Capitalismo: os números da concentração mundial da riqueza
Riqueza extrema de um lado, pobreza de outro – este paradoxo do capitalismo é visível no desempenho dos super-ricos (cerca de 10 milhões em todo o mundo) e dos ultrarricos (apenas 93 mil). Mas eles concentram enorme fatia da riqueza mundial, e ela aumenta mesmo com a crise.
Por Daniel Raventós*, no Sinpermiso
Tradução: José Carlos Ruy
Publicado 13/11/2010 14:59
Os estudos sobre a pobreza e os pobres são muito abundantes, enquanto sobre os ricos são menos profusos. Departamentos de sociologia, de filosofia política ou de economia de qualquer faculdade no mundo, revistas acadêmicas de ciências sociais, muitos governos, institutos de estatística, organizações, periódicos, órgãos internacionais… produzem quantidades formidáveis de informes, estudos, teses de pós graduação, estatísticas e artigos sobre os mais incríveis aspectos da pobreza. Alguns inclusive são bons e úteis. A conhecida publicista e ativista da ONG ATTAC Susan George descreve a situação com ironia: os pobres? que comam pesquisas!
Os ricos estão mais protegidos contra inoportunas pesquisas que possam expor de forma documentada as crescentes desigualdades atualmente existentes no mundo, possibilitadas e fomentadas pelo desenho político e econômico de nossas sociedades. Desigualdades que estão sendo incrementadas em consequência da enorme ofensiva lançada nos últimos meses contra as condições sociais das classes trabalhadoras. Uma guerra de classes implacável que ora se disfarça com a impossibilidade de aplicar políticas diferentes, pra de realismo econômico (sic), ou inclusive de política de esquerda (no cúmulo do delírio). As políticas econômicas definidas nestas semanas são para beneficiar os ricos e, em contrapartida, para espoliar e desgraçar os pobres e as classes trabalhadoras.
Assim, levando em conta os poucos dados sobre os ricos, os documentos como aqueles publicados anualmente por agências como a Merryll-Lynch ou a Capgemini sobre a riqueza e seus detentores são de indiscutível interesse para se saber como as coisas evoluem neste ponto.
A Merryll-Lynch é uma empresa muito conhecida que, faz dois anos, foi comprada pelo Bank of America por 44 bilhões de dólares; a Capgemini, não tão famosa como ela, é uma empresa com mais de 90.000 funcionários em todo o mundo que teve, em 2009, um faturamento global de 8,4 bilhões de euros, e que se dedica, segundo ela própria declara, a prestar serviços de consultoria, tecnologia e outsourcing. Merryll-Lynch e Capgemini trabalham para os ricos, e não causa estranheza que queiram conhecer bem o objeto principal de seus negócios. Para isso, elaboram anualmente informes sobre o estado dos ricos e de suas riquezas que trazem dados de enorme interesse.
O último disponível foi publicado em 2010 com dados de 2009 e anos anteriores. Também foi editado um informe especial exclusivamente sobre os ricos da “região Ásia-Pacífico”. Os dados expostos a seguir foram obtidos nesses dois informes, assim como no informe global de 2009 (1).
Os informes da Merryll-Lynch e da Capgemini estabelecem algumas definições sobre os ricos; designa alguns como HNWI (siglas de High Net Worth Individuals, isto é, indivíduos de valor líquido elevado); a outros como UHNWI (onde a letra “U” significa ultra). Os primeiros são os que os donos de ativos superiores a um milhão de dólares, entre os quais não se contabiliza a residência principal, os bens consumíveis, os bens colecionáveis e os bens de consumo duráveis. Isto é, trata-se de uma avaliação do que estes ricos têem como ativos rapidamente convertíveis em dinheiro, isto é, de forte liquidez. Para os segundos, os UHNWI ou Ultra-HNWI, vale a mesma definição, mas com valores acima de 30 milhões de dólares. Segundo as definições expostas, são pessoas com uma riqueza efetiva superior, como ficaria ainda mais claro se fossem somados os valores dos bens não contabilizados aos limites considerados no relatório (um milhão ou 30 milhões de dólares).
