Manuel Domingos – WikiLeaks: Além da saia justa

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A publicação cotidiana de informes secretos da diplomacia norte-americana deixa de saia justa políticos, militares e diplomatas mundo afora. Os que acompanham a cena internacional poderiam ter um início mais animado para a segunda década do século XXI?

Uns tentam diminuir a relevância dos documentos obtidos por Julian Assange, mas as manchetes dos grandes jornais e a força-tarefa organizada pela CIA para avaliar os estragos provocados pela WikiLeaks dizem o contrário. Aliás, o perseguido Assange se tornou a “personalidade do ano” do influente “Le Monde”.

O vendaval mal começa, promete a WikiLeaks, mas já se duvida da permanência de procedimentos consagrados da política moderna. No mínimo, os interlocutores ficariam mais precavidos nas conversas, nos lances interpessoais, nos trejeitos e maneiras tidas como inerentes ao jogo político-diplomático. Nelson Jobim, certamente, voltando à mesa do embaixador dos Estados Unidos, seria menos loquaz. Não foi confortante saber que o Ministro da Defesa é agradável a Washington.

Além de tudo, as revelações atiçam o debate sobre o direito de informação. Até onde o Estado pode e deve manter cidadãos desinformados de fatos e démarches que lhes afetem?

As constituições democráticas asseguram o acesso à informação, mas são generosas na oferta de meios para que o Estado cuide de sua segurança e preserve seus segredos. Ao distinguir as moralidades política, social, corporativa e individual a teoria política moderna ofereceu elementos para legalizar a ocultação de iniciativas do poder: o Estado teria razões próprias, inalcançáveis para a sociedade. O cidadão moderno, gostando ou não, sempre teve o seu viver sujeito a entendimentos mantidos a quatro chaves por homens poderosos que operavam cientes de que as razões mais profundas de certas decisões e iniciativas reprováveis seriam ocultadas.

A capacidade do Estado de guardar seus segredos, posta a prova pelas novas tecnologias, ficou abalada. É possível controlar a internet? Tendo levado séculos aprendendo a aturar a “liberdade de imprensa”, o Estado democrático ainda não sabe lidar com os novos meios de comunicação. Nos Estados Unidos, onde os ânimos estão acirrados, muitos recusam a ideia de que Assange represente perigo à segurança do Estado e os grandes jornais debatem os graves aviltamentos sofridos pela “primeira emenda” à Constituição, que garantiu, entre outras, a liberdade de expressão. As limitações foram acentuadas após os atentados de 11 de setembro.

No Brasil, o Estado se aferra ao fechamento de arquivos. A regulamentação do acesso a informações da administração pública tramita há alguns anos no Congresso. A proposta exige transparência e define procedimentos de consulta a documentos, inclusive com critérios para a classificação de seu sigilo e com a responsabilização para a transgressão de regras. Ao longo de 2010, quando sua aprovação parecia prosperar, sob o pretexto de evitar constrangimentos com os vizinhos, vieram as pressões para que alguns dados fossem mantidos sob “sigilo eterno”. Lula ficou devendo essa.

Sem falar dos crimes hediondos da ditadura imposta em 1964, é passada a hora de sabermos se militares brasileiros atearam mesmo fogo em hospitais durante a Guerra do Paraguai e como efetivamente se deu a compra do Acre. Um Estado não evolui sem reconhecer seus malfeitos. Esconder erros não serve a democracia nem a projeção moral do Brasil; distancia o Estado da sociedade e prejudica a integração sul-americana. “Sigilos eternos” servem mais a interesses corporativos mesquinhos. Em tempos de internet, remetem a era pombalina.

Manuel Domingos é Professor da Universidade Federal Fluminense e editor de “
Tensões Mundiais

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