O dia em que Gil desafiou a mídia e endossou a ética hacker

Por André Cintra
Já faz 18 meses. A grande mídia, em polvorosa com o anteprojeto da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav), passou a atacar Gilberto Gil e o Ministério da Cultura sem cessar. Tachava a proposta de ''xenófoba'', ''dirigist

De cara, comparou o fogo cruzado da mídia à ofensiva americana no Iraque – à a tática militar de Bush'': ''bombardeio avassalador no primeiro dia de guerra para mostrar o poderio norte-americano e dizer: 'Não ousem resistir, que vem mais por aí'. Depois, o consenso, o pensamento único pró-guerra na imprensa norte-americana, tornando verdade o que hoje sabe-se mentira: a existência de armas de destruição em massa no arsenal iraquiano.''


 


Gil defendeu com firmeza a Ancinav, por seu caráter democrático e estratégico. ''A globalização torna fundamental, sob o ponto de vista cultural, econômico e geopolítico, que o Brasil tenha uma vitalidade e uma diversidade ainda maior como produtor, consumidor e exportador de conteúdo audiovisual'', afirmou. ''Por isso, o país precisa de uma agência abrangente, capaz de estruturar e desenvolver democraticamente o setor, maximizando seu potencial.''


 


Na parte mais célebre de seu discurso, Gil explicou a ''ética hacker'', da qual se declarou adepto e propagador: ''Eu, Gilberto Gil, cidadão brasileiro e cidadão do mundo, ministro da Cultura do Brasil, trabalho na música, no ministério e em todas as dimensões de minha existência, sob a inspiração da ética hacker – e preocupado com as questões que o meu mundo e o meu tempo me colocam, como a questão da inclusão digital, a questão do software livre e a questão da regulação e do desenvolvimento da produção e da difusão de conteúdos audiovisuais, por qualquer meio, para qualquer fim.''


 


Confira os principais trechos do discurso de Gil – sínteses da filosofia e da atuação do Ministério da Cultura no governo Lula.


 


Grande mídia: igual a Bush



Xenófobo. Autoritário. Estalinista. Burocratizante. Centralizador. Leviano. Estatizante. Dirigista. Controlador. Intervencionista. Concentracionista. Chavista. Soviético. Desde a quinta-feira da semana passada, jornais, revistas e emissoras de televisão do país amplificaram e multiplicaram esses e outros termos semelhantes para qualificar – ou desqualificar – a proposta de criação da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual. A sociedade brasileira foi bombardeada por dezenas de ''istas'' e ''antes'', repetidos à exaustão.


 


O projeto não veio à tona por seu teor, mas por sua crítica. Vi poucas críticas consistentes, baseadas em leituras atentas do anteprojeto, em conhecimento rigoroso e abrangente da questão. Em vez disso, há a estigmatização. Tenho visto um festival de adjetivos, generalizações, visões apriorísticas e opiniões construídas a partir de outras críticas, e não do fato que se critica.


 


Houve quem afirmasse, talvez sem se dar conta do grau de violência verbal de sua assertiva, que a proposta deveria ser atirada ao lixo. Um jornal, por exemplo, publicou nos últimos dias as opiniões contrárias de dezenas de pessoas, em especial de seus próprios colunistas. No dia em que o Congresso Brasileiro de Cinema, que reúne 54 entidades do setor, inclusive os exibidores, foi ao MinC para manifestar seu apoio à criação da Ancinav, o que fez o jornal? Nada. Simplesmente não publicou a informação de que o cinema brasileiro quer a Ancinav.


 


Até hoje, os veículos que atacaram ou publicaram ataques ao anteprojeto simplesmente não concederam ao Ministério da Cultura a oportunidade de apresentá-lo, inclusive para que ele seja criticado pelo que efetivamente é, e não por aquilo que os colunistas e editorialistas acham, ou preferem achar, que ele seja.


