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Espanha: Transexuais exigem desaparecer da lista de patologias

No papel, na Espanha seus direitos são iguais desde 2007, quando a lei de identidade de gênero foi recebida pelos transexuais como uma façanha: conquistou-se o direito de se sentir mulher ou homem, viver como tal e que a carteira de identidade o reconheça. Para os 7 mil a 12 mil transexuais que vivem na Espanha, a realidade cotidiana continua complicada.

Sem trabalho, uma vida normalizada é difícil, dado o alto índice de desemprego que afeta o coletivo. E o estigma de ser considerado oficialmente um doente o agrava. A OMS ainda considera a transexualidade uma doença, algo que os afetados esperam mudar no ano que vem, quando a organização elaborar o novo catálogo de patologias.

A esta causa se dedica o Dia Internacional pela Despatologização da Transexualidade, comemorado em 25 de outubro. A campanha começa a ganhar pequenas batalhas: no último dia 12 a Unidade de Transtorno de Identidade de Gênero (Utig) de Málaga passou a se chamar Unidade de Transexualidade e Identidade de Gênero; uma mera mudança de nome que, no entanto, ajuda a eliminar barreiras. O maior triunfo político foi em 28 de setembro passado, quando o Parlamento Europeu aceitou eliminar sua consideração como patologia (por 442 votos a favor, 104 contra e 40 abstenções). Dos 35 eurodeputados espanhóis presentes, 33 votaram a favor. Um deles, Gabriel Mato (PP) se absteve. Juan Manuel García-Margallo (PP) votou contra por engano.

Essa maioria política pode ser reflexo de que a situação social mudou. O governo espanhol e a UE apoiam que se deixe de considerar como doença (como ocorreu em 1990 com a homossexualidade). A doutora Tella Plana, psiquiatra do Hospital Clinic de Barcelona, aposta em uma origem biológica da transexualidade e descarta que seja uma patologia psiquiátrica, "embora às vezes os pacientes tenham de forma secundária transtornos derivados das dificuldades de adaptação ou do conflito social".

O avanço foi abissal se olharmos para trás. Quando Carla Antonelli, primeira deputada transexual — eleita em maio para a Assembleia de Madri com o PSOE — deixou sua cidade natal (Güímar, Tenerife), em 1977, tinha 17 anos e nem seu nome, que ainda resiste a revelar, nem sua aparência masculina a representavam. "Fui embora sem dizer nada… isso era impensável em um povoado tão pequeno. Tenho irmãos com os quais deixei de falar… até hoje", lembra na sala de sua casa em Madri.

Saúde pública

Segundo Antonio Poveda, presidente da Federação Espanhola de Lésbicas, Gays, Transexuais e Bissexuais (FELGTB), esse coletivo sofre na Espanha entre 60% e 80% de desemprego e "é invisível na maioria dos programas de combate à discriminação". Diversas associações desenvolveram iniciativas para melhorar sua inserção laboral. "As pessoas transexuais somos muitas vezes obrigadas a abandonar a família e os estudos, e isso o limita a trabalhos como garçonete, dependente… mas pelo menos são dignos", afirma Mar Cambrollé, coordenadora da área transexual da FELGTB. Muitos, especialmente os imigrantes, são levados a exercer a prostituição, uma última opção nem livre, nem escolhida.

"Isto não é um capricho, você nasce assim. Eu me sentia homem desde que tenho o uso da razão", afirma José (nome fictício), funcionário público madrilenho de 39 anos e paciente da Utig da Comunidade de Madri. Aqueles que vão a uma dessas unidades enfrentam muitas vezes dois anos de espera, desde uma avaliação psicológica que "dura no mínimo três meses e oito sessões", segundo Nuria Asenjo, psicóloga clínica da Utig, ao eventual tratamento hormonal e à cirurgia de reatribuição necessária em cada caso.

A Andaluzia foi pioneira em subvencionar com dinheiro público o tratamento integral, incluindo a cirurgia. "Mas até lá há autênticos calvários de pessoas que passam um ano ou um ano e meio esperando para ser avaliadas", afirma Cambrollé. Para José, "a espera é um inferno, embora seja lógico. Desde que você se coloca um dia diante de seus pais e diz 'isso acontece comigo', você precisa de tratamento. Mas é necessário ter certeza".

A lei de 2007 possibilitou pela primeira vez a mudança de nome e sexo sem necessidade de cirurgia. Como requisito, um certificado médico de disforia de gênero [discordância entre o sexo genital e o psicológico] e outro que afirme que a pessoa esteve dois anos em tratamento médico para adequar suas características físicas ao sexo sentido. "Pode parecer uma besteira, mas ter uma identidade que reflete sua identidade é uma explosão, um big bang de energia. Uma carteira que não o representa o faz sentir-se inferior, o humilha e você fica às custas de outras pessoas; isto lhe devolve a dignidade", comemora Antonelli.

Completar o processo, quando não se tem dinheiro, é muito complicado. Há somente quatro unidades de identidade de gênero na Espanha: em Málaga, Madri, Barcelona e Bilbao. Outras comunidades enviam os pacientes a uma dessas unidades e aí se acaba tudo.

Vazio legal

No horizonte está a reivindicação de leis integrais, normas que abordem a saúde, a educação, a luta contra a discriminação e a inserção no mercado de trabalho.

"Pedimos políticas de discriminação positiva com o objetivo de chegar a uma situação de igualdade", diz Cambrollé, "por exemplo, com incentivos para as empresas, reservando uma cota de emprego público e campanhas de pedagogia social na televisão pública".

Diante da carência de uma lei integral estatal, a luta ocorre nas comunidades. Navarra aprovou a sua em 2009 e o País Basco poderá fazê-lo no final deste ano. Em Madri, na última legislatura o PP rejeitou uma proposta apresentada pelo PSM e a Esquerda Unida. Caso contraditório se dá na Andaluzia, onde os socialistas, em maioria absoluta, limitaram-se a apresentar uma proposição não de lei, incitando a junta a tramitá-la.

Em tempos de crise, além disso, não falta quem questione se a saúde pública deveria financiar essas intervenções. Na Catalunha, o PP de Alicia Sánchez-Camacho condicionou recentemente o apoio de sua formação aos Orçamentos da Generalitat, entre outras coisas à supressão das cirurgias de reatribuição de sexo. A paralisação dessas operações, afirma Marta Salvanz, figura destacada do coletivo transexual nessa comunidade, levaria muita gente a recorrer de novo a alternativas como injetar silicone líquido nos seios e nas nádegas, com o consequente risco para a saúde. "Poupariam em intervenções, mas perderiam mais no atendimento a outras doenças". Além disso, "se você diz a uma transexual que busque a vida para fazer a cirurgia, muitas vão ter de se prostituir, com o risco de se transformar em soro positivas". Isso representaria uma maior carga para o sistema de saúde: enquanto tratar uma pessoa com HIV representa "entre 12 mil e 17 mil euros anuais, uma cirurgia de reatribuição tem um custo total entre 14 mil e 24 mil", afirma Salvanz.

A ideia de que a transexualidade não é uma doença se choca com os preconceitos dos que questionam que necessite de tratamento médico. A resposta está em que é preciso diferenciar entre um processo biológico que deve ser corrigido e um transtorno que requer tratamento. As últimas pesquisas indicam que a transexualidade seria originada por uma ação inadequada da testosterona no desenvolvimento do feto, "entre a oitava semana de gravidez, quando se define o sexo genital, e a diferenciação sexual do cérebro, por volta da semana 22 ou 23", explica Antonio Becerra, coordenador da UTIG de Madri.

Mas se a situação dos espanhóis melhorou a dos estrangeiros é muito pior. A associação TranZ&People, de Barcelona, dá apoio a muitos transexuais imigrantes, um grupo em que a prostituição tem maior incidência. "Nós os orientamos para que possam mudar de nome em seus países", diz Zam Cifuentes, seu porta-voz. Na Espanha não o podem fazer. "Estão em total abandono. Além disso, são pessoas sem raízes familiares e com uma sociedade que os repele cada vez mais. E as taxas de suicídio, nem lhe conto….", acrescenta. "Mais uma vez tivemos de sair às 3 da manhã porque uma garota tentou se matar."

Crianças e adolescentes

A lei também não permite operar menores de 18 anos, e defendê-lo sequer é conflituoso, como reconhece o cirurgião plástico Iván Mañero, de Barcelona: "Não querem saber nada de menores. O medo de tratar de crianças, que é mal visto – ainda mais na esfera sexual – se antepõe ao fato de ajudá-los". "Chegam pais desesperados que dizem: 'Minha filha tentou se matar duas vezes, tem 16 anos e diz que na próxima se mata, temos um certificado médico, por favor opere-a'. Mas se eu faço isso, me aplicam o Código Penal e vou passar seis anos na prisão", afirma o médico.

Neste caso concreto, os pais conseguiram autorização judicial para a operação. Mas nem sempre é assim. E conforme se diminui em idade a situação piora. É um dos argumentos que apoiam a origem biológica da transexualidade. O problema se apresenta desde que o menino adquire consciência de sua sexualidade, como diz Nuria, da Andicfam, a Associação de Meninos com Discordância de Identidade Congênita. Há um ano, no serviço de psiquiatria infantil do Clinic de Barcelona, lhe disseram que seu filho, então com cinco anos, era na realidade uma menina: "Já antes de falar suas preferências eram de menina. E quando começou a fazê-lo usava adjetivos femininos para referir-se a ela, e ao ver os desenhos animados se identificava com os personagens femininos… Com três anos disse à sua avó que quando fosse mais velha iria procurar um médico para que trocasse sua pele e lhe pusesse uma de menina", admite.

Na unidade do Clinic fazem a todos os pacientes um acompanhamento para garantir que efetivamente estão diante de um problema de identidade de gênero. Mas o ruim é quando procuram um médico que não está preparado. "Um pai da associação foi com sua filha [um menino, biologicamente falando] vestida de menina a um psiquiatra infantil e lhe explicou o que acontecia. O médico os denunciou ao serviço social e os acusou de maus-tratos psicológicos devido a uma obsessão doentia". Nuria lembra seu próprio caso: "No dia em que tirei a roupa de menino de minha filha para trocá-la por roupa de menina foi quase tão duro como enterrar um filho", confessa, soluçando. "E que no meio desse sofrimento você precise se defender é uma vergonha… eu não posso me limitar a buscar o melhor tratamento para minha filha, tenho de falar para que as pessoas entendam."

Qual é então o melhor procedimento a seguir com os menores? Alguns, como os membros da UTIG de Madri, não são partidários de dar tratamentos hormonais e usam a prudência como argumento para limitar sua ação ao acompanhamento psicológico. Outros são partidários de administrar no início da puberdade hormônios inibidores que bloqueiam o desenvolvimento das características próprias de cada sexo: não lhe sai barba nem muda sua voz, impede que surjam seios… É um tratamento reversível, que dá aos médicos mais tempo para confirmar o diagnóstico e faz que a cirurgia posterior seja menos traumática, além de prevenir o aparecimento de sérios problemas psicológicos.

Antonelli reconhece que houve uma evolução, mas ainda não há equilíbrio. "Falta pedagogia, visualização, normalização… porque se podem pedir planos para os ciganos e não para os transexuais? Aqui na realidade há um preconceito subjacente contra o coletivo; nos dizem que não valemos nada, não somos nada e não temos direito a nada."

Fonte: El País
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves