Sem categoria

Cap. XI – O jardim suspenso de Chica

No outeiro do Carmo, Chica descobrira um canteiro com begônias, margaridas e açucenas brancas. Fora atraída pelo cheiro nas primeiras horas do dia, quando a praça cobre-se de agourenta névoa. O silêncio a ajudara na absorção da brisa.

Ela subira rastejando, a partir do cruzeiro no meio do largo. Mesmo com a mistura de vapores de intestinos, de bexigas, distinguiu o perfume. No jardim sem cultivo, impressionou-se com as begônias-de-folha-estreita, viçosas e maduras. As margaridas ainda crescendo, com pouca radiação. As açucenas alvas soltando um perfume de leite fresco, fazendo justiça ao esforço de curiosidade de Chica. Colheu alguns ramos, poupando a pouca idade das outras; colheu, depositou num dos jarros de porcelana de seu ateliê. Dia seguinte em diante, muniu-se de uma borrifadora com tampa de rosca, furos de esguicho. Com o calor, a umidade do orvalho era escassa. Ela borrifava água. Assim, manteve no ateliê, na quitanda, jarros com flores de seu cultivo na Praça da Preguiça, sem o conhecimento da voluntária ignorância dos moradores.
– Podem pensar que você está cultivando maconha no oitão da igreja.

– Maconha tem um cheio forte, logo seria sentido.
Ela cumpriu a rotina sem agenda, movida pelo instinto sem artifícios. Maújo, dormindo, espreitava a desforra com o secretário. Não confessara ser militante junto com Gertrude, Caetano e Xisto; mas discorreu como se estivesse descortinando um cenário a vida de descobertas, de sustos, nos choques com a administração da cidade. Sabia, ela, o culto que ele tinha da vida vivida com Gertrude; não sentia ciúmes porque também não removia da memória as lições que tivera antes de conhecê-lo. Além disso, unia-os – Maújo, Gertrude, Caetano e Xisto – a afinidade no trato com homens e mulheres de diferentes raças. Não desconfiava da teia invisível do Partido, mesmo suspeitando da existência de um guia por trás dos quatro, a exemplo de sua entrega a Ogum. Maújo, sem mencionar nomes. Chica, acudindo-se nos guias.

– Está me sugerindo isso? – ajuntou sobre a suspeita de plantio de maconha – Não é uma má idéia. O cheiro de cânhamo descendo do monte do Carmo, correndo as ladeiras. Brisa espalhando bafos de terra. Seria o mesmo que reabrir os túmulos dos caetés chacinados. A terra soprando vida até para as beatas que esconjuram minhas estatuetas! Maconha tem propriedade purgativa!

– Não é assim que pensam os plantonistas do Distrito. Sentiriam o cheiro da erva lá onde estão, no fundo do Varadouro.

– Seria engraçado…

– E terrível ver aqueles homens descendo da Veraneio, à meia-noite, cercando o Maconhão com seus jaqueões fedorentos, imitando os tiras gringos. Revistando todo mundo, inclusive nós. A essa altura estão de olho na gente. Já nos viram sentados, comendo, bebendo, sem reclamar o bafo que se respira lá dentro.

– Nós temos cabeça e olfato apurados; sabemos filtrar o ar que se respira no Maconhão.

– Como você descobriu a maconha, Chica?

– Em Tracunhaém. Eu freqüentava a oficina de Bibiu. Ele fazia estátuas de massapê, estátuas grandes de santos. Fez uma de São Francisco, com pombas nos braços e nos ombros. Guardava o fumo no orifício do ânus de cada ave; dentro era oco. Os pés das pombas eram colados com uma cola removível. Era a estátua mais admirada. Ele não vendia, dizia que era sua primeira criação, um talismã inegociável.

– Ele revelou o segredo a você!

– Confiava em mim. Dizia que minha habilidade com a massa de terra molhada me predispunha a conhecer os segredos dos homens.

– Ele apaixonou-se por você?