A partir destes dados, no mundo existiam 8,8 milhões de HNWI 2005; aumentaram 9,5% no ano seguinte e ainda o fizeram até chegar a 10,1 milhões em 2007. Em 2008, com o início da crise econômica, o número de HNWI voltou a aproximadamente os mesmos níveis de 2005, com 8,6 milhões em todo o mundo. Mas já em 2009 o número voltou a 10 milhões, mesmo nível de 2007, anterior à crise. A riqueza conjunta de todos os HNWI do mundo foi, naqueles mesmos anos, de 33,4 trilhões dólares em, passou a 37,2 em 2006, alcançou 40,7 trilhões em 2007, baixou para 32,8 trilhões em 2008. E voltou a crescer em plena crise, chegando a 30 trilhões em 2009. Para se ter uma ideia dessas quantidades, é preciso considerar que elas equivalem a aproximadamente três vezes o PIB dos EUA ou entre 30 e 40 vezes o PIB da Espanha. É francamente espetacular.
O seleto grupo dos Ultra-HNWI estava formado, em 2009, por apenas 93.100 pessoas em todo o planeta. Aproximadamente uma de cada 75.000 pessoas que existem no mundo é um Ultra-HNWI. E, dado interessante, a riqueza que concentram era de 35,5% da riqueza acumulada por todos os HNWI, embora representem apenas 0,9% dos mesmos. Isto é, estes 93.100 campeões mundiais da riqueza possuíam ativos de mais de 13.845.000.000.000 (13,8 trilhões) de dólares, o que representa uma quantidade similar ao PIB de toda a União Europeia.
Estados Unidos (com quase 2,9 milhões), Japão (com quase 1,7 milhões) e Alemanha (com 861.000), concentram 53,5% de todos os HNWI do mundo em 2009. A Espanha tinha o nada desprezível número de 143.000 HNWI; isto significa que ela está no lugar número 12 na classificação mundial de ricaços (o Brasil tinha 147 mil e estava em 10º lugar. A lista dos dez primeiros é: EUA, Japão, Alemanha, China, Reino Unido, França, Canadá, Suíça, Itália, Austrália e Brasil – nota de JCR).
Como a crise afetará a estas riquezas? Isso poderá ser visto no informe que Capgemini e Merryll-Lynch farão com os dados de 2010. Pelo momento, pode-se esperar, de maneira razoável, que, depois do primeiro tropeção, eles se sairão fantasticamente. Os pontos de apoio desta afirmação são os seguintes: primeiro, a previsão feita pela Capgemini e pela Merryll-Lynch é que em 2013 os HNWI terão acumulado fortunas (lembremos que, para o cálculo delas, não são contabilizados a residência principal, os bens consumíveis, os bens colecionáveis, os bens de consumo durável) da ordem de 48,5 trilhões de dólares! Se esta previsão se cumprir, terão multiplicado sua fortuna disponível em 2008 por quase 60% em cinco anos. Por enquanto, em 2009 eles tem se saído mais que bem. O segundo ponto de apoio àquela afirmação está no informe publicado em 2010 dedicado exclusivamente aos ricos da “região Ásia-Pacífico”. Os dados mais interessantes deste informe revelam que já em 2009 os níveis da riqueza acumulada pelos HNWI da região voltaram aos níveis de 2007, anteriores à crise. Isto é, os HNWI cresceram em 2009 exatamente 25,8% e sua riqueza conjunta aumentou 30,9% em relação ao ano anterior. Em 2009 o Japão concentrava 54,6% de todos os HNWI da região e 40,3% de sua riqueza.
A conclusão do informe da Capgemini e da Merryll-Lynch diz: “Ao redor do planeta, a criação de HNWI e de riqueza depende muito estreitamente doêxito de cada pa~´is na gestão da incipiente recuperação econômica… e dos desafios globais nas condições financeiras”. O que tem por condição, posto em palavras mais diretas, “servir-se da crise bancária (gerada por empréstimos imobiliários de má qualidade e pela morosidade, não por custos trabalhistas altos) como ocasião para mudar as leis e permitir que as empresas privadas e os entes públicos possam demitir de forma barata e desregulada aos trabalhadores, assim como reduzir as aposentadorias e o gato social para poder pagar mais aos bancos” (2). Trata-se de uma guerra de classes em todos os sentidos.
Notas
(1) Podem ser acessados em http://www.at.capgemini.com/.
(2) Michael Hudson (2010): “Huelgas contra un golpe de Estado financiero en trance de obligar a Europa a cometer suicidio económico, demográfico y fiscal” (en http://www.sinpermiso.info/articulos/ficheros/hudsonh.pdf).
* Daniel Raventós é professor da Faculdade de Economia e Empresa da Universidade de Barcelona, membro do Comitê de Redação de Sinpermiso e presidente da Red Renta Básica