Medeiros e Lima: Ilhas Diaoyu, uma histórica disputa
A China e o Japão vivem o momento mais difícil de suas relações diplomáticas, desde que as mesmas foram reestabelecidas em 1972. A luta pelas Ilhas Diaoyu (Senkaku, em japonês) é atualmente um dos mais delicados conflitos da região da Ásia-Pacifico. A disputa envolve diretamente as três maiores economias do mundo – EUA, China, Japão – e ainda Taiwan.
Por José Medeiros da Silva e Rafael Gonçalves de Lima*
Publicado 05/11/2012 10:07
Além de sua relevância econômica e estratégica, o que torna essa disputa mais sensível é o fato da mesma despertar memórias dolorosas, especialmente entre o povo chinês. Por sua complexidade e devido ao momento delicado pelo qual passa a economia mundial, esse conflito deve interessar a todos, inclusive ao Brasil.
A China advoga sua soberania afirmando que, já na Dinastia Ming (1368-1644), as ilhas estavam sob sua jurisdição, sendo um ponto estratégico da sua defesa contra as invasões de piratas japoneses ao longo da costa sudeste do país. Ainda segundo a posição chinesa, na dinastia Qing (1644-1911), as ilhas Diaoyu foram colocadas sob a jurisdição do governo local de Taiwan, além de manterem-se como elemento de sua defesa costeira. Segundo os chineses, tanto em termos históricos, geográficos e jurídicos, sua soberania sobre as ilhas em litígio é indiscutível (1).
Como Taiwan também reivindica o direito sobre as ilhas, o governo chinês tem sido cauteloso para não alimentar as rivalidades entre as duas partes. Na verdade, tem atuado com muita habilidade para, inclusive, usar a situação adversa e fortalecer seus laços de amizade. Além de apoiar declarações taiwanesas que contestam a posição japonesa, a China tem, por exemplo, defendido e oferecido proteção aos pescadores taiwaneses que costumam trabalhar nas imediações das ilhas.
Essas atitudes ajudam a criar um ambiente de confiança entre Pequim e Taipei. E isso é um elemento fundamental para que ambos atuem juntos na busca de uma solução benéfica aos interesses mais amplos dos chineses. Na visão chinesa, não se trata da defesa de algumas ilhotas, ricos em recursos marítimos, minerais ou energéticos, como algumas análises procuram insinuar. Para a China, defender as ilhas Diaoyu é defender sua própria soberania territorial e, principalmente, sua dignidade como nação.
Pelo lado japonês, o governo informa que a partir de 1885 seu país começou a averiguar a situação das ilhas e constatou que, além de desabitadas, não apresentavam nenhum sinal de ter estado sobre o controle da China. Com base nessa constatação, em 14 de janeiro de 1895, o governo publica uma resolução para incorporar as ilhas ao seu território(2). Dito de outro modo, até janeiro de 1895, as ilhas eram terra nullius, ou seja, uma terra de ninguém.
É esse o principal argumento japonês para persuadir de que o processo de apropriação das ilhas Diaoyu se deu de forma legítima e, portanto, em consonância com o direito internacional. O Japão faz questão de enfatizar que as ilhas Diaoyu não faziam parte nem de Taiwan, nem das Ilhas dos Pescadores (Penghu Qundao, em chinês), áreas chinesas “cedidas” para o Japão “em perpetuidade e plena soberania”, depois da guerra de 1894-95, conforme o estabelecido no Artigo II do Tratado de Shimonoseki(3).
O Tratado de Shimonoseki foi um documento assinado em abril de 1895 pelos governos da China e do Japão para formalizar o fim da Primeira Guerra Sino-Japonesa. Segundo o acordo, o império chinês é forçado a “ceder Taiwan ao Japão; abrir mão da cerimônia tributária com a Coreia e a reconhecer sua independência, a pagar uma significativa indenização de guerra; e a ceder para o Japão a península de Liaodong, na Manchúria, incluindo os portos estrategicamente localizados de Dalian e Lushun (Port Arthur)(4)”.
A ênfase de que as ilhas Diaoyu não eram parte nem de Taiwan nem das Ilhas dos Pescadores é o elemento central na argumentação japonesa. Essa ênfase tem por objetivo justificar que o processo de apropriação desse conjunto de ilhotas foi diferente de outras conquistas territoriais obtidas na mesma época pelo império nipônico. Essa desvinculação entre a incorporação entre das ilhas e o momento histórico no qual ela ocorreu é intencional, pois, depois de derrotado na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o Japão foi obrigado a devolver todo o território chinês por ele anexado.
Mesmo que se considere como verdadeira a hipótese de que até janeiro de 1895 as ilhas Diaoyu eram terras de ninguém, é preciso ponderar sobre a forma, o período e o contexto histórico em que o Japão decidiu pela sua anexação. Na própria justificativa do Japão está bem claro que a decisão do Gabinete do Governo se deu de forma unilateral, em plena guerra contra a China e em um contexto histórico em que o império japonês estava decidido a controlar não apenas um conjunto de ilhotas, mas um espaço estratégico, terrestre e marítimo, essencial para o seu êxito expansionista da época.
Esse atual contencioso é um resquício de um problema surgido no final do século XIX, quando várias potências imperialistas lutavam entre si e contra a China para dominá-la e expandir seu poder pela Ásia. Quando o gabinete do governo imperial japonês emitiu, em janeiro de 1895, a resolução para anexar as ilhas Diaoyu, o império chinês já estava nos últimos suspiros. Humilhações externas como a Guerra do Ópio (1839- 1842) e o saque do Palácio de Verão, promovido pelas tropas britânicas e francesas em outubro de 1860 evidenciavam a fraqueza da dinastia Qing.
Esse quadro de decomposição foi argutamente e antecipadamente observado por Karl Marx em um artigo publicado em 1853. Segundo ele, os canhões ingleses já haviam arruinado a autoridade do imperador e que a dissolução da dinastia “era tão certa como a de uma múmia cuidadosamente conservada num sarcófago hermeticamente fechado e que se expõe ao ar(5)”.
Enquanto que a dinastia Qing se esfacelava, surgia na vizinhança uma força totalitária desejosa em herdar da China o mandato celestial e se firmar como força dominante na Ásia oriental. Era o Japão, que com a Restauração Meiji (1868) fortaleceu a autoridade imperial, abriu-se para os novos conhecimentos científicos e tecnológicos desenvolvidos no ocidente e entrou no jogo com as potências ocidentais pela partilha da China. Fortalecido militarmente, o Japão opta por um rumo muito comum aos impérios, o expansionismo.
Sua ascensão é meteórica. Entre 1874 passa a controlar as ilhas Ryukyu (atual província de Okinawa); em 1875, as ilhas Curilas (atualmente em disputa com a Rússia)… Em 1895, com o triunfo na guerra contra a China, aumenta seu domínio também sobre terras chinesas. E no arvorecer do século XX, depois da vitória na guerra contra a Rússia czarista pelo controle da Manchúria e Coreia (1904-1905), o Japão consolida-se como uma importante potência econômica e militar. Mas eram apenas os primeiros passos.
No início da Primeira Guerra Mundial, o Japão derrota a Alemanha em Shandong, terra de Confúcio. O controle japonês sobre as possessões alemãs na China é reforçado pelo Tratado de Versalhes (1919), que confirmava um acordo secreto assinado com a Grã-Bretanha, França e Itália ainda durante a Guerra, em troca da ajuda naval japonesa contra os alemães(6) . Essa decisão dava ao Japão novas vantagens estratégicas, permitindo avançar ainda mais sobre a China e consolidar sua supremacia na Ásia.
Aqui façamos um parêntese. Durante as tensas negociações entre China e Japão na Conferência de Paz Versalhes, um incidente abriu o caminho da amizade entre as delegações diplomáticos chinesas e brasileiras. Em um livro publicado no Brasil em 1923, o jornalista brasileiro Afonso Lopes de Almeida, relata assim o incidente: “Em sessão secreta de uma das comissões em que chineses e brasileiros se encontravam lado a lado, o principal representante do ex-celeste-império, apesar de toda a boa vontade e empenho que pôs em dar o seu recado e dizer ao que vinha, ao fim de meia hora se sentou, fatigado e sucumbido, trêmulo e gaguejante, sem ter conseguido exprimir com precisa clareza e segurança os pensamentos que com tão grave esforço procurava manifestar. Como em roda se fizesse silêncio e, constrangido, o diplomata chinês olhasse em torno com ar de impotente desespero, o nosso principal representante se ergueu e explicou sucintamente à magna assembleia quais as intenções verdadeiras do seu colega asiático que (…) tornava patente o seu júbilo íntimo apertando repetida e comovidamente a mão do representante brasileiro (…) dois ou três dias depois, o corpo diplomático chinês (…) oferecia à nossa delegação um banquete, a que outros se sucederam (…). Assim, brasileiros e chineses ficamos amigos”(7).
