Marco Albertim: O segredo do sobrado
Com as mãos soltas e um mistério, subiu os degraus de madeira do sobrado. Segurou no corrimão para recuperar a familiaridade com o lugar. Deixara a bagagem na hospedaria. Não convinha mostrar-se de mala cheia, após tantos anos. Se fosse julgado sem juízo, insano, se ressarciria no conforto de rever Noêmia.
Por Marco Albertim
Publicado 02/06/2011 16:34
Foi atendido por dona Alzira. Noutro tempo a velha servira-o com petiscos, chás. Tinha o pulmão achacado, e estava ali, viva. Puxou-o com a mão, sentou-o na poltrona maior da sala; sentou-se de seu lado. O lugar mais próximo dele, noutro tempo, fora de Noêmia.
– Zaqueu! O que o traz de volta?
– Uma dor…
– Não se sente bem?
– Tenho uma dor desde que fui embora.
– E não se tratou!?
– Não achei remédio adequado. Voltei para fazer um reparo na consciência, que é onde sinto a dor.
– Mas não tem cefaléia…?
– A cabeça sente dor de saudade. Não preciso de chás.
– Não… Precisa de biscoitos! – fingiu-se.
Chamou a empregada. Um café foi servido com biscoitos de jerimum.
Ele olhou as paredes. Viu o retrato da velha com o marido, no caixilho verde, de gesso, despregado nos cantos. A moldura envelhecera tanto quanto o retrato. O casal não sorria, embora com os rostos juntos; não sorriam para manter a decência. Zaqueu fitou o velho espreitando-o da moldura, inculpando-o de insânia.
A velha deu notícias do padre, dos jejuns, da sina adúltera da vizinha, do diabo que ela nunca vira… E não falou de Noêmia; não falou nem deu sinal de perdas ou danos. Sentiu-se, ele, meio-confortado; acudindo-se numa vaga noção de epopéia.
– Quando volta? – Dera cabo de três biscoitos, ele. Ela já queria saber quando teria que voltar.
– Não volto.
– E fica… com que propósito?
– Não tenho propósitos… ainda. Mas tenho esperanças.
– Ah…
– Esperanças de ter propósitos.
– O que fez durante todos estes anos?
– Não fiz. Por isso estou aqui.
– Meu marido sempre o achou misterioso, Zaqueu. Levitou por cinco anos? É isso que quer dizer?
– Pus fim à inércia dos sentidos. Quero reconciliar-me com o que fui há cinco anos. Com o que fui e com quem me fez ser. Pena que seu marido esteja enterrado.
– Bem posto, adequadamente posto no lugar onde se recomendara.
– Não chorou a morte de seu marido!?- Zaqueu supunha que o casal firmara um pacto antilutuoso.
– É uma pergunta imprópria para quem esteve cinco anos ausente. Meu marido não o perdoaria se a pergunta fosse feita a ele. Mas digo que sinto falta apenas da autoridade dele dentro desta casa. – Queria exumar o falecido com um orgulho desusado. – Ele não falava – defendeu-se Zaqueu.
– Seu silêncio impunha autoridade.
– Não há autoridade em sua casa!? – provocou-a.
– Não está ouvindo o silêncio? É a autoridade de meu marido. Ele está em cada canto desta sala.
– E a senhora?
– Distraio-me com seu fantasma. Durmo segura porque sei que ele faz a ronda.
Zaqueu olhou seguidas vezes para o retrato dos dois, fixando-se nos olhos, nos bigodes cheios do velho.
– Você não tira os olhos de meu marido. Está sentindo a autoridade dele. Venha… – Guiou-o pelo braço.
Quando ele se levantou, seu rosto aproximou-se dela; sentiu, nauseado, um cheiro forte de pó de arroz. Os banhos não eram frequentes na rotina da velha; banhava-se para ir ao médico, à igreja. Quando acordava, empoava o rosto; pó sobre pó. Sentada para o café, punha-se ao lado da cadeira onde o marido se sentara, e da xícara que fora dele.
Tinha uma crosta de pó de arroz sob os olhos.
– Venha comigo para o quarto onde meu marido não permitia a entrada de estranhos. Só os seus camaradas de armas.
– De armas!…
– Sim. Ele nunca puxou um gatilho, mas tinha armas guardadas para usar quando estourasse a revolução.
– Que revolução, dona Alzira?
– A revolução do Sigma.
Ela abriu o quarto com a chave tirada de trás do caixilho na parede. Os anos afrouxaram o zelo com que mantinha os segredos. Agora os mostrava como o despojo de guerra que o marido legara. Zaqueu fora comensal do sobrado, aliciaria-o como cultor das relíquias.
Numa estante velha, livros, edições antigas de autores parnasianos. Um quadro, reprodução de Anita Malfatti ao lado da estante. Livro de poesias de Menotti Del Pichia. O Estrangeiro, de Plínio Salgado. Escritos de Salgado e de Gustavo Barroso, na moldura, sob vidros, na parede. Numa escrivaninha, num porta-retratos, a carteirinha de filiação do velho ao Partido Republicano.
– Aqui era o seu laboratório – disse ela.
– Puxa. Devia tê-lo deixado aqui mesmo, dona Alzina. Mesmo depois de morto.
– Quis embalsamá-lo, mas não me deixaram.
– De que modo morreu seu marido?
– Dormindo, recitando A Carta aos Moços Brasileiros, de Gustavo Barroso. Tinha tanta fé que morreu apoplético. Foi um fim patriótico!
A morrinha do mofo misturou-se aos pós do rosto da velha. Teria se orgulhado se Zaqueu acreditasse que fora parida de uma daquelas folhas.
Voltaram para a sala. Ela pôs a chave no mesmo lugar. Seguiram, com ela na frente, para a sala de jantar, pelo corredor escuro.
Ali, com um lado da porta aberto, ele beijara Noêmia.
O sobrado tinha fama de mal-assombrado. Um fantasma nunca fora visto. O casal de moradores, com velas acesas, rendera homenagens aos espectros.
Duas cadeiras de balanço, com fios de corda entrançados, juntas; os fios estavam cinzentos, pretos. Zaqueu e Noêmia, ali, prelibaram o casamento.
O lustre envelhecera, reduzira-se de importância na hierarquia dos móveis.
Zaqueu suspeitou que os objetos antigos não o acompanhariam no esforço de recuperar os anos. O quadro com a donzela loura, na varanda, em frente ao amante no cavalo, não o acendeu no instinto do sexo. Já se intrigara por ser a varanda tão baixa e o cavaleiro não ter a coragem de pular o gradil.
Sentaram-se nas cadeiras. A velha na posição antiga, de quando prosara com o marido.
Zaqueu descobriu, ao lado da porta do quarto da velha, o retrato de Noêmia; menor que sua mão aberta. O rosto redondo, com uma trança no cabelo trazida para o ombro. A moldura, antiga, apropriada a rostos velhos. Noêmia! Tornaram-na peça de museu. Não a queriam lembrada.
Ele levantou-se, mirou o retrato.
– Onde está Noêmia!?
– Não está vendo? O retrato está na sua frente.
– Parece o retrato de uma laje de túmulo!
– Zaqueu, você some cinco anos e reaparece com histórias de cemitério. Meu marido tinha razão. Não é um subversivo homicida como ele suspeitava, mas tem vocação para necrófilo. A casa toda cheirava a clorofórmio.
– Noêmia também está morta!? – insistiu ele.
– Noêmia é muito esperta para se deixar enganar pela morte. Mas jaz sossegada… ou vive a seu modo a morte que não nos pediu! – Fingiu serenar-se.
– Não entendo…
– Como não entende!? Passou cinco anos sem dar notícias. Se não aparecesse, ninguém daria fé de seus passos. Estaria morto, talvez, e mesmo assim o teríamos como vivo.
– Em algum momento pensou que eu estivesse morto!? Noêmia pensou que eu estivesse morto?
– Morto ou vivo, não sabíamos de nada. Quando pensávamos em você, era como se você estivesse de novo nesta mesa, experimentando a canja de galinha de Josefina.
Ele quisera confessar-se ao psiquiatra para contabilizar as perdas. Mas seria covarde dividir culpas, remorsos; também seria covarde se deixasse o juízo vadio. Tivera medo de recolher-se ao manicômio, figurando delitos que não cometera. Compungira-se olhando para o relógio, seguindo o fim progressivo dos sentidos.
Meio-dia. A empregada pôs a mesa. Três pratos, três pares de talheres, três guardanapos de pano. Uma sopeira, no meio da mesa, deu conta da canja; era o antepasto. Depois, arroz branco, cenoura cozida e bifes no molho. Ao lado da sopeira, fatias de pão. Para enfeitar, uma garrafa média com pimenta. Dona Alzira não comia pimenta, mas queria a garrafa às refeições para preservar os costumes do marido.
– Está esperando alguém?
– Não espero ninguém para o almoço. O meu marido era um cumpridor de horários.
– O prato sobrando, para quem é?
– Está gostando da sopa, Zaqueu? Pode repetir se quiser. – Zaqueu não dera sinais de veneração ao santuário do falecido. A velha evadiu-se na resposta. – Obrigado. A senhora não fez a oração antes de comer – incitou-a. – Eu fiz. Você é quem não notou. Não chamo incréus para rezar comigo.
– Tenho minha crença, dona Alzira.
– Sua crença é não crer. Não esqueci.
– Continua com a língua precisa.
– Espólio do meu marido.
– Tudo nesta casa é espólio de seu marido…
– Tenho alguma coisa de meu pai… Diogo. Eu e meu marido nos associamos quando nos casamos. Meu pai não fez restrição, dizia que meu marido tinha linhagem com os primeiros povoadores de Goyaninha.
– O que fez do engenho?
– Vendido. Hoje pertence à usina. Só meu marido podia administrar sozinho. Depois da sobremesa, a mesa foi recolhida.
Voltaram às cadeiras. Ela ignorando o retrato da filha.
O relógio bateu duas vezes. No silêncio, a sala fundiu-se ao vácuo.
A empregada estava ali desde o nascimento de Noêmia, dera-lhe banhos e mingaus. Conhecia os segredos do sobrado; no banheiro, pensando em cantar, soltava uma lamúria imprecisa.
Dona Alzira e Zaqueu suspeitavam da ruína; ela, de si própria, da filha desterrada da memória; ele, de si, agora absorvendo aos sentidos a derrocada do lugar.
A velha dormiu. Zaqueu levantou-se para olhar de perto o retrato de Noêmia; olhou demoradamente. A negra Josefina assistindo muda. Os dois se falando sem dizer uma palavra.
– Ainda você, Zaqueu? – a velha acordou – Regale-se com o retrato, meu rapaz. Godofredo meu marido está mais presente nesta casa do que Noêmia.
Foi para o quarto, rendida ao sono da tarde.
Ele foi para o terraço dos fundos, um piso inferior ao da sala. Debruçou-se na varanda, já conhecida de sua memória. Olhou para a igreja, em cujo oitão, à noite, trouxera Noêmia ao fim de um baile. Os dois pararam à sombra da parede alta. Na rua deserta, pios de morcegos. Abraçara-a com força. Ela pedira que nunca mais afrouxasse os braços de seu corpo. – Tenho medo – disse ele. – Isto aqui é bom demais para que possa se manter. Você ainda não me conhece bem, não sabe direito quem eu sou. E eu tenho que voltar. De onde vim, ninguém sabe onde estou, nem se estou vivo.
– Quero ir com você.
– Não posso. Tenho que ir só. Não teria lugar para você.
– Onde você estiver, tem um lugar para mim.
– Nos meus sentimentos, Noêmia. Não na vida real.
– Na vida real nós nos amamos.
Ela mesma puxara-o pela mão. Subiram a escadaria de cimento dos fundos do sobrado. Foderam-se pela primeira vez, deitados no chão duro do terraço.
– Agora você não vai mais me deixar – disse ela.
– Não vou lhe deixar nunca. Vamos apenas nos separar. Vai ter que esperar por mim. Foram acordados por Josefina, que viera dar xerém às rolinhas.
Noêmia correu para o quarto, Zaqueu foi para casa.
No domingo, chamou-o para o almoço. O pai consentira a presença dele na mesa, para julgar suas intenções.
– Sua família, Zaqueu, por que não dá notícias da família? – inquiriu-o.
– Ninguém me pergunta. Estão bem, todos bem.
– Seu pai, o que faz na vida?
– É aposentado, como o senhor.
– Aposentou-se por conta própria? – Queria saber, Godofredo, se o pai de Zaqueu se aposentara por razões de intriga com o governo.
– Por idade. Já trabalhou muito, o meu pai. Agora está descansando.
– Por que você não volta para lhe dar uma boa notícia? Que pretende se casar, por exemplo…
– Papai, o senhor pode tirar a fome de Zaqueu com tantas perguntas.
– Não quero interromper o sossego de meu pai. Quando voltar para lá, volto de vez.
– Você fala com mistérios. Pode ser esperteza. Saiba com quem vai ser esperto, Zaqueu. Para se dar bem na vida… – Godofredo fisgava-se de suspeitas.
Dona Alzira e a filha distraíam-se com revistas de modelos femininas, enquanto Godofredo, ao lado do rádio, ouvia notícias da Voz do Brasil. Ele colecionava na memória, decretos militares.
Os dois se cumprimentavam, nunca tiveram conversa amigável. Zaqueu, nos enredos de Godofredo, era um subversivo com identidade forjada. Entrara em sua casa com a ajuda da filha, como um réptil. O velho não escondia os urdumes, queria que fossem ouvidos para pôr à prova suas idéias.
Morrera… E o diabo dera ordens para ninguém revelar o paradeiro da filha. Josefina, na cozinha, lavava os pratos. Ela e Zaqueu olharam-se longamente. A preta tinha os olhos mortos, suplicantes.
O relógio bateu quatro vezes.
Josefina não tinha parentes, e tudo faria para pentear outra vez os cabelos de Noêmia. Seguiu para o seu quarto, ao lado da cozinha. Zaqueu foi atrás. Ela abriu a porta de um móvel, abriu outra; era o guarda-roupa de Noêmia. As roupas dela, penduradas nos cabides. Zaqueu sentiu cheiros conhecidos de seu nariz.
Mas…
– Chegou disposto a fuçar as entranhas da minha casa! Sequer casou com minha filha e se acha no direito de remexer nas suas intimidades. Quem é você, Zaqueu? Meu marido sempre desconfiou de seus propósitos. Se sair desta casa sem me dizer quem é, digo a todo mundo que minha filha foi enganada por um salteador de estradas!
Dona Alzira era um fantasma.
Voltaram para a sala de visitas, sob o olhar de Godofredo no retrato. Josefina permaneceu sentada num banco, encostada à parede, chorando.
– A senhora insiste em esconder Noêmia. Saiba que as brotoejas de seu rosto ocultam mais mistérios do que meus propósitos!
– Quanta falta me faz Godofredo… – Queria vingar-se da sorte.
– Seu marido não sabia esconder suas suspeitas. A senhora fecha-se e condena a pobre Josefina a viver o resto da vida sem poder falar!
– O que você quer desta casa?
– Nada! Noêmia não pertence mais a esta casa. Até o seu quarto está vazio!
– Isto mesmo, rapaz. Noêmia foi abortada desta casa, assim como a gravidez que você deixou com ela! Godofredo não permitiu que ela fosse mãe de uma criança cujo pai fugiu como um desertor, fugiu sem dizer para onde foi, nem de onde veio.
– Mas… e suas roupas… estão todas no quarto de Josefina!?
– Depois do aborto, ela saiu de casa. Resolvemos dar fim a tudo que lembrasse Noêmia, até suas roupas. Entregamos a Josefina o guarda-roupa com tudo, mas a negra se recusou a entregar aos pobres. Trancou tudo em seu quarto. Não nos incomodamos, porque nunca entramos no quarto dela.
– E o retrato na parede?
– Uma vaga lembrança… a única resposta a quem nos pergunta por ela.
Josefina apareceu. Chamou dona Alzira para um canto, chorando ainda. Depois voltou para a cozinha.
A velha voltou a falar.
– Terá sua Noêmia de volta, Zaqueu. Talvez não seja mais a que você conheceu. Ela ainda vem aqui… quando está precisando de dinheiro.
Noêmia surgiu no corredor, vestida de azul; um colar de segunda, enfeitando o pescoço; e pulseiras. Batom vermelho, ruge e sobrancelhas pintadas.
Zaqueu perdeu os sentidos. Foi acordado pelo relógio soando longe.
Josefina trouxera um copo com água. Chorando, a negra lhe disse:
– Noême não tem culpa, seu Zaqueu! Perdoe ela!