TV italiana: um caso de presa fácil da indigência cultural
Por volta dos anos 70, Pier Paolo Pasolini, uma das mais lúcidas mentes italianas, sustentava que nada é mais feroz do que a banalíssima televisão. Se tal afirmação é válida naqueles países que transformaram o eletrodoméstico em um verdadeiro totem, na Itália ela foi esquecida.
Por Anelise Sanchez*, no Correio Caros Amigos
Publicado 08/10/2009 09:50
Passadas mais de três decadas, o entrelace entre mídia, poder e sociedade na Itália é ainda mais acentuado. Basta pensar que, nos últimos meses, alguns de seus principais jornais foram processados por difamação pelo premiê Silvio Berlusconi. O primeiro ministro pede à La Repubblica uma indenização de um milhão de euros pela publicação de um artigo que continha uma lista de dez perguntas mal esclarecidas sobre escândalos que o evolviam diretamente.
A caça às bruxas também inclui denúncias contra os jornais L’Unità e El País e um braço de ferro entre Il Giornale, propriedade de Paolo Berlusconi, irmão do premiê, e L’Avvenire, jornal católico. Depois depublicar críticas moderadas sobre a vida privada de Silvio Berlusconi e sobre a política de imigração de seu governo, Dino Boffo, diretor do jornal da CEI foi o protagonista de uma série de artigos publicados por Il Giornale, relevando o seu suposto envolvimento em um processo por assédio. O documento, anônimo, relata um caso de perseguição a uma mulher, com cujo marido Boffo teria mantido uma relação homossexual em 2004. “Se este é o tratamento reservado a jornalistas independentes, qual será o futuro da nossa informação?”, questionou o jornalista logo após o seu pedido de demissão.
As últimas divergências entre o líder do governo e a imprensa foram amplamente divulgadas pela mídia internacional, mas o que poucos sabem é que as pressões contra os poucos órgãos de informação que ousam criticar a política do premiê representam só a ponta de um iceberg.
Não é uma novidade o fato que, além de proprietário do grupo Mediaset, que reúne três dos quatro canais comerciais de TV da Itália, e da potente editora Mondadori, Silvio Berlusconi também possui ampla maioria no Parlamento; instituição responsável pela nomeação dos membros do conselho da RAI, a histórica televisão de estado.
Segundo o dossiê publicado em 2009 pela Freedom House, organização autonônoma com sede nos Estados Unidos da América, Itália e Turquia são os únicos países da europa considerados parcialmente livres no que refere-se à liberdade de informação. “A Itália retrocedeu no ranking porque o direito de expressão foi limitado por novas leis e crescentes intimidações aos jornalistas realizadas pelo crime organizado e por grupos de extrema direita, além da excessiva concentração na propriedade das mídias”, esclarecem os autores do documento.
Uma das normativas mais criticadas pela imprensa e magistratura local é o chamado “ddl intercettazioni”, um projeto de lei que proíbe os jornalistas de publicarem informações sobre o andamento de investigações policiais ainda não concluídas ou o conteúdo de escutas telefônicas, além de prever uma multa e a prisão de seis meses a três anos para quem descumprir a lei.
Apesar da limitada liberdade de imprensa sempre ter sido considerada pelo governo como um delírio dos jornais e dos partidos políticos de inclinação esquerdista ou como um complô contra o líder do Popolo della Libertà (PDL), em qualquer outra nação européia os últimos acontecimentos não deixariam de despertar a incredulidade e repreensão moral.
Em junho passado, durante uma convenção organizada em Santa Margherita Ligure para jovens industriais, o premiê convidou a platéia a não destinar a própria verba publicitária “aos meios de informação pessimistas”, referindo-se às publicações que tratam abertamente o tema da crise econômica mundial.
Mais recentemente, mostrando que não pretende renunciar à fórmula política-entretenimento, transformou o programa Porta a Porta, que vai ao ao em horário nobre, na TV pública, em um grande palco.
