Joan E. de Oliveira: Capistrano de Abreu, um vaqueiro das ideias
Quase um século depois, a obra de João Capistrano de Abreu continua de pé, edificada firmemente. É obra de referência, indispensável para quantos queiram conhecer a fundo a história do nosso país.
Por Joan Edesson de Oliveira*
Publicado 27/11/2012 10:56
O historiador cearense Capistrano de Abreu é apontado, de forma quase unânime, como um dos principais – se não o principal –, dentre os nomes da historiografia brasileira entre o final do século 19 e as primeiras décadas do século 20. Largamente estudado desde a sua morte, quando se constituiu a Sociedade Capistrano de Abreu, é tido como elo entre a produção de Francisco Adolfo de Varnhagen e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no século 19, e a corrente modernista representada por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, nas décadas de 1930 e 1940 (GONTIJO: 2007, 41).
A figura de Capistrano é cercada pelo anedotário, pelo pitoresco e pelo folclórico. Decorridas mais de oito décadas desde a sua morte, seus biógrafos incorporaram a seu perfil toda uma construção que fala de um homem modesto, desleixado com a aparência pessoal, crítico mordaz muitas das vezes. José Honório Rodrigues reconhece que nos estudos sobre Capistrano destacam-se muito “estes aspectos anedotários e pitorescos, interessantes para a compreensão de sua fisionomia humana, mas nem sempre fiéis e exatos” (RODRIGUES: 1977a, XXV). José Honório afirma ainda que
“Mais valeria distinguir os traços do homem na sua vida diária, seu feitio, suas tendências, suas características, gostos, costumes e ojerizas. E a correspondência serve para singularizar e concretizar a pessoa tão genuinamente brasileira e tão intensamente original de Capistrano” (RODRIGUES: 1977a, XXV).
A avidez pela leitura
A avidez do historiador pela leitura compõe também este anedotário. Capistrano seria capaz, por exemplo, de, andando a cavalo e absorto com a leitura, continuar lendo mesmo depois de derrubado por um galho. Enquanto a montaria seguia em frente sem o seu cavaleiro, este lá ficara deitado no chão sem interromper a leitura. Doutra feita, hospedado na fazenda de Virgílio Brígido, lendo na rede durante um temporal, um raio caiu sobre a casa e parte do telhado desabou; enquanto todos correram para fora, Capistrano ficara lá, entretido com a leitura, sem se dar conta do que acontecera. Na infância, quando os meninos do colégio em que estudava iam brincar nas areias do Morro do Moinho, Capistrano se deixava ficar com um livro até a hora de regressar à escola. Era capaz de ler a cavalo ou sob tempestade, como afirma Rebeca Gontijo (GONTIJO: 2007, 45-47).
Esta avidez pela leitura parece ir além do anedotário. José Honório afirma que Capistrano nunca foi “um destes trabalhadores heroicos de que necessita a ciência. Trabalhava pouco e lia muito e sempre” (RODRIGUES: 1977a, XXV). Na sua vasta correspondência, por mais de uma vez o próprio Capistrano se refere a isto. Nas “(…) cartas que enviava, apontava a leitura como uma certa obsessão e, por vezes, indicava que o desejo era tamanho que o fazia, inclusive, aprender uma nova língua, somente para que a leitura se fizesse sem interrupções de ida a um dicionário” (AMED: 2006, 150).
A obsessão pela leitura revela o historiador criterioso, cuidadoso ao extremo, incapaz de certificar “coisa alguma senão por muitos aprovada e por documentos que mereciam fé” (RODRIGUES: 1977b, XLVI). Tal gosto ou obsessão pela leitura levou o historiador, inclusive, a dominar diversos idiomas, para ler os textos no original, com facilidade, sem necessitar recorrer com frequência ao dicionário. Conhecia francês, espanhol, italiano, inglês, latim, alemão, holandês, sueco, quase tudo aprendido como autodidata, deitado na sua inseparável rede nordestina.
A busca pelos sertões
Capistrano tinha outra obsessão: a história do sertão. Quando a maioria dos historiadores e a quase totalidade da nossa historiografia abordavam o período colonial a partir do litoral, dentro de uma perspectiva de ocupação da terra pela costa, Capistrano se voltava para dentro do Brasil. Para ele, como revela em carta a João Lúcio de Azevedo, não havia “questão mais importante que a ruptura da grande curva do S. Francisco, a passagem dos Cariris e da Borborema, a entrada no Parnaíba, o caminho terrestre de Maranhão a Bahia” (ABREU: 1977b, 16).
Quando Capistrano de Abreu apareceu na historiografia brasileira, esta centralizava seu interesse especialmente nas comunidades do litoral. Ele viu o sertão e o caminho como processo de incorporação e dilatação da fronteira ocidental: era um campo novo, um método de investigação e interpretação original da formação colonial do Brasil. O sertão e os caminhos são um fato de criação da vida brasileira (RODRIGUES: 1977b, LIII).
