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Aniversário

Em um breve conto, Nilton Bobato contrasta a cordialidade daqueles considerados escória da sociedade com a selvageria dos que supostamente são a fina flor.

- Reprodução

Por Nilton Bobato*

— Desce daí velho!

O primeiro grito veio lá do fundo do auditório. Era uma voz solitária que repetiu o mesmo brado. Alguém sentado na frente pediu educação, mas foi interrompido por um novo berro.

— Saí daí velho!

Jamais esquecerei o rosto do dono da primeira voz. Era um maldito aluno, metido a besta, que me acompanhou todos os anos, desde o ensino médio até a faculdade. Esse não me surpreenderia. O problema foi suportar a segunda voz. Um dos melhores alunos que tive no ensino médio e o reencontrava naquele momento. Deu-me uma vontade desesperada de chorar.

Logo em seguida veio a terceira voz. Mais triste ainda, era da Aninha. Você se lembra dela.

— Vai se fudê velho, temo mais coisa que fazê.

Seguiu-se um coro, alucinado, louco coro. Meus 80 anos se passaram pela minha cabeça em segundos. O que estava fazendo ali? Todos os meus anos de dedicação a educação. Que merda, me prometeram uma festa, que reuniriam o máximo de ex-alunos que conseguissem, para comemorar meu aniversário. Disseram que era uma homenagem. Não sei por que aceitei aquilo, estava tanto tempo longe de tudo.

Que droga, subi ao palco para falar, tentei dizer alguma coisa, não consegui. Eu tremia. Aí um idiota me jogou um papel, um aviãozinho, como aqueles que jogavam nos tempos de ensino médio. Aquilo me tirou do sério. Tentei fazer um sermão, daqueles que fazia em sala de aula, mas comecei a gaguejar, uns começaram a rir. Já não consigo mais. Aí virou aquele massacre, uma balbúrdia ensurdecedora.

Tentei correr, quase caí do palco. Uma senhora quis me ajudar, fui desaforado com ela. Levantei-me, deixei aquela oficina de loucos sem caráter. Saí tropeçando, não consigo mais correr, essas malditas dores. Fui chorar na esquina. Vieram atrás de mim, não aceitei papo. Não sou de ferro, sou humano.

Sentei no primeiro boteco que encontrei, pedi uma cachaça, ah! uma daquelas destiladas que adorava beber, fazer uma caipirinha com você. Desta vez foi pura, há muito não pedia uma pura.
O cara do boteco tentou não me atender, dizia que era muito perigoso um homem da minha idade beber. Quase mandei ele à merda, mas um outro cara, que estava sentado numa mesa no canto, me socorreu.

— Deixe o velho beber, cara. Ele tá pedindo de graça? Não tá, então sirva ele, pô.
Agradeci a intervenção e bebi. Uma, duas, três doses. Senti-me revigorado. O dono do boteco não entendeu nada, ficou me olhando, queria perguntar por que eu estava bebendo, mas não perguntou.

Tantos anos de educação. Será que não ensinei nada para ninguém? Será que não serviu para nada? E se ainda fosse algo que nos tivesse dado conforto, mas nada. Veja só, sobrevivemos com o nosso salário. Hoje recebo esta esmola que chamam de aposentadoria.

Puxa vida, até parte do meu salário eu gastava com aqueles moleques. Pagava apostila para quem não tinha dinheiro para o material em sala de aula que o governo não dava. Comprava livros só para emprestar a eles, para ver se tomavam gosto pela leitura de livros interessantes. Esse foi o meu pagamento?

Existiram dias, meu amor, você se recorda, que passei a tarde toda estressado, torcendo para que um deles passasse no vestibular, seria a redenção. Um monte deles passou, mas olha no que deu. Será que foi a faculdade que os estragou, que os tornou este bando de hipócritas, sem caráter?

Não, acho que não. Eu também dei aulas na faculdade e tinha um monte de gente que tentava melhorar estas pessoas.

Onde nós falhamos? Ou será que não fomos nós que falhamos? Será que o ser humano é este traste mesmo, irrecuperável? Será o tal capitalismo selvagem que leva as pessoas a serem tão estúpidas? O que eles chamam de competitividade? Que tristeza meu amor. Você é que é feliz.

Saí do boteco, caminhei bastante. Há tempos não fazia isso. Senti o sereno da noite em meu rosto. Alguns carros passavam por mim e alguns estúpidos gritavam das janelas.

— Vai dormir velho!

Umas meninas de programa se ofereceram para mim, disseram que faziam amor gostoso baratinho. Deu-me vontade de aceitar, de tentar de novo, mas fiquei com medo de fracassar e além do mais já superei estas necessidades. Elas foram educadas, me trataram bem e por isso paguei uma cerveja para cada uma delas. Deram-me beijos, me chamaram de vovô gostoso. Aquilo me deixou feliz. Você não fica com ciúmes não, né?

Uns travestis também me abordaram, falaram comigo. Também me trataram bem. Perguntaram se eu gostava deles. Disse que não do jeito que eles queriam, que preferia as mulheres, mas achava eles simpáticos. Também me trataram com carinho, me chamaram de vovô e combinaram que no dia em que eu mudasse de idéia era para procurá-los. Ri muito deles, o que aliviou a raiva que sentia.

Encontrei uns mendigos. Coitados, ferviam uma água numa panela velha para esquentar um resto de comida. Queriam dividir a comida comigo. Claro que não aceitei, além de ser suja, não estava com fome. Mas agradeci e ainda dei um dinheiro para eles. Fiquei pensando, meu amor, estes miseráveis são educados e aqueles desgraçados, com uma vida decente, toda conquistada em escolas públicas, em faculdades públicas, custeadas com o dinheiro que faltou para estes pobres coitados, se transformaram naqueles monstros.

Não pretendia vir aqui a esta hora. Sei que você quer que eu vá dormir e está escuro. Sei que você se preocupa comigo, mas estava caminhando, pensando nos mendigos, nos travestis e nas garotas de programa, comparando eles com aqueles trogloditas que foram meus alunos, quando olhei e percebi que estava na frente do portão do cemitério. Por que não entrar e contar tudo pra você? Além do mais posso lhe fazer companhia por esta noite. Ah!, eu sei que você gostou. Pensei em buscar umas flores para trazer para você, mas não havia nenhum lugar aberto. Você não queria que eu passasse meu aniversário sozinho, ou queria? Estou brincando meu amor. É claro que você não gostaria.

Não, não vou embora. O mundo ali fora é muito triste. Vou ficar aqui ao seu lado até amanhecer o dia. Talvez eu não deva ir embora mais, talvez seja melhor ficar aqui, faço companhia para você e você me socorre. O que acha?

*Nilton Bobato é professor, escritor, vereador do PCdoB em Foz do Iguaçu (PR) e membro do Conselho Nacional de Política Cultural.