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Correia da Fonseca: Dois dias de faz-de-conta

A vinda dos principais senhores da guerra a Lisboa para participarem na Cimeira da NATO foi pasto fértil para a dominante mediocridade jornalística portuguesa se esmerar na exibição da sua proverbial paspalhice, como Correia da Fonseca bem ilustra neste seu texto sobre o que foram, em termos informativos, aqueles “dois dias de faz-de-conta”.

Por Correia da Fonseca*

Durante dois dias, mais hora menos hora, a televisão portuguesa esteve entregue à Cimeira da Nato. Tal como de resto a cidade de Lisboa. Não que tivessem sido suprimidos todos os programas do costume: por muito que as motivações de promoção política tenham razões que a decência desconhece, é impensável que os chamados compromissos comerciais, pseudónimo eufemístico da publicidade, isto é, do negócio, sejam sequer beliscados.

Não obstante, o alargamento dos serviços noticiosos e o aparecimento de excepcionais espaços informativos (designadamente nos canais distribuídos por cabo e especialmente vocacionados para a informação) deram o tom dominante nestes dois dias de TV.

Como se a Cimeira fosse de facto tão importante e decisiva como se quis sugerir. Como se para Portugal a Cimeira fosse tudo e o resto quase nada. Como se a fixação completamente ficcional do ano de 2014 para a suposta retirada do Afeganistão das tropas ditas da NATO fosse uma realidade. Como se a parceria acordada com Medvedev correspondesse a uma definitiva e irrevogável submissão da Rússia às ordens do Ocidente Atlântico. Como se o tandem EUA-UE acrescentado com alguns anexos fosse o mundo inteiro agora e no futuro, não significando nada de relevante a China, o Brasil, a Índia, para não falar nos países africanos que improvavelmente ficarão na situação de total subalternidade para que foram remetidos.

Este resumo muito breve com ingerência nos terrenos da observação política corresponde à «informação» explícita ou implícita no conjunto da actividade televisiva portuguesa nestes dois dias de Cimeira.

Com perdão da imagem que não é muito fina, a TV portuguesa esteve durante estes dias de cócoras diante da Cimeira, procurando assim que todo o País se colocasse na mesma posição.

Não conseguiu: muitos portugueses vieram para a rua dizer claramente que preferem a Paz, outros encararam com um fastio mal-humorado os inconvenientes que a vinda de tanta gente fina provocaram no seu quotidiano, outros encararam com desencanto a maçada da comédia que a televisão lhes impingia.

E houve, como que para divertimento dos mais atentos, alguns pormenores de um ou de outro modo ridículos. Foi o caso da evidente presunção da jornalista Márcia Rodrigues aparentemente convencida, pelo menos nas primeiras horas da cobertura do acontecimento pela RTP1, de que a suprema vedeta da Cimeira era ela. Ou a referência pacóvia ao prazer que boa parte dos visitantes teriam tido ao tragarem os famosos pastéis de Belém. Ou a pasmaceira perante o carro presidencial de Obama, prodígio de blindagens diversas. De facto, a visão televisiva da Cimeira foi impregnada do provincianismo de uma aldeia que fosse visitada por uns imperadores de imaginadas Cochinchinas e Patagónias.

E no Telejornal (RTP1) de sábado houve cinco minutos dedicados à manifestação anti-NATO que durante a tarde descera a Avenida da Liberdade, em Lisboa.

Lembrando-me da tradição da RTP quanto a manifestações que se opõem à linha política oficial e dominante, não me pareceu que o escasso tempo de antena fosse surpreendente e escandaloso. Mas estranhei, isso sim, que a reportagem, tendo recolhido as declarações de Francisco Louçã, não tivesse ouvido Jerónimo de Sousa.

Admiti que não o houvesse encontrado, que tivesse achado que ouvir Francisco Lopes bastasse para registar a presença de uma figura destacada do PCP, que por isso se tivesse dispensado do trabalho de procurar Jerónimo de Sousa com um pouco mais de persistência. Porque ele esteve, sim, na manifestação. Mas talvez qualquer profissional da RTP saiba que omitir o secretário-geral do PCP não é caso que o faça cair em desgraça na avaliação dos seus legítimos superiores. De resto, de entre os muitos comentadores e analistas que durante aqueles dois dias desfilaram nos estúdios da RTP, da SIC ou da TVI não consegui lobrigar um só que fosse conotável com a área do PCP.

Imitando um velho estribilho do fascismo, talvez possa dizer-se que enquanto houver um comunista em Portugal, ou um qualquer cidadão que comunista pareça, a discriminação continua.

*Escritor Português
Fonte: O Diário. info