Sarau Hip-Hop: a exaltação dos versos
Botas rachando o asfalto, som de poesia ainda na cabeça alto! Ligo o som do carro, Zezé Motta e Luiz Melodia chegam com suas dores de amores. Eu, cheia de dores de dores, me sinto armada até os dentes depois do meu primeiro sarau Hip-Hop. Com a música e os livros da Nação, tenho a cura no coração.
Por Christiane Marcondes
Publicado 09/03/2012 19:00
Para quem estranhar esse “repente”, garanto que é impossível vivenciar o Hip-Hop e não ficar contagiada pelo verso e reverso do cotidiano melodia na periferia negra da história. Foi o que descobri com o Toni C., quando o acompanhei nesta terça-feira (6) ao Sarau Suburbano, em São Paulo.
Neste mês de março, Toni C. está cumprindo a maratona de 17 eventos seguidos para o lançamento do seu romance O Hip-Hop Está Morto! É o terceiro livro que assina, e esse já foi bater em Princeton, Harvard, segundo conta, essegue sozinho pelas universidades do mundo. “Não fiz um curso superior, mas meu livro foi com as próprias pernas aonde eu nunca pisei”, revela. E aproveita para dividir o “filho” com todos os companheiros: “A história não é minha, cada um conta de um jeito”, explica.
No sarau do Coletivo Suburbano, segundo andar de um prédio na Bela Vista, fico conhecendo a livraria Suburbano, “a única do país especializada em literatura marginal”. Alessandro Buzo, o dono, é veterano no movimento e autor de vários livros, me pergunta se vou declamar. Vai montando, assim, a lista das pessoas que se apresentarão na noite. Logo anuncia que vai começar.
Tomo um chá verde, enquanto me acomodo na cadeira e me desacomodo na vida. Toni C. abre a sessão, em uma atitude Hip-Hop, não toma a palavra, oferece. Pergunta se há algum descontente e o coro dos descontentes vai se articulando. Críticas sociais. Mostram que a realidade dos guerreiros poetas é dura, eles são pobres, camelam, tiram poesia do drama, tiram alegria da mesma fonte.
A produção cultural é imensa, livros, grafites, camisetas e eventos sem fim. E é própria, sai do bolso mesmo, não tem moleza. Por isso todos, no improvisado auditório, são um pouco artistas, alguns mais, outros menos. Vão soando os gritos de guerra, “quem não luta está morto” é o lema maior.
Buzo reforça a importância de colocar arte no mundo e avisa: “a revolução não será televisionada, mas escrita por nós”. Com a declaração, ele leva o Hip-Hop da marginalidade para o centro da ação histórica.
Firmeza? Esse é o cumprimento usual seguido por um tapinha nas costas ou outro tipo de toque entre mãos. Observo a chegada de retardatários. Há calor humano em cada contato, físico ou visual, há admiração genuína nos elogios trocados, essa força leva o movimento pra frente.
Viva Toni C.
O livro do Toni C. está dando o que falar, e não é só pelo título polêmico, mas pelo estilo que captura o leitor na primeira linha. Depois de ler o livro, descobri que ele não acaba na última página, continua no pensamento da gente, plantando ideias. Em meio ao sarau, consegui um tempo com o escritor para uma entrevista, acompanhe a seguir:
Vermelho – O Hip-Hop e a burguesia vivem, como no seu livro, um caso eterno de atração e repulsa? (estou falando da Samara, loira, rica, que chega para pegar o que precisa e sai sem olhar pra trás contente com o que teve…). Há um risco da burguesia (indústria cultural) “matar” o Hip-Hop ou esta é uma história de guerra que não acaba?
Toni C. – As pessoas por vezes parecem espantadas e se incomodam com esses aspectos de conflitos sociais traduzidos na arte. Mas não fui eu quem inventou esta guerra. Que está retratada em meu romance, mas também está em qualquer esquina, é comum a gente tropeçar em gente vivendo nas ruas enquanto uns passeiam de helicóptero ou em automóvel de luxo blindado. Essa não me parece uma guerra eterna, a guerra acaba quando o oprimido se libertar e libertar também seu opressor.
Vermelho – De onde saiu o Pepeu, precursor do movimento no Brasil, em 1985? Se o Hip-Hop, como você descreve no livro, “nasceu do que existia, incorpora o que vem, tecnologia, elasticidade”, que cara ele tinha há 26 anos? Como ele se modificou e quanto cresceu desde o início?
Toni C. – Pepeu foi o primeiro rapper a gravar um disco solo no Brasil. Ele surge dos versos de improviso, das rimas para animar festas. A coisa começou descontraída e foi ficando séria. Agora o fundamental para mim não é de onde veio, mas aonde ele foi parar: Pepeu é a história viva.