Uma interpretação possível desse relato é que o representante chinês tenha conseguido se expressar razoavelmente bem, já que o representante brasileiro foi capaz de entendê-lo com clareza. O problema eram os representantes dos impérios, que já haviam previamente tomado suas decisões. Aliás, pelo mesmo relato ficamos sabendo que a delegação chinesa não podia tornar pública sua posição, devido à censura exercida sobre jornais, correios e telégrafos franceses. Deixemos aqui esse curioso parêntese.
Dentro de uma perspectiva histórica mais ampla, vitória diplomática obtida pelos japoneses em Versalhes mostrou-se relativa. A concordância das principais potências com as reivindicações japonesas em Paris despertaram entre os chineses um sentimento de um novo tipo. Seu desdobramento lança as bases que desencadeará uma mobilização social duradoura de resistência popular chinesa contra a invasão japonesa.
A ideia de ser controlada, seja pelo Japão, seja por outras potências estrangeiras passou a ser rejeitada pela nascente sociedade chinesa pós-imperial. Em 4 de maio de 1919, milhares de jovens, principalmente universitários saem às nas ruas de Pequim para protestar contra a assinatura do Tratado de Versalhes. Essas manifestações logo se espalhariam pelos diversos seguimentos sociais e em diferentes rincões do país forjando entre os chineses um novo tipo de sentimento. Esse sentimento ganhou corpo e elevou a unidade do povo chinês para um novo patamar, o nacionalismo, base sobre o qual se assenta a atual República Popular da China, fundada em 1949.
Em uma de suas históricas conferências sobre os Três Princípios do Povo, Sun Yat-sen, um dos fundadores da República chinesa, dizia que a China de então nunca tinha atingido o verdadeiro nacionalismo. “A unidade do povo chinês estendeu-se apenas até o clã, mas não até a nação (8)”. Em 1945, depois da vitória contra a ocupação japonesa, esse quadro havia se transformado completamente.
Porém, é fato histórico que a base desse sentimento nacional se fortaleceu na luta contra a dominação do império japonês, em uma luta de mais de meio século. As atrocidades, particularmente durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-45), deixaram profundas cicatrizes, fartamente documentadas e expostas em vídeos, museus ou espaços como o Memorial das Vítimas do Massacre de Nanjing, localizado na cidade do mesmo nome, capital da província de Jiangsu.
Em setembro de 1992, em visita a China, o imperador japonês Akihito fez um elevado gesto para romper com a desconfiança entre os dois países, reconhecendo que “na longa história das relações entre as duas nações ocorreu um período inglório em que o meu país infligiu grande sofrimento ao povo da China; deploro profundamente o acontecido(9)”.
Esse é apenas um, dos inumeráveis aspectos positivos da relação entre os dois países. Entre o povo, muitos japoneses se aliaram aos chineses para deter a fúria bélica daquele imperialismo. Aqui, basta recordar a voz de Hara Kiyoshi que, em 03 de dezembro de 1941, fazia, em japonês, a primeira transmissão em língua estrangeira do que é hoje a Rádio Internacional da China. Assim como ela, muitos japoneses elevaram a sua voz para ajudar a construir um mundo de paz e amizade.
Retornando à disputa pelas ilhas Diaoyu, percebe-se que suas raízes e desdobramentos estão dentro de um quadro histórico mais complexo. E desde sua origem existem potências ocidentais diretamente envolvidas.
Depois do surgimento da República Popular da China em 1949, a mesma foi excluída dos momentos-chave em que esse contencioso estava envolvido, como o Tratado de São Francisco em setembro de 1951 ou o acordo norte-americano com o Japão em 1971, onde se oficializa a devolução de Okinawa para o Japão.
Atualmente, o agravamento dessa disputa em torno das ilhas Diaoyu tem uma relação direta com os EUA. Nas suas prioridades estratégicas para o século XXI, a Ásia-Pacífico passa a ser o foco da sua política externa. Uma das justificativas para esse novo posicionamento seria a emergência do poder chinês na região, já que o mesmo poderia afetar sua segurança e seus interesses econômicos(10).
Uma leitura mais superficial nos levaria a concluir que esse deslocamento estratégico dos EUA teria por objetivo central conter a ascensão chinesa. Esse é apenas um objetivo intermediário.
Sua intensão mais profunda é assegurar na região da Ásia-Pacífico uma vantagem estratégica que o permita exercer uma posição dominante no mundo e, assim, atuar com mais força nas esferas de decisões que ordenam o poder global. Dito de outro modo, conter a China, vigiar a movimentação da Índia, manter certo nível de tensão entre os países da região, são apenas instrumentos de uma grande estratégia elaborada pelos EUA para assegurar sua capacidade de decisão sobre as questões globais essenciais para os seus interesses.
No quadro dessa nova estratégia norte-americana para Ásia-Pacífico, a aliança com o Japão é essencial. Nesse sentido, em relação às ilhas Diaoyu, mesmo que se demonstre que a posição japonesa é historicamente equivocada, os EUA tendem a ser complacentes com o seu aliado.
Porém, há uma diferença significativa entre o surgimento desse conflito, no final do século XIX e sua fase atual. Antes, era o império chinês que se desmoronava, agora é a nação chinesa que se ergue. E os chineses parecem decididos a defender-se para impedir que o seu destino seja unilateralmente por nações estrangeiras.
Divido a complexidade desse conflito, é necessário um esforço para não se jogar no esquecimento conquistas relevantes de governos, empresas e pessoas que, em diversas épocas e de diferentes maneiras, se dedicaram para fortalecer os laços de amizades entre essas duas nações asiáticas. Apesar das cicatrizes históricas, é preciso uma reflexão profunda para não transferir para gerações atuais e futuras as dores e as mágoas de nossa ancestralidade. Ao se generalizar os aspectos negativos contra qualquer povo, se abrem perigosas portas para atitudes irracionais, injustas e desumanas.
Os que lutam por um mundo mais amigo, pacífico e humano têm o direito e a responsabilidade de se expressar para que as diversas partes envolvidas nesse e em outros conflitos sejam mais racionais e considerem as recentes lições históricas, onde a ganância e insensatez geraram guerras e alastraram destruição e sofrimento para grande parte da humanidade. Encontrar saídas através das negociações é sempre o melhor caminho, mesmo que seja um caminho árduo e espinhoso. Acreditamos que nunca haverá choques entre as civilizações, mas somente entre a ignorância e a arrogância, tão comum nos impérios, mas que poderemos evitar.
Notas:
1 – Livro Branco, "Ilhas Diaoyu, uma parte integrante da China", documento compilado pelo Gabinete de Informação do Conselho de Estado chinês. http://www.chinadaily.com.cn/china/2012-09/25/content_15782158.htm
2 – “The Basic View on the Sovereignty over the Senkaku Islands, September 2012. Ministry of Foreign Affairs of Japan. http://www.mofa.go.jp/region/asia-paci/senkaku/senkaku.html .
3 – Artigo II do Tratado de Shimonoseki: http://www.taiwandocuments.org/shimonoseki01.htm
4 – Henry Kissinger: Sobre a China, Editora Objetiva, São Paulo, 2012, p. 95.
5 – Karl Marx , “A revolução na China e na Europa”. Artigo publicado no New York Daily Tribune em 14 de Julho de 1853. http://www.marxists.org/portugues/marx/1853/07/14.htm
6 – Jonathan D. Spence: Em Busca da China Moderna, Companhia das Letras, 1996, p. 290-291.
7 – Afonso Lopes de Almeida, Através da Europa, São Paulo: Monteiro Lobato, 192, “Negócios da China” p. 219-225. Nessa citação usamos a grafia atual da língua portuguesa. Uma curiosidade na introdução do livro é o relato de uma conversa que o autor teve com um jornalista romeno chamado Gabriel Dichter, quando ambos presenciavam em 28 de junho de 1919 a solenidade de assinatura do Tratado de Versalhes. Após a assinatura do representante Uruguai, a última, o romeno disse para o brasileiro: “(…) nós escreveremos um livro, tu no Brasil e eu na Romênia, para expormos às gerações futuras o que a nossa geração não foi capaz de fazer: a paz”.
8 – Sun Yat-sen, Princípio do Nacionalismo, Primeira Conferência. 27 de janeiro de 1924. Revista China em Estudo, n. 6, p. 49-59, 2004, do Departamento de Línguas Orientais, FFLCH, Universidade de São Paulo).
9 – Sérgio Caldas Mercador Abi-Sad, A Potência do Dragão: A Estratégia Diplomática da China, Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1996, p. 168.
10 – “Sustaining U.S. Global Leadership: Priorities for 21st Century Defense”, Documento produzido pelo Departamento de Estado dos EUA e anunciado pelo presidente Obama no dia 5 de janeiro de 2012. http://www.defense.gov/news/Defense_Strategic_Guidance.pdf
* José Medeiros da Silva é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Rafael Gonçalves de Lima é graduado em Relações Internacionais pela FACAMP. Ambos vivem na China. Agradecemos a Sanda Man, uma jornalista romena que trabalha na China, por relevantes ponderações e pelo título desse artigo.
**Publicado originalmente em inglês em http://www.watershed.com.br.