Silvio Meira, PhD em Computação, defende inclusão digital
Internet banda larga, música, eleições e inclusão digital, tudo no presente com pitadas de futuro. Silvio Meira falade desenvolvimento, tecnologia, informação e empreendedorismo
Publicado 07/12/2009 10:38 | Editado 04/03/2020 16:34
As voltas de mountain bike resultaram no menisco quebrado e o "escambau". Mas a cabeça só foi afetada e como diz e, pelos próprios delírios, que contribuem para o pensamento de futuro, formação do que tende a ser. O engenheiro elétrico, mestre em informática, PHD em computação (e batuqueiro de maracatu) Silvio Meira expõe seus "delírios" de futuro no presente: "Eu sou das pessoas que acredita piamente, de uma forma intensa, quase única, que devemos trabalhar de manhã, de tarde e de noite para construir o futuro, porque nós vamos viver o resto das nossas vidas lá."
Nascido em Taperoá, interior da Paraíba, mora, na realidade, nos seus endereços de email e nas redes sociais da Internet. Não é à toa que registrou um domínio de correio eletrônico com o próprio sobrenome: silvio@meira.com.br. E a responsabilidade de tentar compor o futuro é grande. O mundo virtual é o cotidiano do cinquentão de sotaque arrastado, fala apressada e muitas ideias, sem o estereótipo de intelectual.
Sem medo de expressar o que sua formação lhe deixou como legado, Meira amplia o debate sobre inclusão digital e fala apenas em "inclusão, ponto!", seja literária, seja sanitária ou econômica.
Está na ponta da língua do professor de informática o caminho para ampliar a banda larga no País: o esgoto. É o que um extenso projeto de saneamento poderia levar à população, além dos impactos positivos na saúde. A obviedade passa longe dos dizeres "meiristas", mas, como todos que tendem a genialidade, nem sempre é escutado. "Eu já propus isso mais de uma vez. Conecta o País inteiro".
Em uma sala e, a contragosto longe da movimentação -, com o computador ligado, conectado à Internet, Meira deu entrevista exclusiva ao jornal O Povo, na rápida passagem pela Capital em outubro.
Em que patamar tecnológico o Brasil se encontra?
O Brasil vive um momento de abundância de recursos no setor Federal e na maioria dos setores estaduais de ciência e tecnologia, que representa, talvez o pico de percentual em relação ao PIB (Produto Interno Bruto). O nosso principal problema é fazer bom uso desses recursos, investir na qualidade das propostas de uso dos recursos para o que a gente chama de ciência, tecnologia e inovação, de tal maneira que, quando você quiser investir em ciência, saiba no que e por que está investindo. Ninguém faz desenvolvimento tecnológico porque é bonito. Ninguém faz tecnologia porque é necessidade da sociedade de uma maneira abstrata. Você faz desenvolvimento, na minha interpretação, porque é uma forma de tornar as empresas mais aptas a sobreviver.
Como o Brasil está em relação ao mundo no aspecto de ciência e tecnologia?
Muito mal, muito mal. Está mal pelo seguinte: o problema do desenvolvimento tecnológico não é a tecnologia. A gente tem que desmitificar isso. O maior problema do Brasil é que tem grandes empreendimentos multinacionais no mercado nacional. Todo mundo que é relevante em alguma área no mundo está no Brasil, e pouquíssimas empresas brasileiras são relevantes no mercado mundial. Então tem um descompasso aqui quando você fala em empreendimento.
E o Nordeste, segue o estágio de desenvolvimento tecnológico do País?
O Nordeste é uma região periférica do ponto de vista não só de tecnologia, mas de inovação, do uso das melhores práticas de processo de qualidade de serviço, o que tornam ainda mais impressionantes os sucessos que o Nordeste tem. Mas não se pode dizer que existe um patamar de competitividade que dependa de inovação e tecnologia aqui que a gente possa estar confortável com ele. Então, o que se precisa entender é o conceito de inovação. Inovação é algo que acontece no mercado, e só no mercado. Inovação tem um número muito grande de insumos. Um dos insumos de inovação é tecnologia, mas é um dos insumos. Modelo de negócio é insumo, cultura é insumo, regras de mercado é insumo, educação do consumidor é insumo, financiamento para o desenvolvimento é insumo, crédito é insumo, ambiente de uso das coisas que você está propondo é insumo, janela de oportunidade é insumo. Eu sou contra (eu sou de tecnologia, então eu posso ser contra minha própria área), eu sou contra essa ideia da gente achar que a tecnologia vai resolver algum problema. Tecnologia é meio.
Os projetos de inclusão digital são suficientes para o que eles são propostos? Qual a importância da inclusão digital?
