Marx e a filosofia: A fundação do materialismo moderno
No final de seu resumo da Ciência da Lógica, de Hegel, Lênin deixou uma opinião entusiástica sobre o pensamento que foi a premissa principal do desenvolvimento do materialismo moderno: “o materialismo está ao alcance da mão”. Ele comentava duas frases, uma da Ciência da Lógica e outra da Pequena Lógica, onde o filósofo identifica ideia e natureza.
Por José Carlos Ruy
Publicado 11/08/2011 08:47
As frases são, na linguagem característica de Hegel: “A ideia que se põe como a unidade absoluta do conceito puro e de sua realidade, e assim se reúne na imediação do ser; e ao fazê-lo, como totalidade nessa forma, é natureza” (CdaL); e, de forma mais direta, “a ideia que tem ser é natureza” (PL).
“O materialismo ao alcance da mão” – esta avaliação feita por Lênin resume, de certa maneira, o julgamento crítico feito pelo marxismo sobre as qualidades e as limitações da filosofia de Hegel, e indica o caminho que foi seguido, a partir dele, para a elaboração do materialismo moderno, o materialismo dialético.
A valorização de Hegel por Lênin fazia parte de uma reação contra duas vertentes do pensamento convencional, cuja hegemonia se fortalecia e exercia inclusive influência sobre o movimento socialista da época. Um deles era o neokantismo, fundamento do moderno neopositivismo; o outro era o positivismo cientificista.
O fundamento de ambos era a rejeição da dialética e, em consequência, uma espécie de retorno ao materialismo típico do século XVIII, que foi duramente criticado por Marx e Engels. Tratava-se de um movimento que se manifestava desde meados do século XIX e que foi registrado por Engels ao valorizar a obra de Hegel no prólogo de 1888 ao livro Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã.
Ainda no tempo de Engels havia a tendência, mesmo entre os teóricos marxistas, de reduzir o materialismo histórico a um determinismo econômico cuja base era a confusão entre marxismo e ciências naturais. Para Eduard Bernstein, por exemplo, a relação entre teoria e prática era a relação entre ciência natural e sua aplicação técnica. O lugar de Hegel como pensador mais significativo foi ocupado por Haeckel e a noção hegeliana de ciência foi substituída pela noção moderna positivista de ciência natural, objetivista e livre da intervenção do sujeito.
A herança de Hegel – a dialética – que aquele marxismo de feição positivista começava a reduzir ou mesmo abandonar, é um o fundamento do materialismo moderno. Sua incorporação resultou de um longo processo crítico, iniciado por Marx e Engels na década de 1840. Eles repetiram inúmeras vezes aquilo que haviam constatado desde a juventude. Primeiro, a ideia de que a filosofia de Hegel tinha um núcleo racional, sob uma capa de misticismo; depois, apontavam a contradição entre o método de Hegel, que era dialético e revolucionário, e o conservadorismo de seu sistema filosófico; finalmente; para eles, o pensamento do filósofo alemão era um materialismo de cabeça para baixo, que precisava ser recolocado sobre os pés.
Essa crítica aparece na obra de Marx desde 1843 (em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel), sob a exigência de que a filosofia precisa levar em conta o homem real. Depois, em A Sagrada Família, de 1844, Marx e Engels atacaram o cerne do idealismo: ”as ideias não podem executar nada”; para que isso ocorra “são necessários os homens, que põem em ação uma força prática”.
Assim, num primeiro momento, o alvo da crítica era o idealismo da filosofia hegeliana. Mas isso não significava voltar ao materialismo anterior, e sim lançar as bases de uma nova visão, mais avançada. Nesse sentido, Marx dá outro passo na crítica quando redigiu as Teses sobre Feuerbach (de 1845), onde registrou de forma sintética o aspecto fundamental representado pela incorporação da dialética hegeliana ao materialismo moderno. A 1ª Tese, que opõe o velho, herdado do século XVIII, ao novo, que surgia, é clara.
