Laerte Braga: Ustra é só mais um covarde sob a saia da anistia
O jornalista Luís Eduardo Merlino foi preso e assassinado na OBAN – Operação Bandeirantes – à época do regime militar. O texto a seguir, longo, mas emocionante e revelador de novos detalhes, narra toda a história da prisão, tortura e morte do jovem de 23 anos à época. A reconstituição foi feita com base em documentos oficiais.
Publicado 26/08/2011 15:47
A OBAN foi criada com recursos de empresas como a Mercedes Benz, a Supergasbrás e outras, em associação com militares golpistas de 1964, organizada de fora para dentro, ou seja, de países que comandavam o Brasil e os militares golpistas, notadamente os EUA.
Os documentos a seguir são a integra dos depoimentos das testemunhas arroladas por Ângela Maria Mendes de Almeida e Regina Maria Merlino Dis de Almeida, respectivamente companheira e irmã de Luís Eduardo Merlino.
A intenção da companheira e da irmã de Luís Eduardo Merlino é provar a tortura, a morte de companheiro e irmão por tortura e sob o comando de Brilhante Ustra, à época major do Exército e hoje uma das grandes vergonhas que nossos militares teimam em esconder atrás da saia da anistia. A história que não querem ver revelada. A das barbaridades cometidas pelos golpistas de 1964 contra Luís Eduardo Merlino e outros.
Os depoimentos são de causar engulhos, tamanha a covardia de figuras sinistras como Brilhante Ustra (que outros covardes chamam de “patriota”) e são fundamentais para que se possa compreender a extensão do regime militar, do golpe de 1964 e uma de suas facetas – a mais cruel e perversa – a tortura, o assassinato de adversários do regime.
Registre-se que muitos dos presos mortos foram desovados por caminhões emprestados pelo jornal FOLHA DE SÃO PAULO (os caminhões encarregados da distribuição das edições diárias do jornal), cúmplice da violência e da estupidez que permeou o Brasil com a derrubada do governo Goulart (legítimo e democrático). Com isso criavam pretexto. Os presos teriam fugido e sido atropelados.
Os caixões eram entregues lacrados às famílias, proibida a sua abertura (os velórios eram vigiados por esbirros do regime) para evitar que a tortura fosse constatada.
Restam sendo um texto longo, mas de suma importância para que se conheça a história real e se possa medir o verdadeiro caráter, covarde e assassino, dos golpistas. Ustra, como o delegado Sérgio Fleury são apenas dois dos muitos covardes escondidos atrás da saia da anistia, mas servem de síntese do que aconteceu ao Brasil e aos brasileiros com o golpe de 1964.
Luiz Eduardo Merlino, repórter do Jornal da Tarde, entrou como preso no DOI-CODI e, quatro dias depois, estava irremediavelmente morto, antes de completar 23 anos. Na noite de 15 de julho de 1971, ele dormia na casa da mãe, em Santos, quando foi despertado por três homens em trajes civis, armados com metralhadoras. “Logo estarei de volta”, disse Merlino, tentando tranqüilizar a mãe e a irmã. Nunca mais voltou.
Merlino passou a madrugada e o dia seguinte na sala de tortura. Ao lado ficava a solitária, conhecida como “X-Zero”, uma cela quase totalmente escura, com chão de cimento, um colchão manchado de sangue e uma privada turca.
O único preso do lugar, Guido Rocha, ouvia os gritos e gemidos de Merlino, submetido a sessões continuadas de tortura pelas três turmas de agentes que se revezavam em turnos de oito horas no DOI-CODI para preservar o ritmo da pancadaria ao longo do dia. Horas depois, arrastado pelos torturadores, ele foi jogado na “X-Zero”. Estava muito machucado, as duas pernas dormentes pelas horas pendurado no pau-de-arara. Para ir à privada, Merlino precisava ser carregado por Guido. Estava tão debilitado que, no lugar da usual acareação com outro preso na sala de tortura ao lado, Merlinoteve o ‘privilégio’ de ser acareado na própria “X-Zero”.
Na manhã do dia 17, o enfermeiro da Equipe A de Ustra arrastou uma mesa até o pátio para onde se abriam sete celas. O carcereiro carregou Merlino até a mesa improvisada, onde o enfermeiro, com bata branca, calças e botas militares, colocou-o de bruços para massagear as pernas. Quando lhe tiraram o calção, os presos viram que as nádegas de Merlino estavam esfoladas. Os presos das celas 2 e 3 o ouviram dizer que fora torturado toda a noite e que suas pernas não o obedeciam mais. Um dos detidos, Rui Coelho, seria anos depois vice-diretor da Faculdade de Filosofia da USP. De volta ao “X-Zero”, Merlino foi submetido pelo enfermeiro ao teste de reflexo no joelho e na planta do pé. Nenhum respondeu.