Qual é a importância de um projeto de alfabetização? Só 25% da população brasileira é alfabetizada. Alfabetizada no sentido de que, se ela ler um parágrafo e você fizer uma pergunta sobre o parágrafo, ela consegue responder. Qual a importância da inclusão literária das pessoas? É infinita, mas ela agrega algo de valor para todo mundo depois? Não, isso é um given, todo mundo tem que ter isso. Todo mundo tem que ser alfabetizado, da mesma forma que todo mundo tem que ser incluído digitalmente. Na Suécia, a inclusão digital é 100%, assim como a inclusão literária é 100%. Qual a importância da inclusão matemática? Oitenta por cento dos alunos que terminam o ensino médio não sabem que 80% é oito em cada dez. Então qual a importância da inclusão matemática? É infinita. Mas uma vez você chegar lá ela é irrelevante, porque quando todo mundo tem alguma coisa, o que você faz é modificar o patamar da sociedade como um todo. Isso (a inclusão) vai melhorar a capacidade das pessoas de chegar em um lugar, vir uma pesquisa eleitoral na televisão e não ser enganado.
O Brasil acompanha a inclusão digital mundial?
O Brasil está atrasado, como está atrasado em esgoto. Você pode pegar o projeto de levar esgoto para todas as casas e, dentro do esgoto, você colocar fibra ótica, por exemplo. Eu já propus isso mais de uma vez. O custo marginal de você botar fibra dentro do esgoto é irrelevante, porque o grande custo de levar fibra ótica é cavar o buraco e botar o duto. Então, bota no esgoto que está lá. Conecta o País inteiro. O fato é que a gente está atrasadíssimo. O Brasil tem uma das piores qualidades de banda para acesso à Internet de todo o mundo. O problema da inclusão não é só incluir digitalmente as pessoas. Tem um caminho muito grande para percorrer.
Aqui, no Ceará, tem um projeto do Governo do Estado chamado Cinturão Digital, que prevê levar banda larga, a princípio, para 86% da população urbana do Estado. Você acha que o Governo Federal também deve intervir na geração de banda larga para a população?
Vamos voltar para a Suécia. Quem botou banda larga, fibra ótica em Estocolmo, foi a prefeitura. Perguntei para o prefeito porque eles fizeram isso. “A gente chegou a conclusão de que, se a gente deixasse a iniciativa privada fazer, três em cada quatro cidadãos em Estocolmo ia ter 100 megabits/segundo (Mbps) na porta. Um ia ficar sem. Vinte e cinco por cento da população ia ficar sem banda larga. Larga mesmo. Porque banda larga, para mim, é 100 Mbps, no mínimo. Abaixo disso, é outra coisa. Nesse sentido, o Brasil tem zero de banda larga. A prefeitura montou a banda larga na cidade inteira, criou uma companhia, e depois que estava tudo funcionando, ela vendeu essa companhia e ficou como acionista. Isso é uma maneira muito inteligente de fazer a coisa. Se você imaginar o Governo do Ceará vai & aspas & dar banda larga para 86% da população, isso significa que ele vai criar um mega centro de custos, onde, mesmo que essas pessoas saiam da categoria de renda ou localização, onde elas não precisam mais daquele espelho retrovisor, ele vai continuar oferecendo esse negócio. Então, tem que se julgar, quando você faz qualquer projeto de compensação. “O setor privado não está fazendo, eu vou fazer“. Você tem que medir o seguinte: Isso é ou não é papel do Estado? É papel do Estado, na minha opinião, enquanto a iniciativa privada não puder fazer.
Professor, ainda nesse contexto de intervenção governamental, ampliando o debate sobre a pesquisa científica e tecnológica. Quais os principais desafios para adequar tecnologia, desenvolvimento científico e aplicação à população?
O principal desafio para você fazer com que resultados científicos e tecnológicos que melhorem a qualidade de vida da população cheguem ao mercado é empreendedorismo. O Brasil tem uma deficiência absurda de capacidade empreendedora, tanto que a gente aponta estado por estado, cidade por cidade, as poucas pessoas empreendedoras. A maior parte dos empreendedores que a gente tem no Brasil não depende de ideias geniais ou de alta tecnologia, são pessoas capazes de fazer. A gente tinha tecnologia para resolver o problema de pólio (poliomielite) há décadas no Brasil. Gastou um conjunto de empreendedores cívicos, uma espécie de mobilização nacional, que existe até hoje, que prova que o Brasil pode sim fazer coisas muito complexas em âmbito nacional e continuamente. Faz décadas que o Brasil vacina sua população inteira contra pólio. O Brasil foi um dos primeiros países em desenvolvimento a erradicar totalmente a pólio. Por que? Porque entendeu o problema e fez os usos apropriados das tecnologias para resolver o problema. Se você disse: “Está aqui a vacina“. Certo! Como é que você distribui isso na sociedade? Como é que você transforma isso num problema de segurança nacional ou um problema de saúde pública? Que ver um outro exemplo? Aids. Está aí, você tem países da África que tem 50% da população adulta soropositiva. A tecnologia está lá. Por que eles não resolveram o problema como a gente resolveu aqui no Brasil? Qual foi o último dia que vocês publicaram uma notícia no O POVO de que alguém tenha morrido de aids? Vai fazer uns quatro ou cinco anos, certo? Por que? Porque a gente criou um programa nacional para tratar & não é para combater aids & a epidemia da aids.