“O defeito fundamental de todo o materialismo anterior, inclusive o de Feuerbach, é que só concebe as coisas, a realidade, a sensorialidade, sob a forma de objeto ou de contemplação, mas não como atividade sensorial humana, como prática, não de modo subjetivo” (grifo meu na última expressão – JCR).
O alvo da crítica marxista era o materialismo francês do século XVIII, que se tornara incapaz de responder às exigências científicas de meados do século XIX. Tratava-se de um materialismo que opunha de forma drástica matéria e ideia, sujeito e objeto. Era, escreveu Engels em 1859 (em Contribuição à crítica da economia política, de Karl Marx), uma forma metafísica de pensar que precisava ser superada.
Uma das obras mais representativas desse pensamento, escrita por Julien Offroy de La Mettrie, teve o título significativo de O homem máquina (1747) e descrevia os seres humanos como autômatos, refletindo a preponderância da mecânica entre as ciências. Mecanicismo que se manifestava principalmente no estudo da vida, dos seres humanos e da sociedade. Um exemplo anterior daquelas limitações, que apareceu quase um século antes, é a obra de Thomas Willis, Anatomia do Cérebro, de 1664.
Embora faça parte da linhagem daqueles que conceberam o pensamento como reflexo do mundo objetivo, Willis formulou uma espécie de concordata com a religião propondo a existência de uma alma racional, imaterial e eterna, dada por Deus, que se sobrepunha à alma sensitiva que o homem tem, como os animais. “A alma racional”, escreveu, “recebe as imagens e impressões apresentadas pela alma sensitiva, como que em um espelho e, segundo as concepções e noções daí derivadas, desempenha atos de raciocínio, juízo e vontade”. Sem qualquer conhecimento direto do mundo, a alma racional chegava ao entendimento, gradualmente, raciocinando a partir daquilo que era apresentado pela alma sensitiva.
Aquele era um materialismo mecânico, escreveu Engels em Ludwig Feuerbach, incapaz de “compreender o mundo como um processo, como matéria sujeita ao desenvolvimento histórico”. E que se refletia mesmo na obra de um cientista como Claude Bernard, pioneiro na medicina experimental que, ainda em 1865, descrevia o organismo como “uma máquina”.
No resumo do debate filosófico que fez no artigo Contribuição à crítica da economia política, de Karl Marx, Engels criticou o “novo materialismo naturalista” que se desenvolveu na Alemanha naquela época, marcado pelo esquecimento da dialética de Hegel e que, por isso, não se distinguia teoricamente do velho materialismo do século XVIII.
Nenhuma das formas de pensamento que prevaleciam, disse, era adequada para enfrentar os problemas colocados pela ciência. De um lado, havia a dialética hegeliana, “sob a forma abstrata, especulativa em que Hegel a deixara”. Do outro lado estava aquele “método ordinário”, “metafísico”, cuja sobrevivência só pode ser explicada “pela inércia e pela ausência de qualquer outro método simples”.
O método hegeliano não servia, “em sua forma atual”, dizia Engels, porque era idealista, sendo preciso “desenvolver uma concepção de mundo mais materialista que todas as anteriores”. Mas, mesmo assim, pensava ele, aquele era, “entre todo o material lógico existente, o único que podia ser usado”. Era um método que rompia com a visão fixista do passado segundo a qual o mundo era, essencialmente, o mesmo desde o início dos tempos. Era isto o que fazia a superioridade da filosofia hegeliana: o “formidável sentido histórico que o animava”. E, embora estivesse de “cabeça para baixo”, ele se nutria “de conteúdo real”.
Foi, reconheceu o companheiro de Marx, “a premissa teórica direta da nova concepção materialista”, e Marx era “o único que podia entregar-se ao trabalho de extrair da lógica hegeliana a medula que encerra as verdadeiras descobertas de Hegel” e “de restaurar o método hegeliano despojado de sua roupagem idealista, na simples nudez em que aparece como a única forma exata de desenvolvimento do pensamento”.
