Márcia Viotto: a menina Rafaela é "vilã" na novela da Globo
Chama nossa atenção a novela das oito da Globo, Viver a Vida, na qual seu autor, Manoel Carlos, procura retratar o cotidiano brasileiro apresentando-nos a menina Rafaela, oito anos de idade, interpretada pela atriz mirim Klara Castanho, uma trabalhadora infantil, do sexo feminino e no papel de “vilã”.
Por Márcia Viotto*, no Portal CTB
Publicado 18/03/2010 19:16
A Constituição Federal é clara: é proibido o trabalho aos menores de 16 anos, exceto como aprendizes a partir dos 14 anos. Ao contrário do que acontece com os trabalhadores e trabalhadoras infantis nas lavouras, nas ruas, nos fundos de quintal, o trabalho de crianças na TV ganha os aplausos da sociedade, que acha lindo aquele ser pequenino interpretar papéis que as tornam estrelas e rendem muito dinheiro a sua família .
Será que se dão conta que essa representação pode levar a uma adultização precoce e que trará malefícios físicos, mentais, sociais e acarretar transtornos para a criança? A personagem infantil é do sexo feminino e não conhece seu pai (um marginal). A mãe — outra mulher que tenta tirar vantagem das situações — sobrevive à custa de um homem (argentino) apaixonado por ela e todos vivem muito bem…
Muito teria de real se contextualizado na realidade brasileira e nas causas de tal situação. Mas, como toda novela, o que predomina é a suposta vontade das massas — que dá audiência e lucro.
As novelas brasileiras fazem parte da cultura do país, do nosso cotidiano; retratar uma criança neste papel é extremamente negativo para sua formação.
Vejamos: o que caracteriza o trabalho infantil?
É aquele que rouba a infância da criança, que a priva de seu pleno desenvolvimento, que lhe dá responsabilidade substituindo o adulto, que a impede de brincar e frequentar normalmente a escola, faz com que ela pule fases importantes da vida, algo que com certeza trará danos irreparáveis à pessoa humana e virá à tona em algum momento da vida adulta.
No Brasil, segundo o Ministério do Trabalho, não existe regulamentação legal clara para atividades artísticas de meninos e meninas. No entanto, permissões individuais baseadas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na Convenção 138 são usadas para que os responsáveis legais, por meio do Juizado de Menores, autorizem tais atividades. Há quem queira a simples autorização dos pais para liberar a exploração do trabalho infantil nessa área, como tramita no Senado projeto lei sobre participação de crianças e adolescentes em atividades artísticas.
Segundo o procurador Rafael Dias Marques, vice-presidente da Coordenação Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do Ministério Público do Trabalho, “as pessoas assistem com mais naturalidade quando o trabalho é artístico. Mas tanto em novelas quanto nas lavouras há trabalho infantil, e ele é proibido”.
Mais lamentável ainda é verificar que, no caso da atual novela da Globo, a pequena atriz representa uma personagem feminina, tomada pelo mal, ameaçadora, chantagista, potencial psicopata, o que nos faz refletir como os meios de comunicação continuam a reafirmar e reproduzir a visão preconceituosa e discriminadora sobre o sexo feminino até mesmo através de uma criança, em horário nobre, onde milhares de crianças e adultos assistem a tal situação com naturalidade.
Vale salientar o importante papel do Ministério Público do Trabalho, na defesa da criança, que notificou o autor de Viver a Vida, Manoel Carlos, expressando a preocupação com o papel desempenhado pela menina como “vilã”. As procuradoras Maria Vitoria Sussekind Rocha e Danielle Cramer afirmam que “uma criança de oito anos não tem discernimento e formação biopsicossocial para separar o que é realidade daquilo que é ficção”.
Teremos que rever o ECA e a convenção 182. Mulheres, cem anos de 8 de março, de luta, ainda temos muito por que lutar!
* Márcia Viotto é socióloga e assessora da CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil)