Nildes Alencar, professora para transformar o ser humano
Nildes deixou Lavras da Mangabeira na estação e descobriu um outro mundo possível na sala de aula. O Vermelho/CE publica a íntegra da entrevista com a professora veiculada no caderno Páginas Azuis, do Jornal O Povo desta segunda-feira (25/07).
Publicado 25/07/2011 09:07 | Editado 04/03/2020 16:31
Primavera era uma palavra encantada, na infância sertaneja de Nildes Alencar Lima, 77. Assim como Fortaleza, a Capital de carnavais e bangalôs, e professora, que significava bem dizer uma missão. E são essas três palavras – primavera, Fortaleza e professora – que ditam a história dessa educadora de voz rouca e olhos verdes.
Porque a alma é de uma teimosa esperança, Nildes tem suas primaveras em agostos. Tudo recomeçou com uma despedida. Depois da seca de 32, o pai vendeu as terras e a aliança. A família Alencar deixou Lavras da Mangabeira na estação, Nildes trouxe o essencial no seu baú: “Momentos fortes, bons. E, nas perdas, muitos ganhos depois”.
E tudo começa, uma vez mais, com o próximo encontro, ensina a incansável educadora. Primeiro, o encontro com a Capital e suas possibilidades: a luz elétrica, a guerra, a caristia, as luaradas, os romances e outras literaturas. Depois, o encontro com a sala de aula e sua grandeza: a lida com os meninos danados, o aprendizado com as crianças especiais, o crescimento individual em par com a transformação do coletivo.
Nesta entrevista, Nildes Alencar retoma passeios por uma Fortaleza descalça e encantadora. E retoma, igualmente, utopias que lhe guiam por mais de quatro décadas na educação. “Saber que o homem é capaz de se transformar. Essa utopia, não pode nos faltar nunca”, sublinha, entre outros ensinamentos.
O POVO – Vocês migraram de Lavras da Mangabeira. A senhora se lembra desse caminho de vinda, no trem?
Nildes de Alencar Lima – Muito. Foi um período difícil, sair das raízes históricas. Meu pai, tangido pelas secas… Nasci em 1934 e, em 1939, estávamos no trem, atravessando Senador Pompeu, Iguatu, Quixadá, Quixeramobim, Redenção, até Fortaleza. Foram dois dias. O trem era o Maria Fumaça. Meu pai e uma das irmãs mais velhas vieram antes, arranjar emprego. Quando eles se empregaram, a primeira preocupação foi alugar uma casinha. Não tínhamos móveis. Vendemos tudo. Viajamos só com os baús e as malas.
O que a senhora trazia no seu baú?
Eu tinha seis anos, mas trazia, dentro daqueles instrumentos de memórias, uma história de uma família aflita. Minha mãe grávida, desesperada, porque ficou uma lata, na estação, com o enxovalzinho do meu irmão. Foi a primeira experiência que tive de ver todos juntos no sofrimento. Um sofrimento partilhado.
Nas descobertas dentro do trem, foi também momento de recomeço…
A história de cada um foi se construindo a partir dessa arrancada de Lavras para Fortaleza. O nome era encantador… Quando a gente é criança, tem nomes que encantam. Primavera é uma palavra de encantamento, Fortaleza trazia uma conotação de beleza. Não sei se porque uma prima veio para Fortaleza e levou uns enfeites de Carnaval e, na minha imagem, ficou uma coisa encantadora… Chegamos em Fortaleza, encontramos nosso pai e minha irmã. Tinham alugado uma casinha, no Joaquim Távora, rua da Bomba. Fica por trás da Escola Visconde do Rio Branco. Rua da Bomba porque tinha uma bomba (d´água). Nós nos servíamos dessa bomba para manutenção, banho, alimento. Moramos um mês. Não tinha calçamento, era terra. No Interior, cada um tem um estilo de casa. E aquele estilo de casas bem iguaizinhas era uma novidade grande. A experiência de cidade foi extraordinária. O bonde, que vi pela primeira vez na vida, pensava que era um pedaço de trem solto, pelas ruas. À noite, a cidade iluminada… Aquela bomba, saindo água quando a gente puxava, levezinha…
Fortaleza era encantadora mesmo…
Muito! Fortaleza era o Joaquim Távora, um bairro bonito, cheio de bangalozinhos. E quando nos transportamos do Joaquim Távora para a (rua) Rodrigues Júnior, atravessamos a (avenida) Dom Manuel, que também tinha uns chalezinhos iguais, lindos. Passamos um ano. Primeira experiência de luz elétrica, que não tínhamos; era lamparina, ainda. Foi a maior novidade do mundo, acender uma luz, que era no bocalzinho. Não tinha interruptor, a gente pegava na própria lâmpada e acendia.
Era a década de 1950, já?
Não, 1940. Fortaleza bem pequena, linda! Meu pai fazia uns passeiozinhos conosco. Tinha uma “feira de amostras”, no Passeio Público, na Praça José de Alencar, anual. Fortaleza toda só vinha até a rua Silva Paulet, para a Aldeota. Na Praia de Iracema, não existiam casas, apenas casas de pescadores, de palha, à beira-mar. Calçamento, nem pensar. Vínhamos pela Rodrigues Júnior, descíamos a ladeira da Prainha a pé, eram três quarteirões pra chegar na Praia de Iracema. E ver a ponte velha, a Ponte Metálica, o Ramon (um restaurante no meio do areal). Vinha toda a família, para fazer a luarada. Muitas jangadas, casais de namorados. E vivemos a experiência da dificuldade de um pai, com dez filhos, pra manter essa família na Cidade.
E sua formação, em Fortaleza, passou pela escola pública e pelas leituras que seu pai trazia…
Passou. Convivi muito com esses romances. Minhas irmãs traziam dos empregos a revista Seleções. Com a vizinhança, fui tendo acesso à cultura e à literatura infantil. Meu pai, embora só tivesse o segundo ano primário, era um homem letrado. Entrava na nossa casa, diariamente, o jornal Unitário, O Nordeste e O Correio do Ceará (do vizinho, que trabalhava nos Correios). Quando minha mãe fez minha matrícula, era escola pública. A sociedade não estava tão separada em classes. Na escola pública, estávamos todos: meninas de lavadeiras, filhos de pescadores, de costureiras, as ditas de pais mais intelectualizados. Nossas mães ou irmãs mais velhas ensinavam o ABC em casa. Quando a gente ia pra escola (a obrigatoriedade era aos sete anos), já sabia o alfabeto, o maiúsculo e o minúsculo, as vogais. Já desenhava cada letra. Tenho a sensação de minha mãe, segurando a minha mão, fazendo o traçado da letra B.
A letra B era a mais difícil?
Era, porque a “barriga” do B fazia aquela voltinha… Minha mãe segurava minha mão e fazia o movimento comigo. Dei continuidade: quando percebia que uma criança não tinha facilidade no controle, ajudava, segurando a mão do jeito que minha mãe fazia comigo.
Com a descoberta da cidade, a senhora foi descobrindo a leitura. Naturalmente, a profissão de professora foi aparecendo? Ou a educação da época era de as meninas serem professoras?
Nem sempre. Havia aquela vontade das famílias de que as filhas fossem professoras. Professora era um status. Mas não havia essa intencionalidade. Na minha casa, pensava muito em ser funcionário público… Minhas irmãs eram professoras leigas. Não existia concurso, a professora ganhava uma cadeira. Alguém conseguia essa cadeira por intermédio de algum prestígio. Eu via minha irmã passar pra escola, cuidava dos cadernos dos meninos, fazia aquelas capas bonitas… E, quando ela faltava aula, eu a substituía.
A senhora tinha quantos anos?
14, 15 anos. Na infância, brincávamos de professora. Achava “professora” uma palavra bonita, forte. Eu me diplomei. Tive decepções porque, quando fiz vestibular para o Curso Normal, não passei. Minha irmã se prontificou a pagar meu colégio, fiz vestibular para o Colégio Lourenço Filho. Estudei o primeiro semestre, quando aconteceu uma vaga, novamente, no Instituto de Educação (Escola Normal). Minha prima era secretária e perguntou se eu queria voltar. Foi muito difícil, meu retorno. Achavam que tinha sido privilégio. Na verdade, voltei na vaga de uma aluna que foi pra São Paulo. Depois, me integrei. Sempre tive um trabalho de Ação Católica, de JEC (Juventude Estudantil Católica), preocupada com o problema da nossa realidade, de meninas pobres, as necessidades de estudo.
Como foi sua atuação, na época da JEC?
Mais no sentido de preocupação com o meio estudantil. As escolas de freira achavam que as alunas da Escola Normal eram mais soltas porque era escola pública. E se acontecesse de uma engravidar, achar porque eram moças pobres. Embora a escola pública estivesse muito além, do ponto de vista de aprendizagem, de formação religiosa. Essa formação, a gente adquiria com o meio. Foi uma das maiores experiências da minha vida: ter convivido no meio estudantil pobre, mas, ao mesmo tempo, tinha a variação de níveis sociais. Isso enriquecia muito a gente. E tínhamos visão da responsabilidade e do compromisso que nos colocavam: que éramos meninas pobres e estávamos ocupando o lugar de milhares que não tinham podido chegar lá. Isso nos deu a visão de sociedade brasileira, de compromisso com nosso povo.
O que mais lhe marcou (e que a senhora traz até hoje), nessa sua formação?
O compromisso com a sociedade, com o outro. E acreditar no ser humano. Eu me diplomei nessa visão. E na visão de achar que ia ser professora do Interior. Foi uma ilusão, porque não tinha uma cadeira pra ensinar. Tive que partir para onde tivesse um lugar. Uma amiga me indicou o Colégio Christus. Eu pensava que ia ser professora de escola pública, de menina pobre como eu fui. Mas fui para uma escola particular, de meninos de classe média. (Era o final da década de 1950).
Qual a faixa etária das crianças? E eram muitas?
Seis anos, eram quase 30 crianças. Chegava na quarta-feira, eu começava a perder a voz. Tenho a “síndrome do domingo à tarde”: me dava aquele medo de enfrentar as crianças, de não ter domínio sobre a turma. Os meninos pulavam nas carteiras, jogavam papel, se embolavam pelo chão… Eu ia atendendo de um por um, não tinha voz de comando para o coletivo.
A senhora pensou em desistir de ser professora?
Pensei. Cheguei, uma das vezes, arrasada, dizendo que estava decepcionada. Meu pai disse: “Minha filha, a gente trabalha para viver. Se você está sentindo que não tem condição, deixe”. Uma das minhas irmãs procurou que eu devia fazer concurso para os Correios e Telégrafos, que a profissão não dava condições para se viver. Bati com o pé e disse: “Não, toda minha vida sonhei em ser professora, me diplomei pra ser professora, não foi pra ter o diploma. Não vou desistir”.
O que fez a senhora continuar foi o sonho…
Foi o sonho, com certeza. Agora, entre a vida e o sonho, tem as coisas que vão acontecendo. Houve a necessidade de a escola precisar daquela sala que eu estava. Fiquei numa sala bem pequena, as carteiras duplas, uma emendada na outra, que não tinha a menor possibilidade dos meninos se levantar (risos). Estava ótimo porque os meninos não corriam mais na sala. Este foi um fato. O outro, já estávamos em novembro, e eu insistindo em tomar a lição individual. Era alfabetização. Quando uma mãe escreveu no caderninho do filho: “Professora, obrigada, meu filho está lendo”. Abriu meus horizontes: “Puxa, eu sou capaz!”.