Assim, foi da superação do hegelianismo que “brotou outra corrente, a única que tem dado verdadeiros frutos, e esta corrente está associada primordialmente ao nome de Marx”, diz Engels. Era uma corrente que não punha Hegel de lado, mas “se agarrava a seu lado revolucionário, o método dialético”. Em Hegel, diz, a dialética não passa do automovimento do conceito, e esta era a inversão que era necessário eliminar.
Esta era a tarefa a que Marx se propôs. Em uma carta a Engels, de janeiro de 1858, ao reconhecer que se inspirou na Lógica de Hegel para redigir parte de O Capital, ele disse que pretendia “expor, com grande prazer, em um artigo e de forma acessível ao sentido comum do homem, o que há de racional no método que Hegel descobriu mas, ao mesmo tempo, mistificou”.
E, no posfácio à segunda edição (de 1873) de O Capital, precisou melhor a diferença entre seu pensamento e o de seu antecessor: “meu método dialético não só é fundamentalmente distinto do método de Hegel, mas é, em tudo e por tudo, a antítese dele. Para Hegel, o processo de pensamento, a que ele converte inclusive, sob o nome de ideia, em sujeito com vida própria, é o demiurgo do real e este a simples forma externa em que toma corpo. Para mim, o ideal não é, pelo contrário, senão o material traduzido e transposto para a cabeça do homem”.
Este é um ponto importante, que evidencia a diferença entre o materialismo dialético, que Marx fundou, e o velho materialismo mecanicista. Retomando aquilo que já havia sugerido na 1ª Tese sobre Feuerbach, Marx volta a enfatizar a unidade entre os aspectos objetivos e subjetivos do processo de conhecimento ao dizer que o ideal é o material traduzido e transposto para a cabeça do homem. Além disso, Marx faz uma defesa enfática de Hegel.
“O fato de que a dialética sofra, nas mãos de Hegel, uma mistificação não obsta que ele tenha sido o primeiro que soube expor de um modo amplo e consciente suas formas gerais de movimento. Acontece que a dialética aparece nele invertida, de cabeça para baixo. Não há mais que dar a volta, melhor dizendo, colocá-la de pé, e em seguida se descobre sob o envoltório místico a semente racional”.
Este aspecto não escapou a Lênin que, num texto de 1915, distinguiu, na melhor tradição dialética e marxista, entre o materialismo antigo, “tosco, simples, metafísico”, e o materialismo moderno, dialético. “A dialética como conhecimento vivo, polifacético (cujo número de facetas aumenta sempre), de inúmeros matizes no modo de abordar a realidade e de aproximar-se dela (com um sistema filosófico que, de cada matiz, se desenvolve num todo): eis aqui o conteúdo incomensuravelmente rico, em comparação com o materialismo ‘metafísico’, cuja desgraça principal é a de não saber aplicar a dialética à teoria do reflexo”.
Esta questão exige um desenvolvimento, embora sumário. Hegel havia enfrentado as contradições da filosofia em seu tempo e se preocupava particularmente com a solução dada por Kant à separação que, segundo o pensamento idealista de então, existia entre o sujeito e o objeto. Kant contornou o problema introduzindo um terceiro elemento, que definiu como fenômeno. O cérebro humano (o sujeito), em sua opinião, é incapaz de conhecer a “coisa em si” (o mundo objetivo), à qual só tem acesso através das sensações captadas pelos órgãos do sentido (o “fenômeno”); por isso o sujeito só pode conhecer aquilo que percebe através das sensações, sem ter a certeza de que elas correspondam realmente a algo que exista no mundo real.
Hegel resolveu este problema afirmando que é a ideia que realiza a unidade entre sujeito e objeto, uma vez que ambos são a manifestação do mesmo espírito, não podendo haver separação entre eles. E elimina, de forma idealista, qualquer dúvida de que o fenômeno, a percepção, corresponda a algo realmente existente. “O puro ser permanece como essência [da] certeza sensível, enquanto ela mostra em si mesma o universal como a verdade do seu objeto”, escreveu na Fenomenologia do Espírito.
Era um avanço, embora insuficiente: era esta a solução que estava de pernas para o ar. A grande contribuição de Marx foi colocar a questão sobre os pés, fundamentando assim a dialética materialista que compreende essa unidade sob o conceito da totalidade.
É na Introdução à crítica da economia política (na parte intitulada O Método da Economia Política) que Marx apresenta sua definição metodológica mais direta; ali, ele descreve como as categorias caminham entre o concreto e o abstrato, produzindo representações mentais que, ao contrário de representações caóticas de um todo, são ricas totalidades de determinações e de relações numerosas, em suas palavras.
Vale lembrar extensamente o que ele escreveu: "o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto é para o pensamento precisamente a maneira de se apropriar do concreto, de o reproduzir como concreto pensado". Marx critica os idealistas, que consideram que é a consciência que produz o conhecimento. A "consciência filosófica", escreveu, "considera que o pensamento, que concebe, constitui o homem real e, por conseguinte, o mundo só é real quando concebido". Esta é a visão idealista. A visão materialista moderna, dialética, parte da posição oposta de que, para a consciência, "o movimento das categorias surge como um ato de produção real" através de um simples impulso do exterior.
Aqui está o ponto crucial, aquele que levou Lênin a proclamar, ao final da leitura da Ciência da Lógica, que o materialismo estava a caminho. E que resolvia a desgraça do materialismo anterior, que não sabia aplicar a dialética à teoria do reflexo. E é o ponto que distingue o materialismo moderno de “todo o materialismo anterior”, como dizia Marx: o objeto do pensamento é o “concreto pensado”, elaborado na consciência a partir da atividade prática do homem, e não um mero reflexo de espelho, fotográfico, em que a imagem do mundo se fixasse no cérebro passivamente, à margem da atividade do sujeito, de seu pensamento, cultura, de sua história.
No trânsito entre o concreto e o abstrato, o pensamento “não se afasta da verdade, mas se aproxima dela”, escreveu Lênin em um comentário à Ciência da Lógica. As abstrações científicas “refletem a natureza de forma mais profunda, veraz e completa. Da percepção viva ao pensamento abstrato, e deste à prática: tal é o caminho dialético do conhecimento da verdade, do conhecimento da verdade objetiva”. As categorias lógicas, diz, são abreviaturas, resumos, da “infinita multidão” de “particularidades da existência exterior da ação”, categorias que, por sua vez, “servem aos homens na prática”. É assim que se formam os conceitos, e eles incluem a ideia de que a conexão objetiva do mundo é regida por leis.
É um problema também com o qual os fundadores da física moderna, a física quântica, andaram às voltas – a questão da correspondência entre as representações mentais e o mundo objetivo, real, que existe fora da consciência. O velho materialismo mecanicista herdado dos séculos XVII e XVIII, já não dava conta dos conhecimentos que os cientistas haviam acumulado. E havia um problema que intrigava particularmente aqueles pioneiros das primeiras décadas do século XX: dependendo da forma como era observada, a luz se apresentava como ondulatória (energia) ou corpuscular (“matéria”).
O físico dinamarquês Niels Bohr formulou, para explicar esse fenômeno, o chamado princípio da complementaridade, repetindo, de certa forma, aquilo que Hegel havia chamado de unidade dos contrários. Foi um desenvolvimento que o alemão Werner Heisenberg, outro pai da física quântica, considerou (em 1927) como uma “mudança decisiva”.
Outra aproximação, mais explícita, com este aspecto da dialética materialista, que define o objeto de pensamento como “concreto pensado”, e aponta sua necessidade como ferramenta conceitual fundamental para a ciência moderna, coube a outro fundador da física quântica, o austríaco Erwin Schrödinger. Em 1950, ele pronunciou uma série de conferências no Instituto Dublin de Estudos Superiores, sob o título de “A ciência como elemento do humanismo”, mais tarde publicadas sob o título de Ciência e humanismo.
Naquelas conferências, Schrödinger é claro a respeito da natureza dos modelos usados pelos pesquisadores: eles “são simples apoio mental, um instrumento de reflexão, uns meios provisórios a partir dos quais deduzimos, segundo os resultados dos experimentos anteriores, as expectativas lógicas dos resultados dos novos experimentos projetados”, escreveu. São usados para “ver se confirmam estas expectativas”, verificando se são “realmente razoáveis e se as representações ou os modelos de que nos valemos são adequados.”
E explica: usou a palavra adequados em lugar de verdadeiros porque, “para que uma descrição seja capaz de ser verdadeira, tem que ser capaz de admitir uma comparação direta com os fatos reais. E isso não costuma acontecer dessa forma em nossos modelos. Mas recorremos a eles, como digo, para deduzir deles características observáveis. São estas as que constituem a forma permanente de organização do objeto material, e geralmente nada tem que ver com aquelas ‘pequenas partículas de material que constituem o objeto’”.
O problema com os quais estes cientistas andaram às voltas é aquele que constitui a viga mestra do materialismo moderno e que durante décadas foi “vítima” da visão reducionista do marxismo que deixava a dialética de lado – reduzida a uma empobrecida relação de “leis” que figuravam em manuais –, dentro de uma mal compreendida “teoria do reflexo”.
Este é o aspecto final que quero tratar aqui: é preciso superar a visão do reflexo mecânico, como uma imagem no espelho, e restaurar a maneira como Marx e Lênin o compreenderam e que constitui o cerne do materialismo moderno. As formas lógicas, diz Lênin, são “o reflexo do mundo objetivo”, como Hegel havia demonstrado de forma idealista.
Mas não é um reflexo simples, fotográfico; ao contrário, ele culmina “o processo de uma série de abstrações, a formação e o desenvolvimento de conceitos, leis”, que “abarcam condicionalmente, aproximativamente, o caráter universal, regido por leis, da natureza em eterno desenvolvimento e movimento”, pois o homem “não pode captar e refletir a natureza como um todo em sua integridade, sua ‘totalidade imediata’: só pode acercar-se eternamente a ela, criando abstrações, conceitos, leis, uma imagem científica do mundo”.
Esse processo complexo e multifacético resulta da atividade prática do homem, que leva “sua consciência à repetição das diferentes figuras lógicas, milhares de milhões de vezes, a fim de que estas figuras possam obter o significado de axiomas”. O comentário de Lênin é significativo: “Notável: Hegel chega á ‘ideia’ como a coincidência entre o conceito e o objeto, como a verdade, através da atividade prática do homem, dirigida a um fim. Um enfoque muito próximo da opinião de que com sua prática o homem demonstra a correção objetiva de suas ideias, conceitos, conhecimento, ciência”.
É uma interação complexa que envolve o homem e seu cérebro, onde o mundo objetivo é reproduzido na forma de construtos cerebrais, como dizia Marx, filtrados pelo conjunto de categorias em que o conhecimento humano se traduz e se desenvolve, ao longo do tempo, com aproximações sucessivas mas infinitas com o mundo real, objetivo. Uma tese que Camões já havia traduzido de forma poética, genialmente, uns duzentos e cinquenta anos antes de Hegel, quando registrou que, acidente do sujeito, a alma de sua amada conformou-se à sua, e “esta no pensamento como ideia”.
O soneto de Camões (1524-1580)
Transforma-se o amador na cousa amada
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minh’alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois comigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia,
Que, como um acidente em seu sujeito,
Asi co a alma minha se conforma,
Está no pensamento como ideia:
[e] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.