Em uma espécie de revitalização da política de panem et circenses, Berlusconi utilizou o programa para divulgar a entrega das chaves das primeiras casas destinadas aos desabrigados do terremoto de Abruzzo, enquanto a RAI adiou a volta ao ar de Ballarò, programa de atualidade política de seu terceiro canal, pela coincidência com o horário da entrevista do premiê na RAI 1.
O vértice RAI negou a existência de qualquer manipulação da TV estatal a favor do governo, mas outros programas televisivos considerados incômodos estão sendo revistos em função da nova estratégia empresarial adotada pela TV pública.
O caso mais polêmico é aquele de Anno Zero, programa apresentado pelo jornalista Michele Santoro. Já afastado da emissora em 2002 porque, segundo Berlusconi, “fazia um uso criminal da rede”, Santoro é alvo de novas críticas contundentes.
No último dia 24 de setembro, o tema de seu programa -“Há um perigo para a liberdade de expressão na Itália?” – provocou um acentuado mal estar na classe dirigente italiana. Assim, entre 7 e 8 de outubro, os diretores da TV de estado foram “convidados” a comparecer perante o Ministério Do Desenvolvimento Econômico para dar explicações sobre o suposta qualidade duvidosa do programa de Santoro.
Apesar de Anno Zero destacar-se como uma das principais fontes de publicidade para a RAI 2, com uma audiência média de 17,7%, um de seus principais personagens, o comentarista Marco Travaglio, seguido por milhões de telespectadores, ainda não teve o seu contrato renovado com a emissora e, caso não seja confirmado, uma das prováveis consequências será a perda de anunciantes publicitários e receitas para outras redes de TV.
O assédio contra o programa de Santoro também foi reforçado com os jornais impressos Libero e Il Giornale que convidam os próprios leitores a boicotarem a TV pública, deixando de pagar a assinatura anual da RAI. A campanha foi considerada “vergonhosa” para Paolo Garimberti, presidente TV de estado e, segundo Dario Franceschini, o líder da oposição de centro-esquerda, as críticas de Berlusconi à RAI são a "prova mais recente de que a sua intenção é usar a sua força econômica para condicionar e intimidar todas as vozes livres".
Contras as ameaças do governo, Santoro respondeu entrevistando, na semana seguinte, a garota de programa Patrizia D’Addario, e conquistando sete milhões de telespectadores. Ela revelou ter passado uma noite com o primeiro ministro italiano no Palazzo Grazioli. Claro que a vida privada de Berlusconi interesa pouco aos italianos, mas o fato não passou despercebido porque D’Addario teria sido recrutada por Gianpaolo Tarantini, empresário do ramo de próteses ortopédicas e que criou uma rede de influência entre os políticos do país para garantir o seu sucesso nas concorrências públicas realizadas pelos hospitais da região da Puglia.
Outra demonstração da falta de pulso da TV pública reside no fato de que um de seus poucos programas de jornalismo investigativo, Report,considerado uma pedra no sapato por muitos políticos e empresas nacionais, havia sido ameçado de não ter mais qualquer assistência legal grantida pela RAI. Isso significaria que, no caso de um eventual processo contra o programa, o jornalista autor de uma reportagem seria, enquanto pessoa física, o único responsável pela sua defesa diante da justiça. A TV só voltou atrás em sua decisão porque muitos italianos revoltarem-se e assim, no dia da manifestação italiana a favor da liberdade de imprensa, 3 de outubro, foi anunciado que Report continuará a contar com a tutela legal da TV pública.
Não é de hoje que a RAI transfomou-se em uma TV conformista, pouco atenta às críticas da inteligentia italiana, incerta em seu papel de tutor do pluralismo e vítima de uma letargia profunda.
Enquanto isso, a TV comercial, baseada na fórmula paetês e corpos seminus, continua a domesticar lentamente uma opinião pública à deriva. Em nenhum outro país europeu o sistema audiovisual assumiu tão rapidamente o status de filtro da vida política, assim como acontece na Itália.
