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Bercht: Darwin entre o determinismo e a dialética

A teoria da evolução foi uma revolução científica que, contra o determinismo e o reducionismo anteriores, abriu caminho para a explicação dialética da vida, como Marx e Engels ressaltaram. Mas que é posta de lado quando a ciência atual atribui ao gene um poder absoluto.

Por Verônica Bercht *

Charles Darwin faleceu numa quarta-feira, em 19 de abril de 1882, aos 73 anos. Não fosse a articulação promovida por seu primo e também cientista, Francis Galton, seu corpo teria sido enterrado, obscuramente, no jazigo da família na igreja St. Mary, na pequena cidade de Downe.

A iniciativa de Galton pôs em movimento toda uma rede de autoridades que incluía cônegos, bispos, lordes, cientistas, presidentes de instituições do calibre da Royal Society, representantes do Estado e os mais influentes jornais e revistas da época. E, em poucos dias, resultou na autorização para que o corpo de Darwin, autor de um dos maiores ataques à religião até então realizados, repousasse no solo sagrado da Abadia de Westminster, o mesmo que acolheu o imortal Isaac Newton, talvez o maior pensador de todos os tempos produzido na Inglaterra.

A cruzada percorreu um caminho sinuoso. Apesar do reconhecimento que alcançou em vida, culminando com o estrondoso sucesso de Sobre a origem das espécies através da seleção natural (1859), o caminho para o reconhecimento oficial da sua contribuição intelectual à humanidade após sua morte foi tumultuado pelas contradições que marcaram sua vida no âmbito social, político, profissional, pessoal e familiar.

Em “Darwin, a vida de um evolucionista atormentado”, Adrian Desmond e James Moore contam que os obituários de jornais franceses, prussianos e norte-americanos, comparando-o a Isaac Newton, acusavam a Inglaterra de não valorizar seus “gênios nativos”. Segundo os biógrafos, a Inglaterra conservadora teve de se curvar à pressão estrangeira, e o solo sagrado da Abadia acolheu o corpo daquele que, ao destronar a supremacia divina sobre a manifestação da vida, deu argumentos científicos para a nova ordem social que se estabelecia.

Como conciliar o Darwin herege e o Darwin gigante? O que se viu, na época, foi uma “acomodação” entre religião e ciência. Um exemplo, entre muitos, é o do jornal inglês Daily News, que considerou a doutrina de Darwin coerente “com a fé religiosa e a esperança”. No domingo seguinte à morte de Darwin, os cônegos das mais importantes igrejas inglesas, inclusive o da Abadia de Westminster, elogiaram Darwin e sua ciência, afirmando que a seleção natural não era “estranha à religião cristã” se corretamente compreendida, estabelecendo assim que “as novas verdades da Biologia eram inofensivas [para a Fé], e seu descobridor, um santo secular” (Desmond: 2000, p. 680).

Os artigos dos jornais e os sermões clericais, no entanto, estavam longe de refletir apenas uma “acomodação” entre religião e ciência, como poderia parecer à primeira vista. Eles acatavam uma ruptura de vulto – a emancipação da ciência em relação à religião. Como diz aquele que Stephen Jay Gould considerou o maior evolucionista de todos os tempos, o biólogo Ernest Mayr, “a publicação de Origens produziu uma mudança decisiva na relação entre ciência e religião, particularmente na Inglaterra. Até 1859, o criacionismo, a teologia natural, a morfologia criacionista idealística, e outras teorias explanatórias, nas quais Deus jogava um papel importante, eram consideradas teorias científicas legítimas. Nas controvérsias, cientistas se opunham a cientistas. Depois de 1859, os argumentos religiosos rapidamente desapareceram das demonstrações dos cientistas”, e a “controvérsia passou a ser entre a religião organizada (igrejas) e os cientistas” (Mayr: 1982, p. 517).

Darwin foi apresentado às teorias da evolução materialistas quando era estudante em Edimburgo, pelo biólogo lamarckista Robert Grant. Lá, acompanhou os debates sobre a questão e também a censura a ela. Mais tarde, quando estudante em Cambridge, “Darwin se considerava um cristão devoto”, mesmo tendo antecedentes familiares que favoreciam o “livre-pensamento que ele sempre iria demonstrar”. Não era uma situação comum; na época, na Inglaterra, praticamente todos os naturalistas eram religiosos, como os professores que Darwin teve em Cambridge, como J. S. Helow (botânica) e Adam Sedgwick (geologia) (Foster: 2005, p 252).

Seu cristianismo inicial foi abalado, paulatinamente, por seus achados científicos e também por profundas reflexões sobre o significado da vida e da morte inspiradas pela própria experiência da vida, como o sofrimento de sua filha Annie, a mais velha dos 10 filhos do casal, falecida em 1851, aos 13 anos. Mas mesmo assim, manteve seu conservadorismo político até o final da vida, associado às suas origens aristocráticas e à sua formação religiosa.

Em Darwin, a vida de um evolucionista atormentado, os autores relacionam a angústia pessoal provocada pela contradição entre posições científica e religiosa progressistas, de um lado, e politicamente conservadora, de outro, ao sofrimento de Darwin com uma doença que o acompanhou desde jovem e que o levava a lamentar o tempo perdido com sucessivos mal estares e com os prolongados retiros numa clínica para tratamento.

No final da vida, ele se declarou agnóstico a Edward Aveling (que viria a ser o marido de Eleanor, filha de Karl Marx) e a um grupo de livres-pensadores que o visitaram em 28 de setembro de 1881. Disse que se desligara completamente do cristianismo aos 40 anos de idade. Mas, em relação à crença em Deus, Darwin insistiu que não aceitava atacar a religião da perspectiva da ciência. “Até o fim dos seus dias ele manteve um materialismo consistente na sua abordagem de história natural, mas se recusava a se pronunciar acerca da religião”, reconhecendo que “a ciência e a religião operam em esferas essencialmente diferentes, uma material, outra moral” (Foster: 2005, p. 309).

O agnosticismo não é ateísmo, mas postula que a questão da existência de Deus seria inacessível ao conhecimento humano, pois não pode ser comprovada empiricamente. A palavra foi forjada em 1869 pelo biólogo inglês Thomas H. Huxley (1825-1895), alcunhado o “buldogue” de Darwin pela radicalidade com que defendeu suas teses.

Com Darwin a teoria da evolução triunfou, e as explicações teológicas perderam a primazia. “A revolução darwiniana”, diz Foster, “golpeou dois postulados fundamentais do pensamento tradicional: o essencialismo e a teleologia” (Foster: 2005, p. 265). O essencialismo deriva de Platão, para quem as variações observadas na natureza seriam “a manifestação dos reflexos imperfeitos das constantes essências subjacentes” de modelos fixos e imutáveis (Foster: 2005, p. 265, citando Mayr, E., One long argument, p. 40-41). Essa forma de ver dominou o pensamento ocidental durante dois milênios. Darwin está entre os pioneiros que rejeitaram essa visão e, assim, “não foi totalmente compreendido pelos filósofos contemporâneos (que eram essencialistas), e seu conceito de evolução através da seleção natural foi assim considerado inaceitável” (Mayr: 1982, p. 38).

Outra questão é a teleologia – isto é, o desenvolvimento dirigido a um fim previamente determinado. O próprio Darwin, na apresentação da segunda edição de Origens, atribuiu a Lamarck o pioneirismo contra essa visão. “Há muito pouco tempo, a maioria dos naturalistas declarava que as espécies eram produções imutáveis criadas separadamente”. Lamarck foi o primeiro “a defender a doutrina de que todas as espécies, compreendendo o próprio homem, originaram-se de outras”, e “foi o primeiro a prestar à ciência o grande serviço de admitir que toda alteração, tanto no mundo orgânico quanto no mundo inorgânico, é o resultado de uma lei e não de uma intervenção miraculosa” (Darwin: 2009, p. 09-10).

A visão teleológica também tem raízes em Platão, e foi abalada pela revolução darwiniana. Por ela, a constatação de que os organismos ou objetos da natureza tinham funções específicas implicava a existência de um plano e, em consequência, de um criador que o elaborou. Ao demonstrar a existência de um processo natural contingente, que se desenvolve sem intenção pré-determinada, plano original, ou um criador, Darwin golpeou o argumento teleológico da criação divina segundo o qual, exemplifica Foster, os gatos estão adaptados para caçar camundongos, “por terem sido especialmente criados para isso”. Contra ela, o darwinismo propõe “que os gatos existem porque caçam bem os camundongos – a caça aos camundongos sendo não o fim, mas a condição da sua existência” (Foster: 2005, p. 266). Do ponto de vista teleológico (que é idealista) o mundo orgânico é adaptado à perfeição e está direcionado para um objetivo.

