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Com pegadinha, documentário critica forma de produzir notícias

O jornalista Ricardo Kauffman, diretor do documentário "O abraço corporativo", ainda não pode dizer com certeza se o seu filme – ganhador de uma menção honrosa na 33 Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no ano passado – será exibido no Rio ou virará DVD. Segundo ele, tudo está em negociação. Mas, em ambos os casos, deveria.

Por Gilberto Scofield Jr, em O Globo

 "O abraço corporativo" é uma crítica contundente sobre a maneira atabalhoada como se produzem notícias no Brasil (e no mundo) e, ao mesmo tempo, um tapa na cara dos novidadeiros do mundo corporativo para os quais sempre há um Buda, um Tao ou um queijo disponíveis para servir de autoajuda a executivos incapazes de tocar uma empresa com competência.

Em São Paulo, apesar da demanda das faculdades de jornalismo, "O abraço corporativo" está há três semanas em exibição em apenas uma sala: a Belas Artes da Rua da Consolação, um cineclube que teve a ousadia de apostar num filme provocador.

O documentário, de 75 minutos, conta a história do consultor de RH Ary Itnem, de sua "teoria do abraço" (desenvolvida pela Confraria Britânica do Abraço Corporativo, ou CBAC) e de como ela pode combater uma séria doença que afeta empresas pelo Brasil e pelo mundo: a "inércia do afastamento", subproduto da falta de comunicação provocada pelo uso excessivo das novas tecnologias nas corporações, problema responsável pelo cada vez menos frequente mas sempre saudável diálogo interpessoal.

Em 2006, Itnem estourou na internet quando desfilou pedindo abraços em plena Avenida Paulista, filmou a façanha e colocou o resultado no YouTube, num filmete visto por mais de 650 mil pessoas. No mesmo ano, por conta disso, virou figurinha fácil na mídia nacional, dando entrevistas sobre relacionamento interpessoal nas empresas e sobre a teoria do abraço para praticamente todos os grandes veículos nacionais.

Foi entrevistado por jornalistas de renome, como Heródoto Barbeiro, da rádio CBN, e Gilberto Dimenstein, da "Folha de S. Paulo". Tudo não passaria de um filme sobre mais uma das milhares de teses escalafobéticas do mundo corporativo, não fosse por um simples fato: o consultor de RH Ary Itnem não existe, e seu nome, ao contrário, quer dizer "mentira".

Itnem, interpretado pelo ator Leonardo Camillo, foi criado por Ricardo Kauffman a partir de uma discussão com outros amigos jornalistas sobre como se fabricam notícias no Brasil. Ou melhor: como os veículos de comunicação, sem tempo ou paciência para checar dados e informações, simplesmente aceitam como fato tudo o que lhes é apresentado com aparência de verdade.

"O filme tem como foco o processo de produção de material jornalístico e mostra como, via de regra, quem está na posição de apurar e publicar notícias não tem tempo ou cuidado para checar a relevância ou profundidade do que é veiculado", diz Kauffman, que produziu o filme após seis anos de trabalho, com o apoio quase sentimental de sua equipe, outros amigos jornalistas e das duas empresas coprodutoras.

"Isso é especialmente verdade no chamado jornalismo de tese, em que a matéria já sai pronta da redação, e cabe a produtores de TV e repórteres apenas preencher a reportagem com um bom personagem, boas imagens ou frases de efeito".

No cartório, a pista final

No site da CBAC na internet, Kauffman teve a estratégia de omitir possíveis clientes do consultor Ary Itnem e pedir para quem estivesse interessado em mais informações sobre a confraria e sua teoria do abraço que visitasse um cartório de registro de notas da capital. Lá, quem tivesse a disposição de consultar a papelada, iria se deparar com um documento em que o próprio Kauffman admite que tudo não passava de uma farsa para testar os limites da produção de notícias para a mídia sem a desejável checagem de sua origem e seriedade.
 
Ninguém foi ao cartório, mas um repórter do jornal "O Estado de S. Paulo" chegou a desistir da matéria sobre o consultor quando não conseguiu arrancar dele o nome de qualquer cliente que estivesse disposto a falar.

O site do Globo falou sobre o sucesso de Itnem na internet, mas tentou entrar em contato com a CBAC pelo telefone e deixou claro que ninguém respondia no número divulgado no site. E que a homepage da CBAC na Inglaterra apenas reencaminhava o internauta para a página da confraria no Brasil. Heródoto Barbeiro é o único que tem coragem suficiente para dar um depoimento no filme admitindo que errou.

"Esse dilema da apuração bem feita apenas piorou com a rapidez, com a revolução tecnológica e com a velocidade com que se produzem notícias hoje em dia", diz Kauffman. "E as pessoas colocadas na posição mais vulnerável são os próprios jornalistas".

"O abraço corporativo" conta a história de Ary Itnem e a mistura com depoimentos de especialistas em comunicação de massa e no fenômeno das celebridades. É gente como os jornalistas Juca Kfouri, Bob Fernandes e Eugênio Bucci, o psicanalista Contardo Calligaris, o doutor em Ciências da Comunicação e professor de Jornalismo na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Carlos Chaparro e até o ex-governador paulista Cláudio Lembo.

Fonte: O Globo