A vinda da Copa do Mundo de 2014 para o Brasil pode colaborar para avançar a ciência e tecnologia no País?
A Copa do Mundo não é um negócio que surge do nada. A gente tem uma história bem recente do Pan no Rio. Me diga qual foi o resultado do Pan. Surgiram quantas empresas matadoras no Rio de Janeiro por causa disso? Se a gente não tomar cuidado, a Copa do Mundo e depois as Olimpíadas vão ser meros investimentos em infraestrutura seguidos depois de anos e anos e anos de reclamação e pagamento de contas. O Brasil ainda tem esse negócio messiânico: "Fulano ou um tal evento vai salvar o País". A gente tem que desmitificar isso. Não tem nenhuma coisa que vá salvar o Brasil. O Brasil é um lugar muito complexo. A gente tem que passar a acreditar que a vida não é uma loteria, que a vida não é um conjunto de eventos isolados. Tecnologia e ciência têm muito a ver com isso. Para você gerar uma base científica capaz de ter um impacto razoável na economia leva décadas. Vai ter um impacto, mas para que esse impacto seja de longo prazo, a gente tem que estruturar um conjunto de processos antes, durante e depois, para que esse impacto seja estrutura e não conjuntural. Tirando os ultramegaengarrafamentos que vão ter, vai sobrar o que depois? Um megaestádio par quem jogar?
Você morou em Iguatu, no Interior do Ceará…
(interrompendo) Em 1968 e 1969. Morei em Fortaleza também em 1969 e 1970. Para você ver como tecnologia é um insumo essencial para o desenvolvimento, mas que você tem que estruturar para que ela efetivamente aconteça. A eletricidade é um negócio século XIX. Eu cheguei em Iguatu em junho de 1968. A energia elétrica chegou em maio de 1968. Eu cheguei junto com a energia elétrica. A minha casa tinha uma televisão que a gente tinha trazido do interior de Pernambuco. Quando eu fui para Iguatu, a televisão ficava na janela da casa da gente para fora para o pessoal da rua ver. Juntava dezenas, às vezes, centenas de pessoas. O fato de você ter, não só a ciência e a tecnologia, mas às vezes o fato de ter a indústria, não significa que você vá universalizá-la não. Esse negócio de inclusão, não é de inclusão digital. Nós não estamos falando de inclusão tecnológica ou inclusão digital. Estamos falando de inclusão, ponto! O Brasil precisa ter uma inclusão de esgoto, inclusão educacional, o Brasil precisa ter inclusão digital. Inclusão digital, por acaso, pode ser um mecanismos essencial para você diminuir o custo, aumentar o alcance e diminuir o tempo para fazer uma inclusão literária, econômica… é o que a gente chama de inclusão habilitadora. Vamos apostar no desenvolvimento tecnológico. Não! Vamos apostar no desenvolvimento. Você precisa de um projeto de criação de empreendedores. Tem que ser possível as pessoas terem uma visão ortogonal da sociedade que não é só concurso público. Se eu jogar todo mundo dentro do Estado, quem vai pagar o imposto para sustentar esse pessoal? Vão viver tudo de transferência de Brasília? É um problema tenso na sociedade.
No fim deste ano, completam dois anos que tiveram início as transmissões da TV digital.
Isso não deu certo.
Houve muita repercussão no lançamento, mas pouco se difundiu em amplitude maior. Porque não deu certo? Existe ainda o desafio da TV digital no Brasil?
Não tem desafio não, não tem modelo de negócio! Você cria uma operação que é absolutamente necessária, porque a tecnologia analógica para transmissão de televisão está depois do apogeu vai desaparecer, vai deixar de ser fabricada. Mas, ao invés de você dizer que você vai fazer esse negócio de uma maneira que você está substituindo uma coisa por outra, você doura essa pílula com um conjunto de possibilidade tão grande que parece que vai chegar um novo messias eletrônico para salvar o País. Faltou pensar em um modelo de negócio que transformaria TV digital em uma coisa amplamente aceitável pelas pessoas. Como não se transmite uma programação diferente da TV digital, eu, usuário, não tenho nenhuma razão para comprar uma TV digital.
Então foi um fiasco a TV digital no Brasil?
