Professora Ana Fani e a aula que não aconteceu
Foi com grande indignação e imensa tristeza que vi na última quinta feira a PM invadir o espaço da universidade e, ao fazê-lo, impor sua violenta racionalidade à vida cotidiana do campus. As “forças da ordem” instauraram o caos, usurpando a liberdade necessária e indispensável à realização de nosso trabalho, com o discurso da manutenção da mesma “ordem” que ele subverteu.
Por Ana Fani Alessandri Carlos*
Publicado 02/11/2011 13:41
Não é difícil reduzir sua ação ao combate do tráfico de drogas sob o argumento de que o tratamento ao usuário de droga pego em flagrante deve ser o mesmo para todos os cidadãos sejam eles estudantes ou não, estejam eles no campus universitário ou fora dele.
A questão está longe de se resumir a esta ação/atitude. A situação em que nos encontramos é muito mais complexa. Trata-se do modo como o uso da força é justificado pelas autoridades. Assim a presença impositiva de uma fileira de motos, um despropositado número de PMs no
estacionamento do prédio da História/Geografia, para autuar três estudantes (antecedidos por blitz constrangedoras e cada vez mais freqüentes aos estudantes da USP) com seus gadgets, somados a bombas de “efeito moral” instauram o caos e impediram que a atividade fim da universidade se realizasse. Além do que acabaram gerando mais violência e, com ela, um impasse, cujo desfecho certamente recaíra – como de hábito, pela punição aos mais fracos.
Consequentemente, trata-se de buscar a real origem de todo este caos que invade a vida cotidiana do campus subtraindo-lhe o sentido, e não poderia ser outra senão a lógica que orienta as atitudes da atual gestão universitária. Tal atitude vem revelando um desconhecimento do papel e sentido histórico desta instituição pública, preocupada que esta em atender as exigências do mercado – no discurso tratado como aproximação entre universidade-sociedade (seja lá o que isto quer dizer!)
Os crimes de todos os tipos e assassinatos não podem ou devem ser aceitos passivamente, nem no campus, nem fora dele, mas suas origens parecem não estar suficientemente claras, o que parece certo, todavia que com violência e negação de direitos civis estaremos cada vez mais distante da busca de possíveis e desejadas soluções.
Certamente, trata-se de formar nossos estudantes na busca da compreensão do fato de que o consumo inocente de um baseado reproduz o circuito do narcotráfico fundado numa violência ainda maior do que a da PM, e cuja existência impede o mais simples convívio social nas
áreas de sua atuação direta, bem como, no plano da sociedade a realização de um projeto que busque a realização do direto à cidade, a realização da cidadania plena e a subversão da situação de desigualdade que funda a sociedade brasileira.
Certamente os estudantes envolvidos nesta batalha devem ser totalmente favoráveis à superação desta condição de desigualdade que inclusive impede que a maioria daqueles que se encontram na mesma faixa etária tenham acesso à mesma universidade pela qual estamos todos engajados em sua defesa.
Abrir os portões da USP para a PM, vem revelando – em curto espaço de tempo – que esta foi uma saída, no mínimo, irresponsável.
A gestão da USP, ao abrir mão de suas atribuições, vem de forma consistente destituindo a universidade de seus conteúdos e sentido.
Para citar um caso dos mais graves, lembramos, aqui, os programas de pós-graduação deixados – pesquisadores e estudantes, com suas pesquisas – à mercê das instituições de fomento que vem impondo, no lugar do debate acadêmico, a competição entre programas e pesquisadores em busca de linhas em seus currículos lattes.
Competição esta, agora exacerbada pela nova lógica da carreira docente que faz com que o vizinho de sua porta se torne o inimigo a ser combatido por pontos pela progressão na carreira.
Na busca por estes objetivos, os prazos se tronam cada vez mais apertados esvaziando o ato de conhecer como ato de habitar o tempo lento da reflexão, agora, invadida pela quantificação.
Com isso é nosso trabalho que é completamente destituído de sentido, e o conhecimento produzido redunda em mera banalidade ou meras constatações. Agora, na mesma lógica que terceiriza a pós-graduação, a Universidade terceiriza mais uma das atividades que permite a
realização de seus objetivos – a segurança do/no campus.
A cada passo, as sucessivas gestões parecem perder pouco a pouco sua legitimidade para levar a universidade para o futuro, prolongando uma história de conquistas tanto no plano do conhecimento da realidade brasileira – agora comprometido pelo tempo veloz com que precisamos produzir textos, artigos, orientações, patentes, etc- quanto no cenário político brasileiro em sua luta contra a ditadura.
Que projeto vislumbrar? Que futuro podemos construir? Sem dúvida o coletivo desta grande universidade precisa apontar novas possibilidades e caminhos mirando o futuro, mas aprendendo com nossa história…..
*Ana Fani Alessandri Carlos é professora doutora do Departamento de Geografia da FFLCH/USP