O abandono da visão teleológica da natureza e de seus processos tinha consequências que iam além das questões científicas e religiosas, abalando as estruturas éticas da sociedade. Por isso, para os teleologistas contemporâneos de Darwin, a teoria da seleção natural era “completamente imoral”.

Sedgwick, por exemplo, clamava angustiadamente que ela “desnuda o Homem de todos os seus atributos morais”, fazendo-o perder o sentido do certo e do errado. Argumentavam, diz Mayr, que Deus “deu propósito para o mundo, e a ordem moral do mundo era parte do seu propósito. Ao substituir esse propósito pelos processos automáticos da seleção natural, você remove não apenas o criador do nosso conceito de mundo, mas também destrói os fundamentos da moralidade”. (Mayr:1982, p. 515).

Apesar de abalados, o essencialismo e a teleologia não foram completamente eliminados do pensamento biológico, mas ganharam novas roupagens depois do desenvolvimento da chamada síntese neodarwiniana, no século XX, mantendo “sua credibilidade não apenas num segmento surpreendentemente grande da comunidade de biólogos, mas particularmente entre leigos e teólogos” (Mayr: 1982, p. 516). E também na mídia e entre muitos educadores, como mostram as teses que defendem a falsificação científica representada pelo criacionismo ou pelo chamado “desenho inteligente”.

O materialismo

A associação entre as teorias evolucionistas e o materialismo é muito mais antiga do que se supõe. Foster mostra como ela vem desde os gregos, como Empédocles e Epicuro, e do romano Lucrécio, autor da noção da sobrevivência das espécies através da adaptação ao meio ambiente, e mais importante, da ideia de que as espécies que não conseguiram se adaptar foram extintas. Depois de Lucrécio, morto em 55 a.C., o pensamento evolucionista só reapareceu em meados do século XVIII, hibernando durante 18 séculos.

Foi retomado por pensadores como Jean Baptiste Lamarck (1744-1829) e Erasmus Darwin, avô do autor de A Origem das espécies. Mas, até a publicação do livro de Darwin, estas teses estiveram “confinadas ao subterrâneo materialista”, à margem da “ciência respeitável e do pensamento do establishment” por não terem nenhuma “explicação clara do mecanismo evolucionário” (Foster: 2005, p. 252).

O materialismo moderno surgiu com a obra de Marx e Engels, e a publicação de “A Origem das espécies” foi saudada por eles com entusiasmo por demonstrar que a natureza, como a sociedade, também evoluía através dos tempos. Eles superaram as formas mecanicistas do materialismo anterior, com base na dialética e no conhecimento da evolução. A “concepção de história natural que emergia da análise de Darwin” permitia “um entendimento dialético da natureza, ou seja, em termos da sua emergência” e que se tornou, para eles, “a chave do entendimento da relação entre o que ele chamava ‘a concepção materialista de natureza’ e a concepção materialista de história” (Foster: 2005, p. 316).

Marx atribuía a Epicuro o pioneirismo na descoberta “da alienação, arraigada através da religião, na concepção de humana de natureza” (BF, 316). Para ele, como para Engels, as origens do materialismo (a sua base material) não estavam no materialismo francês do século XVIII, que era “exclusivamente mecanicista”, mas na Grécia antiga. O próprio Marx havia tirado de Epicuro a concepção de que a natureza “é percebida através dos nossos sentidos na medida em que ela ‘vai passando’, ou seja, num processo temporal”. Assim, diz Foster, dialética materialista foi concebida por Marx e Engels como uma alternativa tanto à teleologia quanto ao mecanicismo (Foster: 2005, 317-20).

Os materialistas franceses do século XVIII encaravam a natureza como uma máquina segmentada, com fronteiras rígidas entre seus elementos. Contra eles, Engels argumentou com base na teoria da evolução que não podia haver a fronteira rígida entre os seres vivos, do tipo ou isto ou aquilo, incondicional, universalmente válida. A dialética, propôs Engels, reconhece o lugar do tanto isto – quanto aquilo, que reconcilia os opostos, sendo o único método de pensamento adequado para a fase do desenvolvimento da ciência de sua época (BF, p. 320). Para Engels, a teoria darwiniana era a prova prática “da conexão interna entre necessidade e acaso de Hegel”.