 


Este fenômeno é muito parecido com o que houve recentemente nos Estados Unidos. Primeiro, a tática militar de Bush – bombardeio avassalador no primeiro dia de guerra para mostrar o poderio norte-americano e dizer: ''Não ousem resistir, que vem mais por aí''. Depois, o consenso, o pensamento único pró-guerra na imprensa norte-americana, tornando verdade o que hoje sabe-se mentira: a existência de armas de destruição em massa no arsenal iraquiano.


 


Pela inclusão digital



Ontem, por exemplo, um grande jornal de São Paulo estampou em chamada de primeira página: o Ministério da Cultura quer controlar a internet. Ora, isso ofende a minha inteligência, a minha história, a minha sensibilidade – e a inteligência dos próprios leitores.


 


Todos sabem que sou um defensor, e mais do que um defensor, um praticante, um usuário, um divulgador, do software livre, da inclusão digital, das formas mais radicais de exercício da liberdade de pensamento, de expressão e de criação. Todos sabem que fui perseguido pela ditadura militar e que minha produção criativa foi controlada e violentada pela censura. Há um ditado popular que diz: quem bate pode até esquecer, mas quem apanha nunca esquece. Pode um perseguido tornar-se perseguidor? Não eu, certamente.


 


Quem me ataca sem ter lido o que estou propondo, e além disso não me dá o direito de responder na mesma medida, no mesmo espaço, no mesmo local, ou eu, que estou aqui, falando com vocês, e me coloco à disposição para tratar do assunto com todo mundo, com as empresas, com as entidades, com os criadores?


 


A Ancinav



Nada mais democrático, transformador e contemporâneo do que a própria proposta de criação da Ancinav e de uma série de medidas legais e institucionais de regulação e desenvolvimento do conjunto do setor audiovisual do Brasil, incluindo a internet.


 


Trata-se de afirmar ou não afirmar a capacidade do Brasil de ser um criador, um produtor e um difusor de conteúdos audiovisuais próprios. De saber se queremos ou não queremos construir a nossa própria imagem, a partir da incrível diversidade cultural e natural deste país. Se queremos ou não criar mais empregos e gerar mais renda através de uma indústria livre, criativa, inteligente, sustentável e limpa.


 


Estão claramente confundido regulação com regulamentação e controle. Regulação quer dizer outra coisa. A idéia de regulação parte de dois princípios:


 


1) A sociedade e seus setores estratégicos precisam de algumas regras e de instâncias de mediação que assegurem os seus valores fundamentais (como os direitos humanos), que contribuam para a solução de problemas (como a redução do grau de diversidade cultural ou a oligopolização de um setor econômico), e incentivem o seu desenvolvimento;


 


2) Para maximizar a eficiência, a abrangência, a democracia e a adequação à realidade dessas regras e instâncias, é preciso que elas sejam flexíveis e dinâmicas, sendo pactuadas e repactuadas, para que contemplem a riqueza, a complexidade, o dinamismo e a velocidade da própria realidade e da própria sociedade, sem se tornarem imposições.


 


Contra o facismo



A sociedade precisa de instrumentos tanto legais quanto legítimos para se defender de todo e qualquer fascismo. Falo, por exemplo, do fascismo da exclusão social, do fascismo do obscurantismo, do fascismo da hegemonia de uma cultura, e de seus bens, serviços e valores culturais, sobre as demais culturas que compõem o grande patrimônio comum da humanidade.


 


Falo também do fascismo do Estado, do fascismo das grandes corporações e do fascismo da mídia, fascismos igualmente perigosos, igualmente autoritários, igualmente ''istas'' e ''antes'', porque amparados num poder desmedido, incomensurável, que se afirma sobre a sociedade e a democracia.


