizar na sua obra.

No Rio de Janeiro, diz-se que beleza é fundamental, e Niemeyer era carioca da gema, do bairro de Laranjeiras. Mas para se entender esse grande mestre da arquitetura contemporânea não basta possuir o senso, e nem mesmo ser dono do mais profundo conhecimento da arte e do pensamento do Ocidente. É preciso também conhecer e compreender o Brasil. Pois são exatamente a alma e a natureza brasileiras as componentes que fazem de Oscar Niemeyer um caso único na arquitetura contemporânea. Ele gostava de citar os comentários do seu mestre e amigo Le Corbusier enquanto examinava algumas fotografias de seus projetos: “Oscar, você tem sempre diante dos olhos as montanhas do Rio de Janeiro. Você faz o barroco com concreto armado…”

Le Corbusier estava muito próximo da verdade. A concepção barroca portuguesa de ocupação do espaço predomina em toda a arquitetura e urbanística do Brasil até as primeiras décadas do século 20. A mentalidade portuguesa produziu cidades cujas formas obedecem substancialmente as características do lugar. Sensível e fiel a essa herança tradicional, pela qual nutre amor e respeito, Niemeyer enfrentou desde o início a delicada questão da integração entre natureza e arquitetura, tema tão importante para a moderna mentalidade ecológica. Nascido e criado em um país – e particularmente na região do Rio de Janeiro – com a presença constante do mar, das praias, das montanhas arredondadas e da vegetação luxuriante, para Niemeyer são naturais a paixão pelas curvas e o horror ao predomínio da linha e dos ângulos retos, tão amados pelos arquitetos racionalistas.

“Não é o ângulo reto que me atrai – dizia Niemeyer – e nem sequer a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas nuvens do céu, no corpo da mulher amada. Todo o universo é feito de curvas. O universo curvo de Albert Einstein”.

O amor de Niemeyer pelas curvas exala inclusive um poder de sedução. Le Corbusier, que já no final dos anos 20 prestava atenção aos delírios arquitetônicos do catalão Gaudí, foi tocado e seduzido pela ideia de liberdade plástica e de amor curvilíneo do seu discípulo brasileiro.

A carreira internacional de Niemeyer começou em 1939, com o projeto do pavilhão brasileiro para a Feira Internacional de Nova York. Essa é uma história que merece ser contada.

Lúcio Costa, o arquiteto brasileiro que foi depois o urbanista de Brasília, vencera o concurso para o projeto do pavilhão. Mas Costa considerava o projeto de Niemeyer melhor que o seu, e assim, generosamente, se retirou, dando a Niemeyer a sua grande oportunidade. Como resultado, o pavilhão brasileiro, com arquitetura de Niemeyer e pinturas murais de Cândido Portinari, foi julgado pelos críticos o mais bonito da feira. A mesma coisa aconteceu poucos anos depois, para o edifício sede da ONU em Nova York. Mas dessa vez foi Le Corbusier quem entregou o verdadeiro projeto do edifício ao jovem Niemeyer.

Em 1957, das mãos do então presidente Juscelino Kubitschek, Niemeyer recebeu a incumbência mais significativa de toda a sua carreira: projetar os edifícios monumentais de Brasília, a nova capital. A empresa era uma corrida contra o tempo e as dificuldades. A capital deveria estar pronta para a inauguração em 1960, ao final do governo Kubitschek. Lúcio Costa, Niemeyer e dezenas de milhares de técnicos e operários se transferiram para aquela região, o centro geográfico do país, que era, naqueles tempos, uma imensa savana praticamente desabitada.

A confiança depositada no arquiteto produziu os seus frutos. Quatros anos depois, ou seja em 1961, uma coleção de verdadeiras obras-primas arquitetônicas sobressaia acima das copas das árvores da savana. O Palácio da Alvorada, residência presidencial, os ministérios do governo federal, o Palácio do Planalto (sede do governo), o Supremo Tribunal, o Parlamento, este último com suas formas ligadas a um mundo ainda de ficção científica, a catedral, o teatro de Brasília, e tantos outros. “Como arquiteto – disse Niemeyer – o que mais buscava era encontrar uma solução estrutural que se tornasse característica da cidade. Concentrei-me profundamente no desenho de colunas finas, finíssimas, para que parecesse que os palácios apenas tocavam o piso”.