Tudo o que ele comia, vomitava. Havia sangue no vômito. Guido deu uma pêra a Merlino, que lhe fez um apelo: “Chame o enfermeiro, rápido! Eu estou muito mal”, disse Merlino, agora com os braços também dormentes. O companheiro bateu na porta, gritou por socorro. O enfermeiro voltou, com outras pessoas identificadas por Guido como torturadores. Merlino foi transferido para o Hospital Geral do Exército. No dia 20, pela manhã, o PM Gabriel contou aos presos do DOI-CODI de Ustra que Merlino morrera na véspera. “Problemas de coração”, disse. Às 20h daquele mesmo dia, dona Iracema Merlino recebeu um telefonema de um delegado do DOPS com uma versão menos caridosa: seu filho, contou o policial, matou-se ao se jogar embaixo de um carro na BR-116, ao escapar da escolta que o levava a Porto Alegre. O corpo do jornalista foi entregue à família num caixão fechado.
Dois anos depois, ainda preso no DOI-CODI, o historiador Joel Rufino dos Santos ouviu de um de seus torturadores, o agente Oberdan, esta versão: “O Merlino não morreu como vocês pensam. Ele foi para o hospital passando mal. Telefonaram de lá para dizer: ‘Ou cortamos suas pernas ou ele morre’. Fizemos uma votação. Ganhou ‘deixar morrer’. Eu era contra. Estou contando porque sei que vocês eram amigos”.
O laudo do IML, assinado por dois médicos legistas, apontava como causa da morte “anemia aguda traumática por ruptura da artéria ilíaca direita”, e finalizava com uma suposição nada científica: “Segundo consta, foi vítima de atropelamento”. Amigos de Merlino acorreram ao local do suposto atropelamento, e não encontraram nenhum vestígio do acidente. Não houve registro policial, o atropelador não deixou pistas. A censura impediu a notícia da morte de Merlino. Só no dia 26 de agosto de 1971 é que O Estado de S.Paulo conseguiu vencer a barreira, publicando o anúncio fúnebre para a missa de 30⁰ dia na Catedral da Sé. Quase 800 jornalistas compareceram ao culto na Sé, cercada por forte aparato policial, que incluía agentes com metralhadoras infiltrados até no coro da igreja.
Esta é a história que José Sarney vai ouvir no tribunal. A estória que o coronel Ustra contará é a mesma de sempre e foi antecipada por ele, no início do mês, num site de ex-agentes da repressão e nostálgicos da treva, o Ternuma, abreviatura de ‘Terrorismo Nunca Mais’.
Esta é a delirante, cândida versão de Ustra: “Ao voltar [da França, Merlino] foi preso e, depois de interrogatórios, foi transportado em um automóvel para o Rio Grande do Sul, a fim de ali proceder ao reconhecimento de alguns contatos que mantinha com militantes. Na rodovia BR-116, na altura da cidade de Jacupiranga, a equipe de agentes que o transportou parou para um lanche ou um café. Aproveitando uma distração da equipe, Merlino, na tentativa de fuga, lançou-se na frente de um veículo que trafegava pela rodovia. Se bem me lembro, não foi possível a identificação que o atropelou. Faleceu no dia 19/7/1971, às 19h30, na rodovia BR-116, vítima de atropelamento”. Um parágrafo adiante, Ustra concede: “Hoje, quarenta anos depois, se houve ou não tortura, é impossível comprovar”.
Assim, só cuspindo marimbondos de fogo para confiar na versão de uma equipe tão distraída do mais temido DOI-CODI do país e para acreditar na repentina agilidade física de um preso capaz de correr para uma rodovia federal e incapaz de alcançar a privada da masmorra pela paralisia das pernas destroçadas no pau-de-arara. Nem o imortal José Sarney, autor de 22 livros, três deles romances, conseguiria produzir ficção tão ordinária, tão sórdida, tão indecente.
No Tribunal de Justiça de São Paulo, a partir desta semana, um ex-presidente da República poderá apressar (ou não) o seu melancólico final de carreira.
Acreditando no inacreditável e defendendo o indefensável, José Sarney encontrou, enfim, o roteiro e o personagem que podem levá-lo definitivamente ao brejal da desmemória, da inverdade e da injustiça.
Pensando bem — pensando no presidente e no torturador, no ‘coronel’ e no coronel — Sarney e Ustra bem que se merecem!
O Brasil e os brasileiros é que não mereciam isso”.
Fonte: Rede Castor Photo (extraído de O Rebate – a divulgação dos documentos é resultado do trabalho do jornalista Luís Cláudio Cunha, podem ser vistos na Rede Castor Photo)