 


Interesse nacional



A questão do software livre, assim como a da produção e difusão de conteúdos audiovisuais, também é uma questão de soberania coletiva e, portanto, nacional. É uma questão cultural por excelência, e por isso tem a ver com o projeto de país que estamos construindo, com a valorização da diversidade cultural, com a cidadania, com a geração de renda e emprego através de indústrias criativas e limpas, e com a nossa autonomia e a nossa capacidade de respeito à diferença, seja enquanto indivíduos, seja enquanto grupos sociais, enquanto sociedade nacional e sociedade global.


 


Se tiver coragem, e esta coragem está sendo demonstrada, apesar dos pesares, o Brasil tem a oportunidade de empreender uma grande campanha, um grande movimento nacional de mobilização pró-liberdade digital, tornando-se assim referência mundial na luta pelo software livre. Mais cedo ou mais tarde, todos os governos e todas as sociedades terão de enfrentar as questões que estamos abordando aqui. Nós estamos na frente e isso deve ser motivo de orgulho.


 


Minc, ''ministério da liberdade''



Atuar em cultura digital concretiza essa filosofia, que abre espaço para redefinir a forma e o conteúdo das políticas culturais, e transforma o Ministério da Cultura em ministério da liberdade, ministério da criatividade, ministério da ousadia, ministério da contemporaneidade. Ministério, enfim, da Cultura Digital e das Indústrias Criativas. Cultura digital é um conceito novo. Parte da idéia de que a revolução das tecnologias digitais é, em essência, cultural. O que está implicado aqui é que o uso de tecnologia digital muda os comportamentos.


 


A ética hacker



Vocês certamente sabem, mas não custa destacar: existe uma comunidade, uma cultura compartilhada, de programadores e pensadores, cuja história remonta aos primeiros experimentos de minicomputadores. Os membros dessa cultura deram origem ao termo ''hacker''. Hackers construíram a internet. Hackers idealizaram e fazem a World Wide Web.


 


A mentalidade hacker não é confinada a esta cultura do hacker-de-software. Há pessoas que aplicam a atitude hacker em outras coisas, como eletrônica, música e nas ciências humanas. Na verdade, pode-se encontrá-la nos níveis mais altos de qualquer ciência ou arte.


 


Hackers de software reconhecem esses espíritos aparentados de outros lugares e pessoas, e podem chamá-los de ''hackers'' também. A natureza hacker é independente da mídia em que o hacker trabalha. Mas a origem do movimento hacker nasce dos hackers de software, e nas tradições da cultura compartilhada, que é a essência filosófica da ética ''hacker''.


 


Hackers x crackers



Existe outro grupo de pessoas que se dizem hackers, mas não são. São pessoas que se divertem invadindo computadores e fraudando o sistema telefônico. Hacker de verdade chamam essas pessoas de ''crackers''. Hackers de verdade consideram os crackers preguiçosos, irresponsáveis, e não muito espertos. A alegação de que ser capaz de quebrar sistemas de segurança torna alguém um ''hacker'' é o equivalente a dizer que fazer ligação direta em carros torna alguém um engenheiro automobilístico.


 


A diferença básica é esta: hackers constróem coisas, crackers destróem coisas. Hackers resolvem problemas e compartilham saber e informação. Acreditam na liberdade e na ajuda mútua voluntária, tanto que é quase um dever moral compartilhar informação, resolver problemas e depois dar as soluções, para que outros possam resolver novos problemas.


 


Gil e o ministério



Eu, Gilberto Gil, cidadão brasileiro e cidadão do mundo, ministro da Cultura do Brasil, trabalho na música, no ministério e em todas as dimensões de minha existência, sob a inspiração da ética hacker – e preocupado com as questões que o meu mundo e o meu tempo me colocam, como a questão da inclusão digital, a questão do software livre e a questão da regulação e do desenvolvimento da produção e da difusão de conteúdos audiovisuais, por qualquer meio, para qualquer fim.


 


Mesmo diante de incompreensões passageiras, próprias das inovações, próprias das atitudes e das proposições que são não à frente de seu tempo, mas contemporâneas, sintonizadas com o tempo, eu e o Ministério da Cultura manteremos o nosso compromisso público com os assuntos que nós, e muitos cidadãos brasileiros, consideramos estratégicos e definidores de como é o nosso presente e de como será o nosso futuro.


