Fernando Vitagliano: O que deve cair com Serra?
Primeiro Serra trouxe para a eleição de 2002 o tema do medo. Fez a propaganda com a Regina Duarte estampada na TV com medo do Lula. Depois, contra Dilma, apelou para o aborto. Agora é a vez do Kit-gay contra Haddad.
Por Luís Fernando Vitagliano*
Publicado 02/11/2012 12:52
O PSDB, sob a liderança de Serra deixou de ser um partido social democrata para tornar-se um partido de valores conservadores e sair da esquerda política para representar a direita social. Com isso o partido ganhou engajamento e perdeu representatividade. Agora presta o desfavor de ressuscitar temas há muito afastados da política brasileira ao tentar marginalizar no debate político minorias em prol de certo tipo de moral dominante.
Talvez o eleitor não conheça; ou talvez muitos de nós tenhamos nos esquecido do contexto, mas é preciso recuperar um dos mais importantes projetos de sociologia aplicada do século XX, a pesquisa de Theodor Adorno nos EUA sobre a “Escala F”. Entre 1940 e início de 1950, Adorno em parceria com alguns psicólogos se propõe a estabelecer uma escala sobre a personalidade de indivíduos numa sociedade liberal que têm predisposição a se sujeitar à liderança fascista. A base da pesquisa é que existia um padrão de convicções econômicas, políticas e sociais ligados a uma personalidade autoritária. Assim, o estudo chegou ao indivíduo potencialmente fascista cuja personalidade tinha predisposição a apoiar propagandas antidemocráticas.
Esse estudo começou por conta do antissemitismo. Ou seja, da intolerância no que diz respeito às opções individuais. Propagandas conservadoras baseadas no medo e/ou no ódio violam o principio básico da republica que é a diversidade social. Misturar religião com valores sociais em propagandas políticas já se tornou há muito tempo atitude repugnante e já foi historicamente comprovado o desfavor prestado à cidadania.
Serra, segundo levantamento do próprio Datafolha, perderia estas eleições inclusive em perfis tidos como conservadores. Porque mesmo que tenham valores sociais, parte do eleitorado com o mínimo de cidadania entende que não cabe ao poder público julgamentos sociais. Igrejas e outros grupos conservadores podem ter suas convicções e uma moralidade que os delimita, não há nenhum problema nisso, mas impor sua ordem a outros grupos é autoritarismo. Assim, as críticas a políticas de diversidade só podem ser entendidas como bem sucedidas em grupos sociais que não dispõem de nenhuma cidadania ou de indivíduos que desenvolveram alguma personalidade autoritária. É falsa a noção de que educação e renda dão consciência política. O que dá consciência política é cidadania, é participação, é envolvimento nas questões públicas, e isso pode ser encontrado em pobres, ricos e médios.
Portanto, se olharmos o mapa desta votação de prefeito em São Paulo, ainda veremos que Serra se manteve vencedor nos redutos peessedebistas das regiões centrais. Mas o que os mapas não mostram são as motivações dos votos. A tentativa de marginalizar o PT com a propaganda contra este partido para garantir sua hegemonia nos próprios redutos e a exploração de temas que pregam segregação contra minorias não surtiu efeitos eleitorais em termos de crescimento de intenção de votos, mas criaram uma desmedida tensão entre militantes.
E ao considerarmos que para além dos partidos políticos, a grande imprensa defensora do status quo difundiu e defendeu teses conservadoras nesta eleição sem o menor constrangimento, não é possível esperar que tenha sido derrotado com queda de Serra o autoritarismo raivoso de alguns segmentos sociais.
Podemos até tentar esvaziar com argumentos a impressão de que propagandas antidemocráticas têm espaço e representatividade em partidos políticos no Brasil – ainda mais em partidos de envergadura nacional. É possível defender que tais propagandas são ineficientes e, portanto, devem ser abandonadas: com uma estratégia completamente diferente o PSB, por exemplo, cresceu. A crítica pode convencer o próprio PSDB a retomar defesa da politica liberal que abandonou em função da estratégia conservadora e desnutrir alguns bastiões da moralidade autoritária travestidos de liderança política.
Infelizmente, isso pode ser um movimento de longo prazo. Porque já se constituiu em prática a noção de que temas conservadores podem fazer parte da agenda eleitoral e, portanto, política. Com esse espaço, outras lideranças antidemocráticas fatalmente podem surgir. Hoje, a queda de Serra pode ser vista como a queda de um líder conservador. Mas, ainda é preciso derrubar a fração do conservadorismo ligada ao autoritarismo que forma parte da base de apoio peessedebista em São Paulo e que se nutre da hegemonia de uma imprensa tendenciosa.
Enquanto sobreviver numeroso o autoritarismo em frações da sociedade brasileira, surgirão lideranças interessadas em explorar o tema. Resta saber se podem contar com apoio, recursos e audiência para estimular novas rupturas a partir da defesa de posturas antidemocráticas como aconteceu em São Paulo do último outubro.
*Luís Fernando Vitagliano é Cientista Político e professor.
Fonte: Carta Maior