– Acho que sim, mas nunca me tocou. Uma vez me pediu para posar para ele, sem roupa. Concordei depois que ele me aplicou uns tapas de liamba. Tirei a roupa por trás de um biombo. Deixei um peito descoberto, o outro cobri com um véu branco, bordado, do ombro ao ventre, entre as pernas. Deitei na otomana, de frente para ele. Ele me pintou, conseguiu capturar todos os traços de meu corpo. Mas botou outro rosto, a meu pedido.

– Era essa a otomana?

– Sim. Ele me deu de presente.

– É o seu talismã ?

– Conservo como uma lembrança da infância.

– O que faz Bibiu, hoje?

– Está com 70 anos, imóvel em cima de uma cama. Tem mal de Parkinson.

– Não pensa em visitá-lo?

– Ele não fala. Tenho medo de como vai reagir. Posso precipitar sua morte.

– Quero conhecer esse quadro. Comparar com seu corpo de hoje.

– Estou mais moça, com 19 anos. Você pode se apaixonar pelo rosto postiço que ele botou.

– Amaria você duas vezes.

– Estou satisfeita com sua porção de amor.

Tomava chá de tília, ela, toda véspera de menstruação. Tinha medo, não queria incorporar Ogum com o ventre intumescido, a vagina coberta por um tampão embebido de sangue. Não ficava mal-humorada ou tensionada. À noite, permanecia no quarto, mesmo com homenagens ao santo. O babalorixá, as negras, todos sabiam que a ausência de Chica era por conta da menstruação. Aproveitava, ela, para, antes da chegada de Maújo, puxar a liamba sentada, encostada nas pedras nos fundos da pousada. Maújo, irrompendo no portão, sentava-se de seu lado. Ele se adaptara aos quatro dias de mênstruo, apaziguando a xoxota em alvoroço.
Dois samurais destripando-se em taras suicidas. A dona da pousada, devota, ouvindo grunhidos, benzia-se. Não assinara a petição contra as surubas de Chica. Maújo nunca atrasara o pagamento. A velha, com balbucios de censuras, distraindo-se com a colher de pau na panela com canja de galinha. Ofereceu a Maújo uma cuia de barro cheia. Ele recusou, teve medo das bolhas de gordura na superfície da sopa.

No Maconhão, comiam postas assadas de peixe. Chica comia a cabeça, salpicando pimenta malagueta. Os dedos lambuzados, chupava-os na língua riscada de fissuras.

– Está comendo como se estivesse voltado da macumba.

– Dá na mesma. Não me entreguei a Ogum, mas me entreguei a você. Ogum não me satisfaz sexualmente. Eu que lhe faço oferendas.

– Se eu pedisse para você deixar de ir às cerimônias?

– Você não seria capaz.

– Nem devo. Quero você livre para acreditar.

– Você não tem fé?

– Minha única fé é na força do povo… Que aliás está meio fora de forma.

– No carnaval demonstra muita energia.

– No carnaval esbanja força; durante o ano é maltratado e não se dá conta de que pode resistir. Queria que todos fossem como você, mas com o pensamento na felicidade.

– Não procuro ser feliz?

– Você é feliz a seu modo. Por isso deve ser respeitada. É isso que as beatas não entendem.

– O que vocês conversam quando estão na casa de Gertrude?

– “Atrás de portas fechadas, à luz de velas acesas, entre sigilo e espionagem, acontece a Inconfidência.”- Citou o Romanceiro imaginando Chica recrutada por ele, na mesa de reuniões de Gertrude, com a aprovação de Marx, a tolerância carijó de Caetano.

– Não tem relido Cecília, ultimamente – insistiu ele.

– As carolas, o secretário, a espera da decisão da Justiça. Interrompi o que gosto de fazer todo dia. Não se preocupe: nunca vou deixar de ler Cecília Meireles.

– Tire o livro do baú para não mofar. Ponha-o na prateleira acima da escrivaninha, ao lado de um dos Budas.