Era uma visão dialética oposta ao determinismo, que ele associava aos materialistas franceses que buscavam “livrar-se do acaso negando-o totalmente”, como escreveu o companheiro de Marx. Ao contrário, para a visão dialética, a necessidade está alicerçada justamente no acaso (ou contingência), como Hegel e, muito antes dele, Epicuro, haviam indicado (Foster: 2005, p. 320-1).

Para Engels, Darwin “partiu da base mais ampla existente do acaso”. “As diferenças infinitas, acidentais, entre os indivíduos de uma única espécie”, que se acentuam “até romper o caráter da espécie” é que o levaram “a questionar a base anterior de toda regularidade na biologia, isto é, o conceito de espécie na sua prévia rigidez metafísica e imutabilidade”. Ao introduzir o acaso, derrubou a necessidade, como até então concebida. “A ideia anterior de necessidade se desfaz. Retê-la significa impor ditatorialmente à natureza como lei uma determinação arbitrária humana que está em contradistinção consigo mesma e com a realidade, significa negar assim toda necessidade interna na natureza viva” (citado em Foster: 2005, 321).

Isto é, não há um plano prévio que determina o desenvolvimento, plano que impõe a necessidade. “O fato de que Darwin havia partido do acaso absolutamente não invalidava o fato de que a evolução gerava uma necessidade compatível com o desenvolvimento emergente. ‘Cada avanço na evolução orgânica’, escreveu Engels, ‘é ao mesmo tempo uma regressão, fixando a evolução unilateral e excluindo a possibilidade da evolução em muitas outras direções’” (Foster: 2005, p. 322). Isto é, entre as inúmeras possibilidades de desenvolvimento, a evolução seguiu por um caminho – poderia tê-lo feito por outro. E é o fato de ter seguido aquele rumo que exclui a evolução nos rumos que poderiam estar implícitos, mas ficaram pelo caminho, tese que, um século depois, Stephen Jay Gould viria reafirmar.

As relações dialéticas, como aquela entre o acaso e a necessidade, são essenciais para o pensamento materialista dialético e para o conhecimento da natureza. Seu desconhecimento tem levado muitos estudiosos a cair na armadilha do uso ideológico da biologia, como aquele subjacente às teorias que atribuem um poder absoluto aos genes na determinação de características e comportamentos humanos. Sem a dialética o que vemos é a permanência dos velhos postulados teleológicos, essencialistas e/ou mecanicistas em grande parte da ciência biológica contemporânea.

Gene, organismo e ambiente

A biologia evolutiva moderna, em consequência da ascensão da visão darwiniana, já não se ocupa em estabelecer os “tipos ideais”, “fixos”, a partir de uma descrição “correta” da anatomia e fisiologia de indivíduos, como faziam os essencialistas. Atualmente a realidade que precisa ser explicada é a variação efetiva entre os organismos, que é a base material para a mudança evolutiva (Mayr, Lewontin). A busca dessa explicação permeia todos os ramos da biologia, como indicou o título do ensaio publicado em 1973 pelo geneticista Theodosius Dobzhanski: Nada na biologia faz sentido senão à luz da evolução, e que traz implícita a crítica às visões reducionistas e deterministas.

Aquela explicação depende da compreensão das relações entre os organismos e o meio ambiente, dimensões entre as quais os evolucionistas anteriores a Darwin não faziam distinção. Segundo o biólogo contemporâneo Richard Lewontin, para criar sua teoria da evolução, Darwin rompeu com essa visão e deu um “passo revolucionário” na concepção das relações entre organismo e ambiente, embora com limitações. “Darwin promoveu uma ruptura profunda com essa tradição intelectual ao alienar o interno do externo”, e “estabelecer uma separação absoluta entre os processos internos que geram o organismo e os processos externos, o ambiente, em que o organismo deve operar” (Lewontin: 2002, p. 47-8).

Na teoria de Darwin, o processo que produz a variação – hoje conhecido como mutação e recombinação de genes – é interno ao organismo e ocorre ao acaso, sem nenhuma dependência causal com relação às condições de seleção. Sem responder, diz Lewontin, “às demandas do ambiente”. Essa separação é a fonte do reducionismo de grande parte da ciência moderna, que coloca organismo de um lado e ambiente de outro, desconhecendo a relação dialética entre eles, forma de ver criticada por Lewontin. “Muitas metáforas já foram invocadas para ilustrar essa relação entre ambiente e organismo independentes entre si”.