O que acontecera, no período colonial, naquela parte do Brasil compreendida entre os rios São Francisco e Parnaíba, constituía para Capistrano o verdadeiro “nó de nossa história”, como revela em outra carta ao mesmo João Lúcio de Azevedo (ABREU: 1977b, 82). Com João Lúcio – um de seus principais interlocutores durante largo período, com quem trocou vasta correspondência – é que Capistrano mais se debruça sobre essa questão a que chama de história sertaneja.
Embora nos Capítulos de história colonial Capistrano tenha abordado essa questão, esse é um tema a que ele gostaria de voltar, tanto numa revisão dos Capítulos… quanto na reunião de documentos sobre a história sertaneja. Os dois projetos foram sempre adiados e jamais concluídos, embora ele tenha se referido a eles tantas vezes. Mais uma vez, em correspondência enviada a João Lúcio de Azevedo, confessa que a ideia de uma nova edição dos Capítulos… ora o atrai, ora o repele, e argumenta que precisaria de encontrar mais documentos relativos à região entre o São Francisco e o Parnaíba para que fosse atraído para esse projeto. Confessa ainda, na mesma carta, o plano da obra seguinte, dizendo que “os documentos para História do Sertão do Brasil, se o editor o quiser, terão 400 páginas mais ou menos” (ABREU: 1977b, 87).
É nos Capítulos de história colonial, notável obra de síntese – “a mais perfeita síntese jamais realizada na historiografia brasileira” (RODRIGUES: 1977b, LII) –, que Capistrano vai definir a sua célebre civilização do couro, a civilização do sertão.
De couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e mais tarde a cama para os partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água, o mocó ou alforje para levar comida, a maca para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagem, as bainhas de faca, as broacas e surrões, a roupa de entrar no mato, os banguês para curtume ou para apurar sal; para os açudes, o material de aterro era levado em couros puxados por juntas de bois que calcavam a terra com seu peso; em couro pisava-se tabaco para o nariz (ABREU: 200, 153).
A civilização do sertão, seus costumes, seus caminhos, eram objeto novo na historiografia brasileira. Capistrano atribuiu ao tema uma importância até então jamais levantada por outro historiador. A conquista e o povoamento do sertão foram por ele estudados com tanto afinco e com tanta base documental que o papel do sertão e dos caminhos modificou profundamente o escrito e a metodologia histórica no Brasil (RODRIGUES: 1977b, LII).
O povo como protagonista
Capistrano inovou novamente ao introduzir o povo na historiografia brasileira. Nossa história era uma história sem povo, uma história dos grandes homens e seus grandes feitos. Coube a ele trazer o povo para essa história. Em carta a João Lúcio de Azevedo ele declara: “A mim preocupa o povo, durante três séculos, capado e recapado, sangrado e ressangrado…” (ABREU: 1977b, 166).
José Honório Rodrigues afirma que para Capistrano a história era também a emoção, o sentimento e o pensamento dos que viveram. Capistrano queria, “como bom historiador, colocar-se em simpática comunhão com o espírito dos atores e autores do drama” (RODRIGUES: 1977b, XLVI).
Não era a gente de ficção que andava em suas páginas, mas a gente real e concreta, que vivera e trabalhara. Ele dava, assim, carne e sangue à sua história e, como historiador, achava mais bela a verdade que a novela. Os ideais variam tanto de século a século que era natural que nos Capítulos de história colonial fosse agora o povo a personagem principal. Sim, aqui se vê o povo capado e recapado, sangrado e ressangrado. Mas, para vê-lo assim era preciso ter tido a formação que o próprio Capistrano se dera, ler o que ele lera, os clássicos, os liberais, os socialistas, os radicais, e viver livre de interesses e proveitos (RODRIGUES: 1977b, XLIX).
A preocupação do historiador com o povo não dizia respeito apenas à sua centralidade na história, ele também se preocupava com a formação e as características do povo brasileiro. Antecipando-se em décadas à formulação de Darcy Ribeiro, que caracterizava o povo brasileiro como uno e novo, Capistrano, em carta a Mário de Alencar, já colocava a dúvida: “E além disto a questão terebrante: o povo brasileiro é um povo novo ou um povo decrépito?” (ABREU: 1977a, 226).
Apesar da comparação do Brasil com o jaburu, a quem qualificou como a ave que simboliza a nossa terra, com a sua “austera, apagada e vil tristeza” (ABREU: 1977b, 21), Capistrano era um homem animado de patriotismo, que amava, admirava o Brasil e esperava muito dele (RODRIGUES: 1977b, LVI). O historiador sabia das dificuldades de construção de um grande país como o nosso, como revelou em mais uma correspondência a João Lúcio de Azevedo: “O futuro reserva ao Brasil um trabalho muito mais árduo que o dos holandeses, obrigados a fazer a Holanda depois de Deus ter feito o mundo” (ABREU, 1977b, 108).
A íntegra deste artigo pode ser lida na versão impressa da revista Princípios, edição 119 (junho/julho 2012).
*Joan Edesson de Oliveira é doutorando em Educação Brasileira na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará.