No Chile, aumenta a violência e repressão contra o povo Mapuche
É complexo o panorama vivido, atualmente, pelo movimento Mapuche no sul do Chile. Com nove comuneiros presos, que estiveram em greve de fome [dos quais, quatro mantiveram a greve por mais de 60 dias], juntamente com violentos enfrentamentos entre comunidades Mapuche e forças policiais no sul do país.
Por: Rocío Alorda, em Adital
Publicado 30/10/2012 19:29
O governo de Sebastián Piñera assinou, no dia 8 de outubro, um Decreto supremo que estabelece a Área de Desenvolvimento Indígena (ADI) na comuna de Ercilla, decreto que foi aceito por 37 das 42 comunidades da zona.
As ADI foram estabelecidas pela Lei Indígena de 1993, e são definidas como "espaços territoriais nos quais os organismos da administração do Estado focalizarão sua ação em benefício do desenvolvimento harmônico dos indígenas e de suas comunidades”. De acordo com o definido pelo governo, as ADI contemplam programas de aquisição de terras, assessorias para plantações agrícolas, apoio para o desenvolvimento de empreendimentos, recursos para melhorar a infraestrutura viária e de saúde.
Piñera assinalou à imprensa que com o ADI cumpre-se a promessa de gerar caminhos para o diálogo como única via para solucionar o conflito Mapuche.
"Esse é o caminho que nos dará frutos, o caminho do diálogo, o caminho da ação, não o da violência, e nem dos atentados”, disse Piñera. "Por isso, com a mesma força, reitero meu compromisso de lutar com todas as armas do Estado de Direito contra os delinquentes e os violentos que, longe de favorecer, somente causam dano e dor à causa do povo Mapuche e à causa de nosso país”.
No entanto, cinco comunidades de Ercilla, a uns 600 km ao sul de Santiago, não aceitaram fazer parte da nova institucionalidade proposta pelo governo, entre as quais estão a Comuna Tradicional de Temucuicui e a comunidade Wente Winkul Mapu. Nessa última localidade de onde são originários os comuneros presos Erick e Rodrigo Montoya, Paulino Levinao e Daniel Levipan, que estiveram em greve de fome na prisão de Angol de 27 de agosto até 25 de outubro. Levinao e Levipan foram condenados em agosto passado a penas de 10 anos e um dia de presídio pelo delito de homicídio frustrado de Carabineros e 541 dias por porte ilegal de arma de fogo na comuna de Ercilla, em novembro de 2011, enquanto que os outros dois comuneros estão sendo processados por outros delitos.
Com a greve de fome, os presos políticos Mapuche, em Angol, buscaram a anulação dos julgamentos por parte da Corte Suprema e demandaram também a "aplicação do Convênio 169 [sobre povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho], a devolução total do território que hoje está sendo ocupado por empresas florestais e pelos latifundiários, e a desmilitarização das comunidades”, segundo informaram em comunicados emitidos desde a prisão.
Após manter por mais de dois meses essa medida de pressão, a Corte Suprema resolveu deixar sem efeito o julgamento contra Levinao pelo delito de homicídio frustrado contra o general de Carabineros, Iván Bermalinovic e ordenou realizar um novo julgamento oral desse processo atendendo a falta de fundamentação do falho do Tribunal de Julgamento Oral no Penal de Angol, mantendo-se a condenação de 541 dias de presídio por porte ilegal de arma. A sentença contra Levipan foi anulada, determinando uma pena de três anos de presídio menor em seu grau médio pelo delito de maltrato de obra a Carabineros em serviço, outorgando-se o benefício da remissão condicional da pena e se ordenou sua libertação após a notificação da sentença ao tribunal de primeira instância.
Os cinco comuneros que mantinham a greve no penal de Temuco suspenderam sua medida de pressão uns dias antes do que os comuneros de Angol, uma vez que a diretora do governamental Instituto Nacional de Direitos Humanos, Lorena Friés, conseguiu um acordo com o Ministério da Justiça e Gendarmería para trasladar os comuneros à cárcere de Angol onde encontram-se os demais presos Mapuche.
"Há quatro irmãos Mapuche na prisão de Angol [a 45 km de Ercilla], na qual dois deles foram condenados injustamente por testemunhas pagas pelo Ministério Público, mais dois que estão esperando julgamento oral, no qual, com testemunhas protegidas, querem condenar a nossa gente. Ao governo não lhe convém falar sobre essa situação”, denunciou Jorge Huenchullán, werkén (porta voz) da comunidade de Temucuicui.
Para Huenchullán, o ADI "é parte da estratégia do Executivo para ocultar o verdadeiro conflito que se enfoca na devolução total dos terrenos demandados pelas comunidades e para ocultar uma série de atropelos de violência e de negação das mobilizações que as comunidades Mapuche de Ercilla estamos realizando. Os Mapuche não estamos lutando para receber uma série de assistencialismos por parte do governo; por isso, repudiamos a ADI; não tem validade para nós”.