Vermelho – Internamente, o Hip-Hop representa uma “maneira inteligente das gangues resolverem suas diferenças sem a necessidade de violência física”; externamente, ele aparece como o “tambor moderno chamando para a guerra cotidiana”. Como é essa paz aguerrida? O Hip-Hop representa mais uma força entre os movimentos que lutam pela mudança do sistema e, portanto, ele tem a missão de provocar e nunca irá ser absorvido pela indústria?
Toni C. – Eu, quando vejo imagens ou presencio a atuação da polícia em ações como a invasão da PM no campus da USP, na operação da cracolândia, na desapropriação da favela do Pinheirinho, ou no show dos Racionais Mc's durante a virada cultural de 2007, não consigo deixar de reparar a assustadora semelhança dos capacetes, bombas, balas e nos escudos escrito CHOQUE! Percebo que eles nos tratam todos como iguais, mas nós ainda temos muito foco nas nossas diferenças. O mano que sente na pele o racismo, a irmã que luta pelas questões das mulheres ou o cara sensível das causas ambientais quando se derem conta que enfrentam um inimigo comum, se tonarão imbatíveis.
Vermelho – “Quem lê demais não tem pensamentos próprios”. Por que isso é Hip-Hop? Soou dissonante pra mim, recém-iniciada…
Toni C. – A erudição e o conhecimento que servem para libertar hoje estão nas mão dos que aprisionam. O Hip-Hop ensinou pra mim e para toda uma geração muito mais que as instituições formais de ensino. Hoje temos advogados, parlamentares, médicos, pensadores em todas as áreas e o Hip-Hop foi quem ensinou a nós quem foi Malcom X, Nelson Mandela, Martin Luther King, Stive Biko, Zumbi dos Palmares e tantos outros que os livros escolares insistiam em esconder. Agora somos nós que escrevemos nossa própria história, como diz o grupo Inquérito: "Se a história é nossa, deixa que nóis escreve".
Vermelho – O Criolo é Hip-Hop?
Toni C. – Criolo é um parceiro que sempre encontrei nos eventos, rinhas de Mc's, nos saraus. É um cara do Hip-Hop faz tempo, o grande público foi que conheceu ele ontem. Mas de talentoso igual a ele as periferias estão cheias. Talento invisível, desperdiçado é o que mais tem por aqui, ainda bem que temos caras como Criolo e Emicida que conseguiram furar o bloqueio para provar que estou certo.
Vermelho – Afinal, existe um quinto elemento no Hip-Hop, como você apontou no livro, além de poesia, grafite, dança e política?
Toni C. – Hip-Hop para mim está no campo da filosofia, psicologia, sociologia. Tudo isso mixado com nossa rica cultura. Essas coisas não são estáticas como na metafísica. Hip-Hop é dialética e o quinto elemento só pode existir se ele questionar inclusive a própria existência.
Vermelho – Posso chamar o Hip-Hop de Rap, na intimidade, ou Rap é “outra pessoa”? Um parente próximo?
Toni C. – O Hip-Hop e o Rap às vezes são tratados como sinônimos, mas você como jornalista sabe que nenhum sinônimo tem equivalência absoluta. O Rap está mais para um filho do Hip-Hop, eu penso. O Rap é um estilo musical, Hip-Hop em sua definição clássica é um movimento socio cultural, formado pelo DJ e MC responsáveis pela música, mas também pelo Graffiteiro e o B.boy, artes plastícas e a dança respectivamente.
Vermelho – “Vai na fé” parece mais que força de expressão, né? Por que o Hip-Hop tem essa ligação com religião? E como é essa ligação efetivamente?
Toni C. – Porque o Hip-Hop no Brasil é feito por um povo que vem de muitas nações e tem, além da religiosidade, a capacidade de fundir crenças num sincretismo único, que se soma à origem afro do movimento, portador de tradições como patuá. Na prática, você tem em um único show um grupo gospel seguido por um com forte influência das religiões afro, e isso não vira "guerra santa".
Vermelho – O Hip-Hop concorre no mercado com outros ritmos, como o reggae, que entrou no final do teu livro, ou ele tem outra proposta de avanço na sociedade?
Toni C. – Quando visto de dentro, Hip-Hop não é apenas um ritmo, imagino que nem o Reggae. Em termos de mercado, onde a indústria caolha só enxerga o lucro, seriam concorrentes, se tanto o Reggae ou o Hip-Hop tivessem oportunidades de mostrarem suas produções e tivessem espaço de divulgação. O grupo Racionais Mc's vendeu mais de um milhão de cópias, sem precisar se submeter à "indústria". Isso não tira a força do Reggae e do Samba, por que eles não são concorrentes do Rap, no fundo somos todos um só.
Para entrar no clima
Akins Kinte – "Valeu!" (declamou durante o sarau de terça)
#PoucasPalavras – Grupo Inquérito