Desde o início da carreira política de Berlusconi, com a fundação do partido-empresa Forza Italia, a TV revelou-se um alicerce indispensável ao sucesso de um personagem que soube como ninguém apaziguar os ânimos dos italianos logo após o fim da primeira república. No início da década de 90, com a dissolução da Democracia Cristã e a deposição e exílio do ex primeiro ministro socialista Bettino Craxi, Silvio Berlusconi soube reciclar profissionais de antigas siglas políticas e recolher os cacos da velha república para transformá-los em um partido patchwork criado à sua imagem e semelhança.
Um de seus grandes méritos foi saciar a fome de mudança de uma presa fácil; uma população conformista e desencantada com a partidocracia e pronta a delegar o poder a um chefe de estado showman.
No exterior, muito provavelmente não é fácil compreender como os meios de comunicação contribuiram para engessar a consciência coletiva italiana. Recentemente, a TV inglesa BBC, por exemplo, colocou no ar um Mock the Week, programa satírico com piadas irreverentes o comportamento de Berlusconi, mas por muito menos, na Itália, jornalistas estão sendo acusados por difamação.
Não é de hoje que autores como Jürgen Habermas discutem sobre mídia e esfera pública, mas um retrato fiel e atualíssimo desta nova Itália tragicômica é Videocracy, documentário lançado durante a última edição do Festival Internacional de Cinema de Veneza.
De autoria de Erik Ghandini, italiano residente na Suécia, o polêmico documentário percorre os corredores do império audiovisual de Berlusconi, mas teve o seu trailer vetado pela RAI. O que salta aos olhos no documentário é como, na Itália, a chamada “TV spazzatura” (TV lixo) combinou-se perfeitamente com a política, transformando Berlusconi em um produto de massa e a fama na única ambição de uma inteira geração. "Aqui, se divertir é uma religião. Parece que é a única coisa importante para um italiano. O banal se transformou em uma arma do poder", comenta Gandini.
O documentário conta um pouco da rotina luxuriosa de Villa Certosa, mansão do premiê na Costa Esmeralda, na Sardenha, e de como para muitas jovens a maior aspiração é aquela de tornar-se uma “velina” e, em seguida, ingressar na vida política. (Hoje, a terminologia é usada para indicar uma showgirl ou dançarina, mas no passado era o comunicado que o departamento de censura facista enviava à imprensa especificando quais notícias estajam sujeitas a censura).
Se, no passado, França e Itália eram considerados territórios considerados como a última trincheira européia da diversidade cultural, hoje o que resta da TV italiana é o aniquilamento.
De modelo empresarial, o berlusconismo evoluiu para um ideologia política e, em seguida, transformou-se em um modelo de vida que parece sufocar as poucas vozes italianas que não renunciaram à força da indignação.
Atualmente, Berlusconi cumpre o seu terceiro mandato e ninguém dúvida que o seu grande projeto futuro será conquistar, sem pertubações, a presidência da República, cargo que até agora foi ocupado por homens que, por exemplo, participaram da resistência italiana.
A nação parece estar sendo engolida na famosa espiral do silêncio descrita por Noelle-Neumann, mas uma brecha contra a lobotomização da opinião pública ainda pode ser reaberta. Uma parte da Itália, aquela menos vísivel, está lentamente acordando de um sono profundo, depois de entender que não se muda um país permanecendo sentado na própria poltrona de couro ou, no caso da mídia, aceitando intimidações. Prova disso é o o grande sucesso da manifestação italiana a favor da liberdade de imprensa e o lançamento de Il Fatto Quotidiano, o primeiro jornal independente do país que em poucas semanas conquistou mais de 30 mil assinantes. O primeiro, esperam em muitos, aliado de uma Itália que não quer se calar.
* Anelise Sanchez é jornalista