Muitos pensavam que o “organismo propõe e o ambiente dispõe. O organismo faz conjeturas e o ambiente as refuta”. Ele questiona a metáfora da adaptação, embora reconheça que hoje, na forma mais aceita entre os especialistas, diz-se que “o ambiente propõe problemas e o organismo lança soluções aleatórias”, estrutura conceitual em que aquela metáfora, diz, “é, sem dúvida, apropriada. Adaptação é, literalmente, o processo pelo qual um objeto se torna apto a satisfazer uma exigência pré-existente” (Lewontin: 2002, p. 48).

Essa divisão do mundo em domínios autônomos independentes – o organismo e o ambiente, ou domínios internos e externos – “resultou numa imagem particular dos organismos e de suas atividades na vida”, e na ideia de que os seres vivos são determinados apenas “por fatores internos, ou seja, os genes” (Lewontin, 2000, p. 17).

Prosseguindo em sua crítica, para Lewontin, essa forma de ver propõe que o “mundo fora de nós coloca certos problemas, que não criamos, mas que apenas experimentamos como objetos. Os problemas são: encontrar um cônjuge, encontrar alimento, vencer as competições com os rivais, adquirir uma grande parte dos recursos do mundo”, e se tivermos os genes apropriados seremos capazes de resolver esses problemas e “deixar mais descendentes. Portanto, com essa visão, são realmente nossos genes que estão se propagando através de nós mesmos”, como diz a tese do gene egoísta de Richard Dawkins.

Nós seríamos apenas seus instrumentos, os veículos temporários usados nessa difusão comandada pelos genes. “Nas palavras de Richard Dawkins, um dos principais proponentes dessa visão biológica,” critica Lewontin, “nós somos ‘robôs desajeitados’ cujos genes ‘criou-nos corpo e mente’” (Lewontin, 2000, p. 17-8).

O Projeto Genoma Humano, iniciado em 1990 e finalizado em 2001, é a prova cabal dessa orientação reducionista. Ele pretendia revelar o conteúdo do código genético, fornecendo a almejada explicação material para desvendar a complexidade do organismo humano e a origem da variação de características físicas e comportamentais anômalas ou não. “Ficamos tão acostumados com a visão atomística do mundo, que teve origem com Descartes, que esquecemos de que se trata de uma metáfora. Não pensamos mais, como Descartes, que o mundo é semelhante a um relógio. Pensamos que é um relógio” (Lewontin, 2000, p. 19).

A produção científica é contraditória. A expressão mais avançada da ciência biológica moderna – o projeto Genoma –, mobilizada para compreender o gene, reintroduz o fatalismo que havia sido descartado quando se afastou Deus e outras explicações místicas da explicação dos fenômenos da vida. Só que, agora, localizando-o no gene. A premissa determinista de que tudo está no gene tem uma analogia implícita entre o propósito teleológico, ou o plano do criador, e o programa genético.

Antes mesmo da divulgação dos resultados do projeto Genoma, Lewontin descreveu, no livro “A Tripla Hélice: gene, organismo e ambiente”, várias dessas contradições, demonstrando que – ao contrário – há uma relação dialética entre o organismo e o ambiente, entre o interno e o externo. Lewontin aponta “um vasto conjunto de evidências segundo as quais a ontogenia de um organismo é consequência de uma interação singular entre os genes que ele possui, a sequência temporal dos ambientes externos aos quais está sujeito durante a vida e eventos aleatórios de interações moleculares que ocorrem dentro de células individuais, interações necessárias para uma explicação adequada da formação de um indivíduo”. Isto é, não está tudo no gene, como se supõe de forma generalizada.

Mas, mesmo assim, a visão determinista se mantém hegemônica. A crítica a ela impõe o avanço da compreensão dialética desses processos. A busca para a explicação das variações das características individuais humanas e, especialmente, das variações comportamentais terá, necessariamente, que incluir o rigoroso estudo histórico do desenvolvimento, das suas relações entre o todo (ambiente) e a parte (organismo), entre gene e indivíduo, entre indivíduo e sociedade, sem esquecer o papel do acaso, cuja consideração, pensava Marx, era fundamental para afastar qualquer compreensão mística sobre os processos naturais e sócio-históricos (Marx: 1969, p. 293).

Darwin teve o mérito de ter dado o passo inicial do desenvolvimento que levou a estes desdobramentos da biologia contemporânea, e que só podem ir para frente rompendo radicalmente com o reducionismo e o determinismo.

* Verônica Bercht é bióloga e jornalista.