Naomi desmonta o 'capitalismo de desastre' no pós-crise
Circula na rede um texto de Naomi Klein que analisa como os norte-americanos e o mundo ocidental fazem o rescaldo pós-crise da financeirização da economia global. Algo que coloca em cheque – e de uma vez por todas – o que a autora já definiu como “capitalismo de desastre” e a própria hegemonia neoliberal, de há muito sem sustentação popular e sem legitimidade, a não ser pela mídia impressa e eletrônica dos patrões, ou Síndrome de CNN. Márcia Denser, do Congresso em Foco, convida a ler o que diz a "garota" Naomi.
Publicado 28/09/2009 01:45
O que não sabemos é como o público irá reagir. Vamos considerar que, na América do Norte, todos com idade abaixo dos 40 anos cresceram ouvindo que o governo não pode intervir para melhorar nossas vidas, que o governo é o problema, não a solução, que o laissez faire é a única opção. Agora, de repente, estamos vendo um governo extremamente ativo, intensamente intervencionista, que parece estar disposto a fazer qualquer coisa para salvar os investidores deles mesmos.
Esse espetáculo levanta, necessariamente, uma questão: se o Estado pode intervir para salvar corporações que assumiram riscos impensados nos mercados imobiliários, por que não pode intervir para evitar que milhões de americanos sofram a execução de suas hipotecas?
Seguindo o mesmo raciocínio, se US$ 170 bilhões podem ser instantaneamente disponibilizados para compra da gigante dos seguros AIG, por que o seguro de saúde individual – que protegeria os cidadãos das práticas predatórias das empresas de seguro-saúde – parece ser um sonho inatingível? E se cada vez mais corporações precisam dos fundos dos contribuintes para se manter, por que os contribuintes não podem reivindicar algo em troca, como limites de juros em pagamentos executivos ou uma garantia contra mais perdas de empregos?
Agora que ficou claro que os governos podem realmente agir em tempos de crise, será muito mais difícil alegar a impossibilidade de agir no futuro. Outra mudança potencial tem a ver com as esperanças do mercado em relação a futuras privatizações. Por anos, os bancos de investimento global têm feito lobby entre os políticos para a exploração de dois novos mercados: um que viria da privatização de aposentadorias públicas e outro que surgiria de uma nova onda de estradas, pontes e sistemas hídricos privatizados ou parcialmente privatizados. Esses dois sonhos acabaram de se tornar muito mais difíceis de vender: os americanos não mais estão dispostos a confiar seus ativos coletivos e individuais a apostadores imprudentes em Wall Street, especialmente porque parece muito provável que os contribuintes tenham que pagar para comprar seus próprios ativos de volta quando a próxima bolha estourar.
Esta crise também poderia ser um catalisador para uma abordagem radicalmente alternativa à regulação de mercados mundiais e sistemas financeiros. Já estamos vendo uma movimentação em direção à ‘soberania alimentar’ no mundo em desenvolvimento, ao invés de deixar o acesso aos alimentos aos caprichos dos negociantes de matérias-primas. Finalmente chegou a hora de considerar idéias como a tributação de negociações, que reduziria a velocidade do investimento especulativo, assim como outros controles do capital global. Hoje, a nacionalização não é mais um palavrão, e as empresas de gás e petróleo devem ficar atentas: alguém precisa pagar pela mudança em direção a um futuro mais verde, e faz mais sentido que a maior parte dos fundos venha do setor altamente lucrativo que é o maior responsável por nossa crise climática. Isso certamente faz mais sentido do que criar outra bolha perigosa resultante da comercialização de carbono.
Contudo, a crise que estamos presenciando demanda mudanças ainda mais profundas do que essa. O motivo pelo qual esses empréstimos podres puderam se proliferar não foi apenas porque os reguladores não entenderam o risco. Foi porque temos um sistema econômico que mede nossa saúde coletiva somente com base no crescimento do Produto Interno Bruto. Enquanto os empréstimos podres estavam estimulando o crescimento econômico, nossos governos os apoiavam ativamente. Assim, o que realmente foi colocado em questão pela crise é o comprometimento inquestionável com o crescimento a qualquer custo [grifo meu]. Na verdade, essa crise deveria nos levar a encontrar uma forma radicalmente diferente através da qual nossas sociedades pudessem medir saúde e progresso. Nada disso, no entanto, acontecerá sem uma enorme pressão pública sobre os políticos neste período-chave. Não o lobby educado, mas um retorno às ruas e o tipo de ação direta que mostrou o caminho durante o New Deal na década de 1930. Sem isso, teremos mudanças superficiais e um retorno, assim que possível, à velha forma de fazer negócios.”
E a velha forma de fazer negócios é, no limite, aquela na qual, ao fim e ao cabo, todos perdem.