Eleições no Egito: Para onde vai esse país árabe?
Se pudesse responder a pergunta acima do título, eu ou qualquer outro estudioso do Oriente Médio responderia de pronto: não dá para saber. É a pura verdade. Nunca o Egito teve uma eleição razoavelmente democrática para escolher seu presidente.
Por Lejeune Mirhan *
Publicado 04/07/2012 04:49
Só para termos uma ideia disso, entre 1952 quando jovens oficiais proclamam a República até hoje, passaram 60 anos e o país teve apenas três presidentes: Gamal Abdel Nasser, Anuar El Sadat e Hosni Mubarak. Agora foi eleito um membro da Irmandade Muçulmana e gostaria de dar algumas opiniões sobre essa nova realidade.
Os resultados do 1º turno
Nos dias 23 e 24 de maio, a República Árabe do Egito realizou as suas primeiras eleições democráticas, ainda que sob tutela de uma junta militar comandada por generais oriundos da época da ditadura Mubarak. Diversos partidos participaram desse processo, à exceção honrosa do Partido Comunista do Egito, cuja legalidade ainda não foi conquistada.
Para efeitos de tecermos comentários gerais sobre esta primeira etapa dos resultados e as perspectivas do segundo turno, apresentamos abaixo os dados oficiais dessas eleições. Lembramos que o voto não é obrigatório, de forma que a abstenção foi bem elevada. Vamos aos números finais:
Eleitores inscritos: 50.996.746
Comparecimento: 23.672.236 ou 46,42%
Abstenções: 27.324.510 ou 53,58% dos inscritos
Nulos: 406.720 (além de baixíssimo os nulos, com apenas 1,72% – nem aqui no BR com votação eletrônico eles são tão baixos assim, eles não indicam votos em branco…).
Os candidatos obtiveram as seguintes votações individuais:
1º lugar – Mohamed Morsi – 5.764.952 – 24,78% (Irmandade Muçulmana e do Partido da Justiça e da Liberdade)
2º lugar – Ahmed Shafik – 5.505.327 – 23,66% (Independente, vinculado aos militares da junta, marechal-brigadeiro, último 1º Ministro de Mubarak)
3º lugar – Hamdeen Sabahi – 4.820.273 – 20,72% (este é nasserista e foi apoiado pelos socialistas e comunistas, da Praça Tahir)
4º lugar – Abdoul Fotouth – 4.065.239 – 17,47% (racha da Irmandade e apoiado por jovens radicalizados da praça)
5º lugar – Amr Mousa – 2.588.850 – 11,13% (ex-scretário-geral da Liga Árabe)
Outros – 520.875
Nulos – 406.720
Totais – 23.672.236
Assim, vejam por esses números que para que o 3º colocado, um secularista, nasserista e socialista fosse para o 2º turno, faltaram apenas 685.054 votos ou 2,94% do total, sendo que a 4ª posição teve 17% e a 5ª outros 11%. Se somarmos as posições do 3º ao 5º colocado, que poderia ter sido construída uma aliança ampla, teríamos tido a perspectiva de 49,32%, mais do que suficiente para termos ido ao 2º turno ou até vencermos no 1º turno. Shafik teria ficado em 3º lugar e em sinuca de bico, pois quem ele apoiaria no 2º turno? Provavelmente nunca apoiaria a Irmandade.
É certo que com quase nenhuma vida democrática, o Egito não tinha nenhuma tradição de alianças, acordos políticos, tais quais no Brasil são corriqueiros e naturais há quase trinta anos, desde a redemocratização em 1985.
O 2º turno das eleições
Com esse resultado, foi imediatamente convocado o 2º turno das eleições, marcadas para os dias 16 e 17 de junho. Apenas os dois mais votados, o da Irmandade e o do antigo regime militar foram chamados. Uma situação difícil para a grande maioria do eleitorado. Não tivemos notícias de que os candidatos que se posicionaram entre o 3º e 5º lugar tivessem declarado seu apoio a um dos dois finalistas.
No entanto, também igual ao que os eleitores do mundo inteiro fazem em eleições com dois turnos, acabou-se por escolher o que se chama de o “menos ruim”, do ponto de vista, claro, da lógica dos eleitores. Ou, acaba-se votando em um candidato não porque se goste dele, mas para que se impeça que um pior possa vencer o pleito.
Os números oficiais da junta eleitoral, que acabou atrasando três dias a divulgação oficial (era para ter sido em 21 de junho e só foi feito dia 24, domingo) são os seguintes:
Eleitores inscritos e aptos: 50.958.794
Comparecimento: 26.420.763 (ou 51,85%)
Abstenções: 24.538.031 (48,15%)
Nulos: 843.252 (ou 3,2%)
Votos válidos: 25.577.511
1º Lugar: Mohamed Morsi – 13.280.131 (ou 51,92% dos válidos)
2º Lugar: Ahmed Shafik – 12.347.380 (ou 48,27% dos válidos).