Não, foi um sucesso. Os objetivos da TV digital no Brasil eram dois. Um, era impedir a entrada de novas emissoras no espectro (largura de faixa eletromagnética que se usa passar o sinal). Para isso, era essencial que fosse mantida a divisão de espectro como ela é. Isso aconteceu. Cada estação tem hoje exatamente a quantidade de espectro que ela tinha antes. Então, os canais lutaram bravamente e conseguiram uma grande vitória que foi manter cada um a sua largura de banda. Dessa forma, não dá para entrar ninguém novo. A segunda foi excluir os operadores de telefonia móvel da TV digital no celular. Isso também foi conseguido. Tendo sido conseguido essas duas coisas, o projeto é um sucesso. E é mesmo. Além do mais, televisão digital já existe, ela está dentro da internet. Isso vai resolver o problema. A medida que você botar banda larga mesmo, todo mundo vai ter televisão em casa por dentro da internet, como já existe. Isso é uma questão de tempo.
O Governo Federal autorizou o uso irrestrito da Internet para as campanhas eleitorais. Em que medida isso pode mudar a dinâmica das campanhas no Brasil?
É outra coisa que as pessoas dizem: “Vai mudar tudo“. Não vai mudar, porque muito menos do que 20% da população tem acesso diuturno, contínuo e constante à rede. Tem quatro milhões de brasileiros no “youtube“. Isso é 2% da população do Brasil. Normalmente, a porcentagem do Brasil que está incluída digitalmente e conectada o tempo todo é dificílima a probabilidade de mudar a opinião dele sobre qualquer coisa. Não é a massa de manobra que está lá. Uma eleição é definida pela massa de manobra. Tem um pessoal que está ideologicamente fixo no lado A, outro no lado B, lado C, lado D e lado E. Então, tem um pessoal variável aqui no meio. A quantidade de gente variável que está solta na Internet é pequena demais para a Internet agora ter um impacto fundamental sobre a eleição. Mas, quem começar a praticar mídias sociais na Internet, quem começar a entender como a rede funciona, quem usar a rede como laboratório, quem usar a Internet como laboratório, vai se tornar imbatível. Mais cedo do que tarde, todo mundo vai estar na rede. O impedimento fundamental não é as pessoas não quererem estar lá. O impedimento fundamental é a capacidade de pagar para estar lá. Você vê hoje, a meninada pobre da periferia, que eles estão gastando uma fortuna nas lan houses. Tem 130 mil lan houses no Brasil. Taperoá tem 30 para 12 mil habitantes. Dá uma lan house para cada 400 pessoas. Esse pessoal que já nasceu na rede, mesmo parcialmente na rede, ele não vai sair de lá.
A música na Internet é um processo inevitável e já real. Como utilizar a ferramenta Internet para a música e isso ser meio de sobrevivência do mercado fonográfico?
Na hora que você colocou Internet na equação, eu posso fazer o seguinte: eu copio o CD e jogo na Internet. Você pede emprestado, eu entrego para você. O link é essa aqui, baixe aqui. Quando você generaliza isso, você diz. Eu posso fazer esse bem para todo mundo. E melhor, eu não preciso pedir licença para o cara que gravou. O modelo de negócio foi para o espaço e não adianta tentar controlar isso. Esse modelo de negócios tem uma semente de destruição, aí, sim habilitada por tecnologia. Cópia digital combinada com Internet banda larga. A gente está ainda para o seguinte modelo. O próximo estágio é o seguinte: por que eu tenho que ter os arquivos? Qual o inferno que tem hoje para todos os envolvidos? Você chupa cinco mil músicas, põe no disco, o disco colapsa, você perde todas. Lá vai você de novo atrás da sua coleção. A gente está indo para um lugar onde não tem mais o arquivo. Você tem o serviço. Nós vamos sair da cultura como arquivo para a cultura como serviço. Isso vai afetar não só o mercado de áudio e vídeo, mas vai afetar ainda mais radical e catastroficamente o mercado de literatura. O fato de que você tem leitores capazes de apresentar para você uma qualidade de livro e jornal em uma página em que tem uma bateria que dura 15 dias, como Amazon Kinder, como o Sony Reader, como Table da Aplle, vai desmontar em uma velocidade ainda maior a indústria do livro.
Perfil
Considerado um dos grandes pesquisadores de engenharia de software no Brasil, Silvio Meira é cientista-chefe do Centro de Estudos e Sistemas Avançados (Cesar) do Recife. Foi assessor da secretaria de política de informática do Ministério da Ciência e Tecnologia, além de consultor do Banco Mundial e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Já foi nomeado, pela revista Info Exame, uma das cem pessoas mais importantes das tecnologias da informação no Brasil. Escreve regularmente para o portal G1 – Tecnologia.
Fonte: Jornal O Povo