História do conflito
O conflito entre o Estado e o povo Mapuche se aprofundou em 1974 com a promulgação por parte da ditadura militar [1973-90] do Decreto 711, para a promoção da indústria florestal que pôs fim à propriedade comunitária indígena. Os sucessivos governos utilizaram uma lei antiterrorista de 1984 para responder à resistência do povo Mapuche.
Em 1997, em um momento histórico em que o povo Mapuche se encontrava debilitado, o que impedia avançar na recuperação territorial, um grupo de comunidades e lonkos (autoridades tradicionais) conformaram a Coordenadora de Comunidades em Conflito Arauco, Malleco e Cautín, que, posteriormente, assumiu o nome de Coordinadora Arauco Malleco (CAM).
"Nesse sentido, a CAM dá um passo adiante ao definir uma nova forma de fazer política, que tem a ver com a passagem de uma ação institucional para uma ação direta de sabotagem como arma política. Dão um salto no sentido de que não se deve esperar nada de um Estado que nos condenou a 100 anos de ocultamento e discriminação, avançando para a criação de um projeto político próprio e autônomo”, assinala o werkén da CAM, que, por segurança, manteve-se no anonimato.
"O território e a autonomia passam a ser os eixos fundamentais da CAM”, agrega o werkén. "Esses dois eixos são conjugados na prática de exercer o controle territorial: recuperando os territórios e trabalhando-os, gerando aí práticas culturais, políticas e econômicas como Mapuche. A autonomia é uma ordem e uma forma de trabalhar disciplinadamente. E como projeto político tem que ver com como o povo Mapuche se desenvolve à margem do Estado”.
Em 2002, começou uma etapa do movimento Mapuche que o historiador Fernando Pairican denomina entre a "pressão e a sombra”, período em que comuneros Mapuche foram presos. "Até esse ano, não havia presos políticos sentenciados nem sobre eles havia sido aplicada a lei antiterrorista. Assim, começou um momento –que ainda está em vigor- onde, por demandas políticas do movimento Mapuche [os comuneros] terminaram presos e isso gerou a resposta óbvia que é a resistência desde a prisão, como a greve de fome”, explica. "A fronteira que historicamente separava o Chile das zonas Mapuche ao sul do rio Bío-Bío tem outros códigos e a justiça se aplica de outra forma, há uma aplicação racista da lei na Araucanía, onde seus habitantes não são seres humanos, são índios; é a continuidade do Século 21”.
Em julho de 2010, o conflito entre o governo de Piñera e os Mapuche se aprofundou devido a uma greve de fome protagonizada por quatro presos Mapuche que faziam parte da CAM, incluindo ao seu líder, Héctor Llaitul, contra a aplicação da lei antiterrorista em seus casos. Na data já existia um ponto comum nas demandas Mapuche, que tinha a ver com a necessidade de recuperar os territórios ancestrais usurpados pelo Estado e por empresas transnacionais.
"Hoje, o que mais atormenta o povo Mapuche é a perda dos territórios sagrados; isso envolve rios e cemitérios. Com os projetos hidrelétricos e mineradores, os territórios em maior perigo estão ao sul de Valdivia, rumo à pré-cordilheira e a costa de Osorno, que são os dois entes que dão força às comunidades, o sentir Mapuche. Essas zonas devem ser inundadas por centrais hidrelétricas”, denunciou a jovem machi Millaray Huichalaf, do setor do Roble Carimallin.
Luta pelo território
As comunidades Mapuche veem com desconfiança as propostas do governo porque tentam ocultar o conflito de fundo: a luta pelo território.
"Claramente continuam com as políticas de levar o conflito para outro âmbito e não estão vendo o transfundo porque o Mapuche está em conflito: pela propriedade e posse da terra. Querem institucionalizar o conflito e levá-lo a uma negociação; porém, a terra não pode ser negociada, porque a terra é mãe; ninguém vende sua mãe”, assinalou Huichalaf.
A critério de Pairican, "o que o governo está fazendo é configurar uma tríade que implica modelo econômico [liberalismo], sistema político e autonomia. Estão vendo países como o Canadá e os Estados Unidos onde as autonomias indígenas neoliberais deram resultado sem afetar o capital. São experiências onde modelo e autonomia são compatíveis, através do multiculturalismo, algo que propôs [a ex-presidenta Michelle] Bachelet [2006-2020] em seu governo. Tenhamos autonomia; porém, neoliberal”.
No entanto, esse modelo de autonomia neoliberal é rechaçado por dirigentes indígenas, já que o projeto político Mapuche é incompatível com o capitalismo.
"Não estamos somente frente a uma luta política, mas também é uma luta ancestral, já que o povo Mapuche em essência é anticapitalista”, afirma Huichalaf. "Por isso, qualquer outra forma de organizar-se é perigoso para esse sistema. Hoje, estamos nos levantando com uma clara convicção, com um fundamento político, social e espiritual; como um povo integral”.