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O golpe de abril de 2002 na Venezuela e a integração com o Brasil

Há exatos dez anos, entre os dias 11 e 13 de abril de 2002, um substantivo próprio quase desconhecido começou a figurar de modo recorrente nos noticiários políticos do mundo todo: Venezuela. Até então, tal nome era sinônimo de petróleo e de beldades bem sucedidas em concursos internacionais. Entretanto, depois dessas históricas e tensas 72 horas, tudo mudou.

Por Pedro Silva Barros e Luiz Fernando Sanná Pinto*

O país sul-americano passou a concentrar o interesse de analistas e a despertar as mais diferentes paixões.

O que aconteceu? Por que a “mais madura” das democracias da região passava por tamanha instabilidade? Por que alguns militares apoiaram um golpe contra um ex-companheiro de armas? Por que “lideranças civis” apresentadas como responsáveis e bem intencionadas rompiam de forma tão violenta com a legalidade? E por que as grandes massas se mobilizaram a ponto de reconduzir o presidente da República deposto ao poder, garantindo a continuidade da democracia? Afinal, quem era Hugo Chávez?

As respostas do mainstream apelaram para o argumento mais convencional: “populismo”! Tal como “um raio que cai de um céu azul”, Chávez apareceu no cenário político venezuelano destruindo as “boas práticas de governo” com políticas supostamente demagógicas e irresponsáveis. Boa parte da esquerda, por sua vez, encontrava-se em dificuldade para se posicionar de maneira mais firme e apresentar respostas alternativas. Embora seja um país vizinho, a Venezuela tinha uma trajetória muito pouco conhecida pelos brasileiros. Talvez isso se deva à falta de acontecimentos espetaculares durante boa parte do regime puntofijista (1958-1989). Nada de rupturas institucionais, tampouco grandes projetos populares. Ambiente bem diferente do que se via no subcontinente: revoluções, contra-revoluções, governos populares, ditaduras militares …

A Venezuela e os venezuelanos ficaram de fora dos principais círculos de lideranças latino-americanas que, ao amargarem o exílio, pensaram e sofreram juntas seus problemas. Vista de longe, parecia um país “excepcional”: democracia liberal e ausência de restrição econômica externa. Era a sombra da Venezuela Saudita: petróleo e dólares. Os que haviam visitado a exuberante Caracas da década de 1970 pareciam certos de que os venezuelanos estavam a um passo de romper a camisa de força do subdesenvolvimento. Mas poucos acompanharam o que aconteceu depois.

Baixa nos preços da energia, explosão da dívida externa. E a Venezuela mergulhou de cabeça no cenário latino-americano da década perdida. A mistura do empobrecimento com as políticas de ajuste do FMI levaram ao Caracazo de 1989, quando a população se rebelou contra o projeto neoliberal. Os militares tiveram de sair às ruas para reprimir a população. A brutalidade, a corrupção e o sentimento de decadência criaram constrangimento no próprio seio da Força Armada: vários grupos de oficiais se articulam em movimentos clandestinos. Um deles era liderado pelo tenente-coronel Hugo Chávez, que deflagrou sublevação militar contra o governo em 1992: com forte discurso moralista e de tom claramente anti-neoliberal, defendia uma constituinte para a “re-fundação” do país. Ao mesmo tempo em que foi militarmente derrotado, o movimento de Chávez conquistou importante vitória política. Garantiu a criação de uma liderança anti-establishment, que se contrapunha a todo o modelo que se encontrava em colapso.

Depois de liberado da prisão, o ex-militar se convenceu que a melhor maneira de implantar o seu projeto seria pela via institucional. Em 1998, venceu eleições para a presidência da República com 56% dos votos. É importante destacar o simbolismo dessa vitória: num momento em que FHC começava seu segundo mandato, que a Argentina de Menem era apresentada pelo FMI como um modelo a ser seguido e que Fujimori governava absoluto no Peru, Chávez assumia o poder com um discurso muito crítico em relação ao Consenso de Washington. Estava sozinho, remando contra a maré.

A ausência de um partido ou de uma sólida base social organizada fez que o novo governo estimulasse a participação direta para promover reformas estruturais. A começar pela mais importante: a constitucional. Por plebiscito, foi aprovada a convocação de uma Assembléia Constituinte. A nova Carta foi apresentada e referendada por voto direto. Depois disso, Chávez decidiu levar a cabo mudanças mais profundas: publicou, no final de 2001, 49 decretos-lei, que deveriam regulamentar várias matérias previstas na nova Constituição, e que incluíam temas relevantes como petróleo e gás, terras, bancos, entre outros. O controle efetivo sobre a estatal de petróleo PDVSA aparecia como um objetivo fundamental.

Foi a partir desse momento que a direita começou a articular uma série de iniciativas para derrubar o presidente. Muitos dos principais executivos da PDVSA se recusaram a aceitar as mudanças. Diante de sua demissão, a oposição convocou a segunda greve geral em menos de seis meses, promovendo, também, manifestação pedindo pela renúncia de Chávez. Em meio à manifestação, no dia 11 de abril de 2002, levaram a termo, junto com alguns militares e espetacular sustentação midiática, um golpe de Estado. Uma suposta renúncia do presidente foi anunciada, enquanto Pedro Carmona Estanca, presidente da principal federação patronal do país, foi empossado em governo dito “provisório”.