 


E seguiremos este caminho, sempre prontos a transformá-lo enquanto caminhamos, sempre prontos a debater, negociar, mudar e mediar tudo que fizermos, porque assim é a vida numa democracia, assim é a vida em sociedade, desde que o mundo é mundo, e assim deve ser a política.


 


O poder das indústrias criativas



As indústrias criativas representam hoje, não apenas para o Brasil, mas para muitos países em desenvolvimento, o coração de suas chances de sucesso na globalização. Muitos se espantam quando lêem nas publicações da ONU que o valor global de mercado das indústrias criativas alcançará o montante de 1 trilhão e 300 bilhões de dólares ainda em 2005.


 


A indústria da música, do audiovisual, do design, das publicações, da web, do software, da fotografia, dos variados conteúdos culturais, da diversão, enfim, torna-se vital em vários países emergentes, que passam a ser produtores, e não apenas consumidores, dos bens simbólicos e materiais criativos.


 


O grande economista Celso Furtado, ex-ministro da Cultura do Brasil, dizia que desenvolvimento requer invenção e se constitui em ação cultural. Todas as inovações são elementos culturais. Todo o conhecimento, que é a chave da economia contemporânea, capaz de transformar processos e agregar valor a mercadorias, reinventando seus usos e costumes, é também cultural.


 


Propriedade e direitos



Outro desafio diante da inexorável realidade digital é o problema da propriedade intelectual. Na condição de artista, sinto na pele as vantagens e desvantagens de criar em um mundo em que a cópia, a clonagem e a recriação são tão simples, facilitadas pelas tecnologias digitais.


 


Meus discos são encontrados a R$ 5 em qualquer esquina, ou sem custo adicional na Internet. O lado bom disso é a difusão sem fronteiras e a possibilidade de trabalhos criativos que recriam a obra original. O lado ruim é que alguém, que não o artista ou a cadeia econômica, pode estar ganhando muito dinheiro, para não mencionar os agravantes relacionados à criminalidade que uma indústria clandestina pode ocasionar.


 


O desafio é pensar como resolver a questão autoral sem que isso atrapalhe o processo de compartilhamento, troca e evolução artística associado aos meios digitais. Como a indústria de música ou, cada vez mais, a do audiovisual, vai sobreviver à luz da realidade digital?


 


O avanço da distribuição de bens intelectuais pelos meios digitais é inexorável. Além disso, não se fala apenas em cópia, mas em clonagem, já que não há perda de qualidade. Considerar isso um atraso é estar circunscrito do ponto de vista comercial a uma linguagem analógica. O lado positivo disso tudo é a universalidade, a possibilidade das coisas serem conhecidas e tocadas sem fronteiras.


 


Uma agência para quê?



O setor audiovisual tem um impacto econômico significativo no Brasil e no mundo. As receitas obtidas pela exibição de filmes, venda de vídeos e DVDs, inserções publicitárias em televisão aberta e fechada, assinaturas de televisão fechada e produção audiovisual no país somam cerca de R$ 15 bilhões, ou 1% do PIB brasileiro. O potencial, porém, é muito maior.


 


A globalização torna fundamental, sob o ponto de vista cultural, econômico e geopolítico, que o Brasil tenha uma vitalidade e uma diversidade ainda maior como produtor, consumidor e exportador de conteúdo audiovisual. Por isso, o país precisa de uma agência abrangente, capaz de estruturar e desenvolver democraticamente o setor, maximizando seu potencial.


 


A proposta da Ancinav parte do princípio de que é necessário separar o tratamento legal e institucional que se dá às redes físicas e às plataformas tecnológicas, de um lado, e às atividades de produção e difusão de conteúdo audiovisual, de outro, estabelecendo que a nova agência tenha um papel complementar ao hoje exercido pela Anatel.