A senhora conseguiu esse domínio da turma como?
Quando comecei a dosar minha amorosidade. Inovamos, na escola, a experiência de planejar juntos. Isso foi dando segurança. Como eu já tinha passado dificuldades, foram conceituando que era a pessoa capaz de trabalhar menino danado. E fui aprendendo com as crianças, crescendo com eles. Ninguém sabia como dar uma boa aula de leitura, nos faltou um programa. Nem o Estado tinha um… Estávamos caminhando para a década de 60. A Secretaria estava se organizando para montar o primeiro currículo do Estado. E foram compondo o que se definiu como O Livro da Professora. Pediram que eu fosse lá, pra dizer onde é que tinha pesquisado aquele tipo de leitura. Eu estava começando a criar uma situação: botar dois meninos para fazer um trabalho, tudo empírico.
Não teve problemas?
Nunca houve nenhum comentário. Aplicamos o livro com muito sucesso. Ainda tenho como uma relíquia, guardado. Nisso, surge, 1964 ainda, um casal com uma criança especial. Ela foi rejeitada por todas as escolas. E eu tinha tido a experiência, no Christus, de uma menina especial. Chamei a equipe e disse que iríamos receber uma criança especial e que iríamos dar toda a atenção. E não íamos rejeitar crianças pelo fato delas não terem a mesma condição que as outras. Começamos a ter a compreensão de que uma criança pode aprender e conviver, desde que a gente respeite sua especialidade, tenha paciência.
A escola, hoje, tem consciência do que pode fazer?
Mais as públicas. A escola privada cuida de dizer que, cognitivamente, eles tiraram os melhores lugares. Mas é a escola pública que vai manter a tradição da cultura brasileira. É na escola que as coisas mudam. Fui favorecida com uma experiência com um grupo de assessoria. Não essa assessoria que cobra um absurdo das prefeituras e vai uma vez por mês, reúne o pessoal, fala bonito e deixa apostilas. Mas uma assessoria que fica, faz a pesquisa lá, planeja junto.
Essa é a sua ocupação hoje…
Em Jucás. A transformação que estamos vendo acontecer… Provoco e chamo as universidades para irem fazer pesquisa lá. O que está acontecendo em Jucás: as escolas estão crescendo, sob todos os aspectos. A assessoria é sistemática, vai semanalmente, passa dois dias, trabalhando a equipe técnica da Secretaria (de Educação), os diretores. Ao fazermos a descentralização, a escola passou a administrar seu dinheiro. Passaram a ter autonomia de mudar a porta, botar ventilador na classe, mudar as carteiras.
São mais de 40 anos de magistério, desde as crianças mais danadas àquelas mais especiais. E a senhora destaca que é na educação que tudo se transforma e isso reverbera na sociedade. Qual a utopia da educadora, hoje?
(pausa) Será sempre a mesma: o ser humano. Saber que o homem é capaz de se transformar. A outra (utopia) é que educação é um direito de todos. A criança carente tem condições, aprende. Desde que seja trabalhada, e respeitada, e amada. Dar valor ao magistério é organizar escola por escola. Não acredito em mudança de outro tipo. Chegará o dia em que a sociedade vai querer homens corretos, cidadãos. E não vamos ter. Porque vão ser médicos, advogados e vão dizer: “Não vou pro Interior se não me pagarem R$ 5 mil”. Qual o compromisso que têm com o pobre, com a sociedade? O compromisso é com o seu carro, seu belo apartamento, suas férias fora… Claro que não é justo que, para ter bom salário, eu tenha três empregos. E não há nada melhor do que chegar no fim da profissão e dizer: “Era isso que eu queria, foi isso que sonhei”. Então, a utopia, creio nessas duas. Nossos meninos são ricos de experiência, de vida. Quem vai destruí-los é a sociedade, que vai rejeitá-los o mais que puder. Essa utopia, acredito nela. E estou vendo que ela é possível. Não é só teoria, não.
Fonte: O Povo