Carmona recebeu apoio imediato do FMI e dos governos dos Estados Unidos e da Espanha: no dia 12 de abril, o Fundo anunciou a disponibilidade de recursos financeiros para a Venezuela. Algumas horas depois, a visita do embaixador norte-americano ao ex-líder empresarial representou o reconhecimento implícito de seu país ao governo golpista.

O “governo” Carmona, que durou menos de dois dias, adotou medidas duras: derrogou a Constituição aprovada em referendo popular, dissolveu a Assembléia Nacional e reservou-se o direito de destituir governadores e prefeitos eleitos. Tratava-se, portanto, de uma grave violação da legalidade e de uma forte orientação autoritária, que ameaçava, ademais, repercutir regionalmente. A conjuntura sul-americana de 2002 já não era a mesma de 1999: o colapso da economia argentina colocava em xeque os ensinamentos do neoliberalismo, ao mesmo tempo em que Fujimori havia caído no Peru e que Lula despontava como o favorito nas eleições presidenciais do Brasil. A vitória da violência política da direita na Venezuela contra um projeto de esquerda em ascensão poderia servir de paradigma para as forças conservadoras dos demais países, fortalecendo práticas políticas que ameaçavam diretamente a democracia.

A mobilização dos setores populares e a organização de amplo movimento cívico-militar, entretanto, garantiram a recondução de Hugo Chávez à presidência da República em 13 de abril de 2002. Nesse sentido, mais do que qualquer coisa, as 72 horas que transcorreram nesses dias de abril de 2002 significaram a afirmação de uma tendência, uma reversão da corrente: a esquerda poderia ser forte o suficiente para se apresentar como alternativa política nos países em crise e para evitar possíveis investidas extra-legais das elites tradicionais. Após a reversão do golpe, forças políticas progressistas alcançaram o poder por meio de eleições democráticas em vários países da região – Brasil (2002), Argentina (2003), Uruguai (2004), Bolívia (2005), Equador (2006), Nicarágua (2006), Paraguai (2008), El Salvador (2009) e Peru (2011). E onde quer que na América do Sul a direita tenha tentado reproduzir a lógica da desestabilização, foi derrotada antes mesmo de chegar ao golpe – mais uma vez na própria Venezuela (2002-2003), desta vez pela via econômica de um prolongado locaute, no Brasil (2005), na Bolívia (2008), na Argentina (2009-2010), no Paraguai (2010) e no Equador (2010). Não se pode esquecer, porém, do exitoso golpe conservador em Honduras (2009).

O impacto dessa tentativa de golpe na política exterior da Venezuela também foi grande. A rede de relacionamentos internacionais da oposição incluía alguns dos parceiros mais tradicionais do país, como os Estados Unidos e a Espanha, enquanto os países do Sul, incluindo o Brasil, apoiaram o governo eleito. No locaute contra o governo Chávez, em dezembro de 2002, o Brasil enviou navio petroleiro para garantir o fornecimento de gasolina para a Venezuela.

A partir do período de maior estabilidade da Venezuela bolivariana, o fortalecimento das relações bilaterais atingiu outro patamar. Em 2005, firmou-se Aliança Estratégica entre Lula e Chávez. Acordou-se, inclusive, a realização de encontros presidenciais periódicos. Foram 28 desde então. A corrente de comércio se multiplicou mais de 7 vezes. A presença brasileira se ampliou, assim como a cooperação técnica, com instalação de representações de agências públicas brasileiras na Venezuela.

A Embrapa coopera para o desenvolvimento agrícola de um país com enormes potencialidades, mas que importa 70% dos alimentos que consome. A Caixa Econômica Federal coopera para a sustentabilidade urbanística, social e econômica do país vizinho, apoiando o programa Grande Missão Vivenda (construção de 3 milhões de moradias até 2019) e a instalação de terminais do Banco da Venezuela em áreas periféricas. A Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) apoiou a construção de fábricas de refrigeradores e máquinas de processamento de alimentos. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) assessora o planejamento territorial e industrial de fronteira de produção de hidrocarbonetos, o estado de Sucre e a Faixa Petrolífera do Orinoco, além de realizar estudos conjuntos sobre a integração produtiva e de infra-estrutura entre o Norte do Brasil e o Sul da Venezuela.

O grande desafio é transformar o crescimento conjuntural do comércio em integração produtiva. Os presidentes Chávez e Dilma deram um grande passo ao determinar a elaboração de estudos para subsidiar um Plano de Desenvolvimento Integrado entre o Norte do Brasil e o Sul da Venezuela.

O voto democrático nas eleições presidenciais venezuelanas de 7 de outubro deste ano será determinante para o aprofundamento do processo de integração regional. Novamente, na Venezuela, poder-se-á definir a tendência de mais um ciclo político regional: consolidação dos avanços de governos progressistas e fortalecimento da integração sul-americana ou reversão de conquistas com a volta da direita ao poder e realinhamento aos Estados Unidos.

*Fazem parte da Missão do IPEA na Venezuela. pedro.barros@ipea.gov.br e luizpinto8@gmail.com