Audiência da Comissão da Verdade reúne mais 200 pessoas em Marabá
A Comissão Nacional da Verdade realizou neste sábado (17), em Marabá, no Pará, uma audiência pública que reuniu mais de 200 camponeses e índios Suruí da região do Araguaia. Durante cerca de três horas a representante da CNV Maria Rita Kehl e outros membros da comissão ouviram os relatos de mais de 10 pessoas que sofreram torturas de militares do Exército brasileiro.
Por Mariana Viel, de Marabá (PA), especial para o Vermelho
Publicado 19/11/2012 02:39
Entre os anos de 1972 e 1974, militares se estabeleceram no sul do Pará para combater os militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) que lideravam o movimento revolucionário conhecido como a Guerrilha do Araguaia.
Durante a abertura do evento, Maria Rita afirmou que a investigação dos crimes cometidos pela ditadura militar na região do sul do Pará é essencial para o esclarecimento da história do país. “Porque aqui foram praticadas as piores injustiças. Quantas pessoas não foram maltratadas e perderam as suas terras? O Estado achava que podia tudo. É muito importante que se saiba o que aconteceu para que isso não ocorra mais”.
Ela explicou a instalação da Comissão Nacional da Verdade pela presidenta Dilma Rousseff em maio de 2012 representa a primeira iniciativa do Estado brasileiro para investigar e se responsabilizar pela culpa dos crimes praticados por agentes da repressão.
O representante do PCdoB no Grupo de Trabalho Araguaia (GTA) e membro do Comitê Paraense pela Memória e Verdade, Paulo Fonteles Filho, reforçou que a ditadura militar brasileira foi letal para todo o povo brasileiro, mas foi pior ainda na região do Araguaia. “A invasão militar vitimou centenas de trabalhadores rurais, perseguiu os índios, camponeses e aqueles que com armas lutaram para restabelecer a liberdade e a democracia”.
Também participaram da atividade representantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Pastoral da Juventude, o Levante Popular da Juventude, a Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (Feab), o movimento Debate e Ação – formado por alunos de ciências sociais da UFPA –, e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Osvaldo Bertolino, da Fundação Maurício Grabois, falou que o resgate dos fatos que aconteceram no período da guerrilha é fundamental “para estabelecer a verdade, criar elementos para que aqueles que cometeram crimes sejam punidos e para que os camponeses que lutaram com os guerrilheiros tenham seus direitos assegurados”.
Relatos
Em seus relatos, indígenas e camponeses falaram do sofrimento que passaram durante os anos em que os militares aturam na região. Além das agressões físicas, eles ainda carregam as marcas das torturas psicológicas e do medo.
O ex-cacique da aldeia Itahy, Tiwabu Suruí – que viveu por oito anos em São Paulo – conta que quando retornou à região se assustou com a grande movimentação dos soldados. Durante três anos ele foi obrigado a servir de guia dos militares na mata. Emocionado, ele relembra que teve que se despedir da família sem saber se voltaria. Tiwabu diz que os soldados ordenaram que ele não fizesse perguntas, caso contrário seria jogado do avião.
Para a índia Arihera Suruí, da aldeia Sororó, as piores lembranças do conflito estão relacionadas aos hábitos e costumes do povo indígena. Segundo ela, os índios foram proibidos de caçar e os mais jovens sofreram muito com a fome nesse período. Ela relata que quando ouvia o barulho dos tiros na mata pensava que seus irmãos e parentes estavam sendo mortos.
O camponês Eucliedes Pereira de Sousa (o Beca) diz que foi preso no dia 14 de outubro de 1973 e levado como “terrorista” – designação usada pelos militares para identificar os heróis da guerrilha – para o alto da Serra das Andorinhas. “Quando cheguei em Xambioá já tinham companheiros meus presos lá”. Além de choques elétricos, ele foi obrigado a cavar uma cova que, segundo os militares, seria usada para sepultá-lo. “Eles me mandaram cavar um buraco e falaram que iam me enterrar vivo”. Ele afirma que em seguida viu a cabeça do guerrilheiro Arildo Valadão, o Ari, ser colocada na cova.
Lauro Rodrigues dos Santos, que hoje integra a diretoria da Associação dos Torturados da Guerrilha do Araguaia, é dos camponeses que carregam no corpo as piores marcas da repressão militar. Aos 15 anos ele perdeu parte do braço quando desarmou por acidente uma granada do Exército. Filho de seu João do Araguaia, o primeiro camponês preso na região, Lauro se emociona muito ao falar daquele período.
Segundo ele, em 1969 chegaram o primeiros guerrilheiros na região – que foram os vizinhos mais próximos de sua família por cerca de três anos. “Em abril de 1972 o pessoal do Exército invadiu a nossa residência no Araguaia. Meu pai, o Eduardo, que está aqui foi o primeiro trabalhador rural a ser preso. Ele ficou quatro meses preso no Tiro de Guerra de Marabá e em Belém. Depois que ele foi liberado o pessoal do Exército voltou na nossa região e metralhou a casa dos guerrilheiros e colocou fogo na nossa casa. Meu pai, com 10 filhos teve que sair correndo para a cidade. Nós atravessamos o rio à noite para não sermos metralhados.”
As memórias de Lauro dos antigos guerrilheiros – conhecidos pelo povo da região como os paulistas – são de muita amizade e admiração. “Eles eram um pessoal que tratava bem o povo da localidade, davam remédios para as pessoas. As coisas que eles faziam lá, até hoje, em muitos lugares o Poder Público ainda não faz. Eles faziam o bem. Apelo para que o governo nos ajude. Muita gente, como eu, ainda não foi reparado.”
Comissão da Verdade dos Camponeses do Araguaia
Um dos marcos mais importantes da audiência deste sábado (17) foi a criação da Comissão da Verdade dos Camponeses do Araguaia. Segundo o presidente da Associação dos Camponeses do Araguaia, Sezóstrys Alves da Costa, a comissão – que será composta por sete camponeses – irá subsidiar de forma mais consistente a questão dos camponeses no processo da Guerrilha. “Vamos produzir um relatório que contemple todos os camponeses. Ao final vamos apresentar esse documento para a Comissão Nacional da Verdade para que ela possa concluir seu relatório. Isso vai ser fundamental para que a história possa se tornar pública e oficial.”