Brasília foi efetivamente inaugurada em 1960. Niemeyer viveu no local durante quase todo o tempo da construção, para controlar a execução da maior parte dos projetos. Ensinou na Universidade da capital, mas nos anos seguintes, devido aos enormes problemas políticos e econômicos que sacudiram o Brasil, ele abandonou a Universidade e, pouco depois, a própria cidade de Brasília.

Com o advento da ditadura militar, Niemeyer praticamente perdeu toda possibilidade de trabalhar no Brasil. Ele viaja ao exterior, portanto, ao Velho Mundo, onde encontra compreensão e solidariedade. De De Gaulle e de André Malraux, líderes máximos da França na época, obteve o decreto que lhe permitiu trabalhar na França como qualquer arquiteto francês. Surgiram ali, entre tantos outros, os projetos da nova sede do Partido Comunista e o projeto do “Espaço Oscar Niemeyer” (Le Havre) com suas formas curvas e suaves, quase abstratas. Foi convidado por Boumediènne, então presidente da Argélia, a visitar o país. Surgem depois disso os projetos para as universidade de Argel e de Constantina, com os seus famosos vãos de 50 metros, bem como o da Grande Mesquita da capital. Do editor Mondadori, que o levou para a Itália, recebeu a encomenda do projeto da nova sede da empresa em Milão. Durante muito tempo Niemeyer considerou esta a sua obra mais bela e refinada, “porque existe um ritmo desigual nos seus arcos que lembram aqueles das catedrais góticas. Ali existe uma beleza que vai além da própria arquitetura”.

Logo depois, chega a vez dos projetos para as empresas Burgo e FATA de Turim, obras onde o cimento reina soberano e o engenheiro Morandi, um mestre na matéria, explica: “Pela primeira vez foi-me concedido mostrar, numa obra moderna, tudo aquilo que conheço do concreto armado”. A palavra beleza, quase excluída da arquitetura, volta a ocupar com Niemeyer o seu lugar de honra. Ele é na verdade um escultor que faz arquitetura.

Um último aspecto que deve ser ressaltado na personalidade desse genial brasileiro é o conceito de espaço e ritmo, empregado nas grandes catedrais medievais, e tão visceral em Niemeyer. A catedral de Brasilia, com sua estrutura que leva o olhar do espectador para o céu e o infinito, possui o mesmo espírito de profunda e refinada religiosidade bem evidente no desenho das igrejas góticas. No entanto, Niemeyer sempre se declarou um ateu convicto…, mas quando ele falava da “suia” catedral, suas palavras moltravam uma palpitação mística: “De todas as minhas obras em Brasília, a catedral é a que mais gosto. Talvez porque seja a mais criativa, em contraste com tudo aquilo que já foi feito nesse sentido. A entrada é escura, em contraste com a nave cheia de luz e cores que se abre para o infinito como se quisesse ligar a terra ao céu”.

Ao mundo, Niemeyer preferiu apresentar a sua imagem de combatente incansável da mediocridade e da imobilidade; homem seco, de voz baixa e pausada, raramente capaz de uma gargalhada, obstinado nas suas motivações e sempre audaz nos seus projetos. Avesso e pouco receptivo às homenagens, o “sonhador do cimento” sintetiza a sua vida nas palavras que escreveu por ocasião da mostra retrospectiva que aconteceu em Turim e Bolonha, na Itália, em 1987: “A arquitetura sempre foi para mim um passatempo ao qual dediquei toda a minha vida; um trabalho que me atrai e me domina, mas ao qual não atribuo uma importância maior. Para mim o importante é a vida, a amizade, e sentir-me bem comigo mesmo”.

Fonte: Portal 247