Com isso, vê-se que a diferença de ambos foi de meros 932.751 votos ou 3,65%. Bem pequena. Aqui é difícil saber como foi a migração de votos dos colocados entre 3º e 5º lugar, mas cada um dos que disputaram o segundo turno amealhou praticamente sete milhões de votos. Uma eleição disputada.
O novo presidente egípcio
Não é da nossa pretensão falar tanto sobre quem é o novo presidente do Egito, mas sim o significado de sua eleição, o contexto em que ela ocorre e possíveis desdobramentos disso. São, claro, considerações iniciais, após ouvir e debater com um conjunto de arabistas e estudiosos do Oriente Médio.
Mohamed Morsi é engenheiro e com doutorado nos EUA. Todos os seus três filhos nasceram nesse país e possuem cidadania norte-americana. É membro da Irmandade Muçulmana, organização que funciona como um partido político e que existe desde 1928. O slogan de sua campanha foi “O Islã é a solução”. Mas sabemos que isso não é verdade. Em país nenhum entre os 47 que se proclamam islâmicos, a religião é solução. Até porque isso excluiria da sociedade todos os que não professam essa fé ou nenhuma fé, ainda que isso possa significar uma parcela pequena da população.
Ironia do destino, Morsi esteve preso sob o governo de Mubarak no ano de 2007 e lá ficou vários meses na cadeia. Não era o candidato prioritário da Irmandade, cujo nome indicado acabou sendo impugnado pela Comissão Eleitoral. Foi deputado em um parlamento consentido pela ditadura Mubarak. Em eleições de lisura contestada e duvidosa, a Irmandade tinha em torno de 20% do parlamento e Morsi era parlamentar nesse contexto.
Para o 2º turno, Morsi moderou seu discurso. Procurou estabelecer alianças com os candidatos derrotados, da mesma forma que Shafik tentou fazê-lo. A imprensa ocidental não registrou nenhuma declaração pública dos candidatos derrotados de que apoiaram Morsi ou Shafik na segunda volta eleitoral.
A posse de Morsi ocorre no sábado, dia 30 de junho. E ele toma posse com os poderes presidenciais extremamente diminuídos por decisão da junta militar. Mas, mais do que isso. A mesma junta nas vésperas do pleito, em 15 de junho, dissolveu o parlamento. Ou seja, Morsi toma posse sem que deputados possam elaborar leis e uma nova Constituição vem sendo escrita por um seleto grupo de apenas cem pessoas.
Aqui é preciso registrar algumas incertezas que rondam o Egito neste momento, para as quais o novo presidente ainda não deu respostas:
1. Como ficará o tratado de paz com Israel, assinado em 26 de março de 1979 pelo ex-presidente Anuar El Sadat? É certo que ele declarou durante a campanha que honraria todos os acordos dos quais o Egito é signatário. Mas, não se sabe se isso ocorrerá. Será que declarou isso por não ter como declarar de outra forma? Se tivesse declarado que romperia o acordo, teria vencido as eleições?
2. Que papel continuará jogando o Conselho Supremo das Forças Armadas no futuro político do país? O novo presidente, no seu discurso de posse e em falas posteriores já disse que os militares devem voltar para as suas tarefas constitucionais, quais sejam as de proteger a Nação egípcia. Os militares aceitarão essa decisão?
3. Que ocorrerá com o parlamento? A dissolução será mantida ou ocorrerão novas eleições? Em ocorrendo novas eleições, implicaria construir um novo arco de alianças para que se possa conquistar maiorias. O pessoal que votou num representante da ditadura Mubarak mostrou muita força, obtendo mais de 12 milhões de votos ou 48%. Qual seria o seu tamanho e sua fatia em um novo parlamento?
Chamou a minha atenção, no discurso de posse feito pela primeira vez em uma Universidade, três aspectos proclamados pelo novo presidente Morsi:
1. A sua decisão de restabelecer imediatamente relações diplomáticas com a República Islâmica do Irã. O presidente Morsi é sunita e o Irã é xiita, mas ele reafirmou que ambos são islâmicos e quer relações normais entre os dois países. Não se pode deixar de registrar que o Irã é demonizado por Israel e está – e continua – na lista de “países que apoiam o terrorismo” (sic) feita pelo Departamento de Estado dos EUA;
2. Ainda no seu discurso ele pediu enfaticamente ao povo egípcio que não desocupasse a Praça Tahir, que virou símbolo da Revolução Árabe no Egito. Disse com toda a ênfase que respeitaria os ideais e a vontade dessa revolução que ele considera em curso;
3. Afirmou que governaria para todos os egípcios e não só para os muçulmanos. Que respeitaria as minorias e não imporia a sharia (tradições islâmicas) como lei única no país. Lemos inclusive que ele se afastaria da Irmandade Muçulmana para ter maior isenção na condução deste que é o maior país árabe na região.
Há uma questão que é indiscutível: toda a imprensa israelense demonstrou extrema cautela com sua eleição. Até receio e medo em alguns casos. Será ele um “amigo de Israel”?
Em diversos artigos que pudemos ler que analisaram e repercutiram esse momento aparecem afirmações sobre a possibilidade de ter havido um acordo entre o governo dos militares e o proclamado eleito da Irmandade. Tudo é possível. A história e a vida mostrarão isso. É possível que tenha havia um pacto, que concessões tenham sido feitas.
Em comunicado emitido no dia 27 de junho, o Partido Comunista Egípcio faz análise dos resultados do 2º turno, três dias antes da posse de Morsi. Tivemos acesso a esse documento em árabe, que pode ser lido neste endereço http://www.solidnet.org/egypt-egyptian-communist-party/3186-cp-of-egypt-ar (a tradução agradeço ao Dr. Assad Frangiéh).
Grosso modo, podemos dizer que as preocupações acima expressas são compartilhadas pelo PC Egípcio. Faço a seguir um pequeno resumo da posição dos comunistas egípcios:
• Colocam-se fieis aos ideais do que chamam de Revolução de 25 de Janeiro;
• Entendem que os dois candidatos que foram para o 2º turno pertencem ao mesmo campo político e ideológico;
• Fazem duras críticas à Irmandade Muçulmana pelas suas relações com os EUA;
• Mencionam a necessidade de novas alianças serem estabelecidas;
• Afirmam que o Partido não apoiou nenhum candidato no 2º turno;
• Dizem que pode ter havido acordos para o resultado apresentado;
• Mencionam a forte possibilidade da Revolução correr risco de retrocesso;
• Propõem unir forças para prosseguir no caminho revolucionário.
Aqui, vale destacar que o Partido evita fazer afirmações sobre como será o governo de Mohamed Morsi. Prefere fazer-lhe questionamentos. Assim, menciona indagações do tipo:
1. O novo governo do Egito ficará ao lado do povo e dos trabalhadores, dando-lhes melhores condições de vida?
2. O novo presidente vai seguir adotando o modelo neoliberal na economia, aplicado pelo antigo regime?
3. O novo presidente ficará ao lado das forças civis e democráticas, na defesa de uma nova constituição que assegure a continuidade do estado laico, cidadão, com liberdades, direitos sociais e das mulheres ou vai adotar uma linha em que priorize se aliar exclusivamente com forças islâmicas para criar um estado religioso?
4. O novo presidente respeitará a nova Constituição e as leis gerais e o espírito da Revolução ou seguirá respeitando os acordos feitos anteriormente?
Essas são dúvidas para as quais ainda não temos respostas e nem o PC Egípcio. O tempo dirá. Por fim, o Partido no Egito indica quatro propostas para este momento histórico:
1. Revogação todas as medidas antidemocráticas e que os militares deixem imediatamente o poder;
2. Respeitar todas as decisões do Tribunal de Justiça, em especial a que dissolveu o parlamento. Defesa de uma nova Constituição e que esta seja escrita democraticamente;
3. Formação de uma frente política ampla que defenda o fim da tutela militar sobre o Estado e o governo, bem como que combata a implantação de um estado religioso e
4. Articulação de uma ampla aliança de esquerda.
Conclusões pessoais
Ainda não é possível avaliar um governo que tomou posse há alguns dias apenas. É bem verdade que a trajetória histórica do agrupamento da Irmandade deixa sérias dúvidas sobre o lado que ela ficará. As alianças feitas no passado, seu comportamento anticomunista e em muitos momentos em aliança com as forças conservadores e do velho regime indicam que devemos mesmo ter cautela neste momento na avaliação para onde irá o novo governo de Morsi.
No entanto, o mundo árabe vive mudanças. Não é mais possível manter tudo como estava, em especial os acordos militares com os EUA (estima-se em quase dois bilhões de dólares em ajuda militar que vêm dos EUA e vão diretamente para o exército, sem controle do governo; esses valores só perdem para o três bilhões que Israel recebe dos EUA todos os anos). A mesma coisa os acordos de paz de 1979.
As massas árabes e os trabalhadores foram às ruas. Se ainda não fizeram a sua revolução mais avançada – até pela falta de um partido revolucionário e consequente que a comandasse – as condições ainda podem chegar a isso.
É preciso ver como será a formação do novo governo, as alianças que ele proporá, os acordos públicos que serão estabelecidos. O Egito legalizou dezenas de partidos – menos o Comunista. O nasserista e secular que no 1º turno ficou em terceiro lugar pode ser chamado, assim como o do quarto lugar, um racha da própria Irmandade e mesmo Mousa da Liga Árabe. Tudo isso irá moldar a amplitude e o caráter do novo regime.
Não me encontro entre os que acham que nada mudará. A correlação de forças não permitirá isso. A Irmandade e seu novo presidente sabem que podem ser atropelados pelo povo, pela fúria das ruas árabes, sedentas por mudanças profundas e por um Egito soberano, defensor dos interesses de seu povo e que nunca mais volte as costas tanto para os egípcios, quanto para o povo árabe em geral e aos palestinos em particular.
Acompanharemos o dia-a-dia. Voltaremos ao tema.
* Sociólogo, escritor e arabista. Foi professor de Sociologia da Unimep entre 1986 e 2006. Presidiu o Sindicato dos Sociólogos de SP de 2007 a 2010. E-mail: lejeunemgxc@uol.com.br.