Verdadeira tempestade de lugares-comuns

Flaubert já se preocupava muito com os lugares-comuns e as frases feitas dos escritores. Chegou a escrever um dicionário enumerando as frases repetidas à exaustão pelos franceses. Entre nós, Fernando Sabino fez o mesmo. Ainda assim, sob a alegação de que escrever é um dom, mas um dom que não precisa ser aperfeiçoado, continuamos a escrever frases que, em outras circunstâncias, seriam completamente abandonadas. Vejamos:

Por Raimundo Carrero

cérebro

1. Tenho uma ideia na cabeça

Nada mais bobo. Ideias só existem na cabeça. Basta escrever: “tenho uma ideia”. Não será nos ombros nem nos braços, todos entendem claramente.

2. O craque jogou muito bem enquanto esteve em campo

Claro. “Enquanto esteve em campo” é abuso. Fora do campo ele não joga. Substituído, não participa da partida, é obvio, portanto, não merece análise.

3. Depois da solenidade, foi servido coquetel aos presentes

E os ausentes não puderam beber nem comer. Que tal cortar?

4. Atirou no amigo

Amigo não atira em amigo. Nunca escreva isso. Jamais.

5. Está correndo atrás do prejuízo

Imagina se encontra. Bobagem ilimitada.

6. A chuva que caiu ontem

Chuva não sobe nunca. Por favor, esqueça.

7. Mulher, via de regra, é romântica.

Via de regra? Que barbaridade é esta? Nunca escreva esta bobagem. Refaça agora, urgentemente.

8. Numa manhã ensolarada

Lugar-comum horrível. Pare agora.

9. A mulher caiu nos braços do marido

Nunca, jamais. Se você quer ser escritor com frases assim, esqueça.

10. Astro rei… lábios vermelhos… lua de prata

Nem pense. Mude de atividade.

11. Premido pelas circunstâncias

Esqueça, esqueça… isso não se faz… Apague e desista…

Este é apenas um exemplo muito rápido daquilo que encontramos em alguns livros, em alguns textos, e que causam surpresa. É preciso estar atento, todo cuidado é pouco para que você não aceite esse tipo de inspiração. Com certeza, não é inspiração, mas cópia do muito medíocre que vai se repetindo, repetindo, e formando a má literatura que contamina muitos escritores, sobretudo os iniciantes. Expressões como essas não passam numa oficina de criação literária porque o professor estará sempre atento. O trabalho não acaba aí. Muita coisa ainda precisa ser dita…

12. O profeta foi acompanhado por uma grande multidão

No Novo testamento esta frase aparece com frequência. Deve ser erro dos tradutores. Multidão é o coletivo de muita gente. Por que jornalistas e escritores gostam tanto desta redundância?

13. Aonde você está?

“Aonde” é para movimento; “onde”, para lugares fixos. Imagine uma pessoa explicando “aonde” está…

14. Em vida, o escritor publicou apenas um livro…

É claro, ninguém publica depois de morto. Há livros póstumos. Respeito. Minha posição, porém, é de descrença… Tudo bem. Um autor, porém, não publica depois que morre. Os espíritas acreditam que sim. Mas é algo espírita…

É assim que as oficinas procuram desenvolver o processo criativo, ao lado dos estudos de técnicas dos autores mais sofisticados e imprescindíveis. Por isso, é fundamental a presença de um professor com grande experiência na arte de escrever romances, novelas e contos, isto é, com experiência de fazer, montar e remontar histórias, desde as mais simples às mais complexas.

Nota – este texto foi publicado originalmente no jornal Pernambuco, Recife (PE).

Fonte: Rascunho – O jornal de literatura do Brasil