Publicado 20/08/2012 18:47 | Editado 04/03/2020 16:29
Acho que tudo evolui e tudo muda, mas no fundo, passamos sempre por aquela espiral cíclica. A canção é uma forma de narrativa poética que usa palavras associadas a ritmo e melodia. Sua origem histórica está ligada à poesia associada às melodias “de boca” e não à música dos instrumentos como comumente se supõe. Desta forma, a canção é obra oral de narradores, e até os dias atuais não é indispensavelmente feita por músicos, como está a demonstrar a obra de Lupcínio, de Lamartine, ou dos próprios rappers. Os poetas autores de canções são os pioneiros da poesia que depois transladou-se para as páginas impressas do livro gutenberguiano. Por esta razão, nós, letristas de canções, nos sentimos sempre meio antigos e mais colegas de Adelino Moreira que de Drummond, embora sejamos todos poetas.
A música, aquela dos instrumentos, por sua vez, nasceu ligada aos rituais e à dança. As duas fizeram muitas aproximações durante séculos mas quem ousou misturar música, palavras e até o teatro, foi a ópera, há trezentos anos. Mesmo assim, ela nunca se tornou permanente e popular e isto segue até os dias atuais. Por outro lado, a ópera produziu o padrão do cantor com alto nível técnico que serviu de referência aos primeiros cantores do rádio e do disco, até o momento em que o ancestral e permanente valor próprio do intérptete-poeta recolocou no lugar inúmeros cantores tecnicamente imperfeitos, porém irresistíveis para o seu público. O próprio Chico é considerado como “cantor limitado”, porém irresistível.
Estou a falar isto para dizer que, no fundo, com respeito às canções, prevalece o trabalho original de Orfeu, ou seja, forma cantada de dizer poesia ao vivo, a maneira mais universal e permanente, e que pode variar, conforme a época. Outra coisa são mudanças ocorridas na forma de registro de uma canção em gravações, que é algo dos velhos tempos modernos e que durante muitas décadas e em vários formatos nos acompanham, embora mudando de suporte em função de avanços tecnológicos. Acho que a morte de formas de suporte físico de gravações não é a morte da canção – que, antes daquelas, só era reproduzível na voz viva e real de um poeta. Ela está viva e apenas em busca de outras formas de dizer suas palavras para novos ambientes de outras escalas e sensibilidades. Ainda bem, e nisto concordo com o grande Buarque. Por outro lado, afirmo que apesar de aceitar que tudo muda, isto não quer dizer que largaremos o osso tão cedo.
*Fausto Nilo é cantor, compositor e urbanista.
Fonte: O Povo