Por que é preciso uma CPI da Tragédia do Metrô
Se os paulistanos não tiverem força para impor a CPI, carregarão para sempre uma parte da culpa. A tragédia foi o resultado do modelo de gestão atropelada da coisa publica implantado na era tucana e que se repetirá em outras obras, se não for feita esta C
Publicado 08/02/2007 14:29
I- A tragédia e suas circunstâncias políticas
Nossa mídia, tão zelosa do interesse público quando emulou e realimentou três CPIs contra o governo Lula durante quase dois anos, não está fazendo nenhuma questão de uma CPI do Metrô. Não só não a está pedindo, como relega o noticiário sobre a resistência dos tucanos à CPI a pequenas notas nas páginas internas do caderno de cidade. Será para preservar o governador Serra, ajudando-o a manter o controle das investigações? Ou para evitar uma visão crítica das Parcerias Público-Privadas?
Se os paulistanos não tiverem força para impor a CPI, carregarão para sempre uma parte da culpa. A tragédia não aconteceu por acaso e nem foi provocada pelas chuvas ou pelo solo. Foi o resultado do modelo de gestão atropelada da coisa publica implantado na era tucana e que se repetirá em outras obras, se não for feita esta CPI.
O Estadão recuou depois de perceber, nas suas primeiras reportagens, a pesada responsabilidade do tucanato pela tragédia e seus nexos com terceirizações, privatizações e parcerias publico privadas, tudo isso crias do neoliberalismo. Na Folha, felizmente, a palavra de ordem de minimizar o caso não resistiu à sua vocação cri-cri e a um furo de reportagem. O jornal voltou à carga, embora com um viés mais policial do que político, revelando relações de negócio entre Marco Antonio, gerente da construção da linha 4 do Metrô, e uma das empreiteiras. O gerente diz que eram relações anteriores à sua função atual no metrô. Mas foi afastado. O presidente do Metrô , apavorado, faltou ao encontro com os deputados na Assembléia Legislativa, prometido em troca deles não aprovarem uma CPI. Serra não quer falar do assunto. Alckmin fugiu para os Estados Unidos.
Juntando as informações isoladas até agora obtidas pela imprensa, especialmente pela Folha, e depois de conversar com engenheiros que entendem de obras públicas, um deles diretamente ligado ao controle de qualidades dessas obras, já é possível lançar a hipótese de que a principal causa da tragédia que matou sete pessoas foi um ambiente de trabalho no qual a palavra de ordem era “a obra não pode parar “.
Não parar em nenhuma hipótese e não chamar a atenção para os problemas parece ter sido a cultura dessa obra desde o seu início. Daí a falta de um plano de emergência e defesa civil em caso de desastre, que exigira mobilização pública, chamando muito a atenção. Dai o minimalismo na abordagem das rachaduras nas casas que vinham acontecendo há meses. Daí a falta de acompanhamento externo autônomo. Daí a tragédia que não precisava ter acontecido.
Mesmo que o desabamento fosse inevitável a partir de certo momento por causa de erros antecedentes, as mortes eram evitáveis. Está comprovado que decorreram quase dois dias entre as primeiras advertências da mãe terra, de que ela estava sendo agredida além da conta, e o desabamento principal. E pelo menos dez minutos entre o início do desmoronamento e o seu final, sem que nenhuma sirene fosse tocada e nenhuma rua bloqueada.
Na noite da quarta feira, quase dois dias antes do desabamento, foram medidos rebaixamentos nas paredes da futura estação Pinheiros da ordem de 2,5 milímetros, ainda não alarmantes, mas suficientes para a convocação de uma reunião dos engenheiros no dia seguinte para discutir o que fazer. A norma em toda a obra de engenharia frente a um quadro de instabilidade é parar tudo até a situação estabilizar-se. Os engenheiros decidiram reforçar o túnel com tirantes. Mas a obra não parou e nem foi dado nenhum alerta. “Caso não haja uma situação catastrófica, a recomendação é que se vá em frente mesmo” , disse o engenheiro da Themag, Tarcísio Barreto Celestino (Estado de S. Paulo, 19/01/07).
Na manhã seguinte, o dia da tragédia, houve grande extravasamento de lama do rio Pinheiros em direção à estação e aumento nas trincas da abóbada e nem assim os trabalhos foram suspensos. “Enquanto os operários faziam os furos para aplicar os tirantes, os instrumentos já apontavam 12 a 15 milímetros de recalque” (Estado de S. Paulo, 19/01/07). Essas informações foram confirmadas pelo relatório da Comissão Interna da Prevenção de Acidentes, publicado pela Folha (Folha de S.Paulo, 30/01/07). Mesmo assim, “novas detonações foram realizadas”, diz a Folha. Detonaram uma explosão,’as 8h22 da sexta, a apenas 10 metros do local crítico (Folha de S. Paulo, 30/01/07). Na tarde desse dia, ruiu tudo, enquanto as paredes ainda estavam sendo furadas para colocação dos tirantes de reforço.
Em nenhum momento a obra parou. O consórcio havia se acostumado a assumir riscos e esse era apenas mais um. Chamou muito a atenção dos engenheiros o valor elevado do seguro da obra (R$ 1,3 bilhões). Como se o consórcio tivesse desde o começo adotado uma estratégia de pagar um risco maior para poder assumir um risco maior. Seja para ganhar no tempo, seja para ganhar nos custos da perfuração, adotando o método das explosões na região em que houve o desabamento, em vez do tatuzão. A apólice cobre todos os riscos de engenharia, inclusive falhas de execução e erros no projeto. Isso não significa que o consórcio tenha deliberadamente aumentado os riscos, e sim que tinha consciência dos riscos elevados inerentes à estratégia adotada. Tudo isso precisa ser checado por uma CPI. Assim como a informação de que apesar do seu alto valor, a apólice de seguro reservava apenas R$ 20 milhões a indenizações de famílias prejudicadas (Folha de S. Paulo, 19/01/07).
Mas a tarefa mais importante e mais sutil da CPI é a de reconstituir o cenário de gestão da obra, especialmente as gestões de segurança e da qualidade técnica dos trabalhos e a cadeia de responsabilidades dessas gestões. O inquérito oficial encontrará muitas dificuldades.
Não se admirem se nem o IPT e nem o Instituto de Criminalística, as duas equipes técnicas que estão investigando, chegarem a resultados definitivos. Não se espantem se os inquéritos culparem as chuvas ou o solo, ou seja, a mãe natureza.
E por quê? Porque todas as empresas subcontratadas para a obra, assim como seus engenheiros, fixos ou autônomos, dependem das empreiteiras não só nessa obra, mas em outras em todo o país. Quanto à cúpula do tucanato que tomou as decisões de governo, a maioria é muito dependente dos financiamentos de campanha das empreiteiras. As empreiteiras são as maiores financiadoras de campanhas políticas. No Brasil, e no mundo. Também por isso é preciso uma CPI. Para chegar às razões estruturais do desastre: os nexos entre empreiteiras e financiamento de campanhas políticas.
II – Um roteiro para a CPI da Linha 4
Primeiro passo: mudar o conceito de CPI
Esta é uma boa oportunidade para recuperar a credibilidade das CPIs, abaladas pelos excessos da Câmara Federal, que além de quase instituir o macartismo no Brasil, acabou por confundir ainda mais os assuntos que deveria elucidar.
Uma CPI precisa se ocupar das causas sistêmicas e institucionais dos problemas; tratar de procedimentos que, mesmo não sendo ilegais, contribuíram para o desastre. Seu papel principal é o de propor mudanças na lei e nos regulamentos, e não o indiciamento de indivíduos por eventuais crimes cometidos. Isso cabe aos inquéritos da Justiça, que correm independentes e recebem, de qualquer forma, os resultados da CPI.
Apesar de ser um tribunal político, uma CPI não pode ignorar os direitos básicos de defesa e da presunção da inocência, caso contrário estará exercendo papel antieducativo, assim como não pode sobrepor a retórica aos laudos dos especialistas.
Segundo passo: analisar o contrato a preço fechado
Esta é primeira vez que o poder público contrata uma obra de grande porte a preço fechado no Brasil. Só esse detalhe já justifica que a CPI examine as implicações de um contrato desse tipo, nas condições brasileiras, de jure e de facto, especialmente do ponto de vista da segurança.
É preciso examinar as eventuais relações entre o contrato de construção a preço fechado com o consórcio Linha Amarela, e a Parceria Público Privada formada pelo governo estadual com o consórcio CCR para operar a linha amarela, já que duas das principais empreiteiras fazem parte dos dois consórcios (a Camargo Correa e a Andrade Gutierrez). Em especial, qual foi o cronograma desses contratos e como se deu a autorização para que a Andrade Gutierrez e a Camargo Correa entrassem no consórcio Linha Amarela numa etapa posterior à da licitação vencida.
No contrato de construção a preço fechado, o tempo parece ser o principal fator de redução de custos. Cada dia antecipado na entrega das chaves traz um ganho substancial para as empreiteiras, principalmente nos pagamentos às dezenas de empresas subcontratadas. Não nos espanta a relutância da Companhia do Metrô em entregar a íntegra os contratos à Promotoria Pública, apesar de sua insistência.
O contrato a preço fechado também induz ao menor rigor nas normas de segurança. Primeiro, porque cada regra a mais é um aumento de custo. Segundo, porque uma das razões desse tipo de contrato é justamente o desejo do poder público de não ter dor de cabeça com os problemas que sempre vão aparecendo numa obra de porte. Paga o preço combinado e quer a chave na mão no fim da obra. Trata-se de um tipo de contrato muito usado no exterior. Mas, em outros países, os controles sociais e técnicos são mais rigorosos.
Tudo indica que o controle da Companhia do Metrô resumia-se a acompanhar o ritmo da obra para sustar o pagamento caso estivesse muito lento, ou seja, também estimulava indiretamente a pressa e não a segurança ou a qualidade da obra. Examinar se o contrato previa auditoria externa independente ou não, se foram obedecidos todos os ritos de aprovação nas agências de controle, e se foram realizadas as audiências públicas.
A CPI precisa analisar como o contrato define as responsabilidades do poder público pela fiscalização e segurança. Nas negociações de indenizações, até agora, o poder público está ausente. Tudo se dá entre o consórcio e as vítimas. Onde está a responsabilidade do poder público? O contrato isenta o poder público de responsabilidades? Se isenta, como parece, isso é constitucional? Essa é uma questão central.
Terceiro passo: analisar os subcontratos com prestadores de serviços
O excesso de terceirização dilui cadeias de responsabilidade. A CPI precisa examinar se o contrato a preço fechado, que já é em si uma espécie de ‘metaterceirização’, proibia ou não a concessão de ‘bônus de desempenho’ nos subcontratos entre o consórcio Linha Amarela e suas fornecedoras e prestadoras de serviços.
Por essa prática, muito comuns em grandes obras, os fornecedores e prestadores de serviço recebem uma fatia da economia conseguida com ganhos de tempo ou de material.
Se o contrato a preço fechado não proibia os bônus e eles foram concedidos, é preciso investigar as implicações dessa prática na segurança. Ela pode ter contribuído para o relaxamento de regras ou nas margens de segurança no dimensionamento das obras. Para isso, é preciso examinar também as dezenas de subcontratos.
Quarto passo: analisar as causas materiais da tragédia
Houve um erro de engenharia: de construção ou de material, ou um pouco de tudo isso. Em engenharia, se há um desastre, há uma causa, mas o mais provável é que esse desabamento tenha sido provocado não por um único fato, e sim por uma sucessão deles, que foram sendo ignorados ou negligenciados devido ao clima que se criou nessa obra.
Generosa, a natureza foi avisando dias antes que estava incomodada. Mas foi ignorada. Não foram as chuvas e nem a qualidade do solo que levaram à tragédia. Particularmente, no caso da linha 4 do metrô, tanto a geologia do local do desastre quanto a hidrologia eram muito conhecidas (nota 1). Ali foram removidas extensas camadas de aluvião para a construção dar marginais nos anos 70. Pouco distante do local, dois túneis atravessam o rio Pinheiros.
Quem falar de chuva ou do solo está querendo engabelar. Além disso, quaisquer que sejam as dificuldades do solo, a engenharia existe justamente para enfrentá-las. Caso contrário, não era precisa a engenharia. O que deve ser investigado é a qualidade dessa engenharia, a começar pela matriz específica das sondagens feitas para essa obra; qual foi o seu planejamento e como ele foi executado; houve economia de sondagens para ganhar tempo?
O Brasil está na vanguarda de engenharia de concreto. A empresa encarregada desse pedaço do projeto já varou madrugadas revendo todos os seus cálculos e está segura de que não errou. As estruturas cilíndricas adotadas são indestrutíveis quando bem dimensionadas. E o trecho que começou a ruir é justamente o do teto da futura estação, de diâmetro maior, portanto com estrutura mais forte e mais trabalhado do ponto de vista de engenharia. Mas é preciso que uma empresa independente também reveja os cálculos.
Foi contratado o IPT. Mas o IPT não é rigorosamente independente. Primeiro, porque executou serviços de caracterização geológica exatamente no trecho da linha 4 em que se deu o desastre (nota 2). Não é impossível que um dos erros esteja justamente nos seus serviços? Segundo, porque, apesar da indiscutível qualidade de seus técnicos e da sua tradição de rigor técnico, o IPT está quase na mesma situação das empresas subcontratadas pelas empreiteiras, pois parte substancial de sua receita vem de serviços para terceiros.
As informações indicam que os equipamentos de sensoriamento eram de última geração, de boa qualidade. Níveis de água precisam ser continuamente monitorados, e água bombeada para fora; deslocamentos de terra acompanhados. Tudo isso exige sintonia fina. É preciso rever se as leituras eram feitas com a freqüência necessária, interpretadas por pessoas qualificadas e, principalmente, levadas a sério no gerenciamento da obra. Já se sabe que as rachadoras nas residências próximas às futuras estações Pinheiros e Três Poderes não eram levadas muito a sério. Sente-se um traço de prepotência na forma como o Consórcio trata esses moradores.
É improvável que tenha havido negligência na qualidade do material, porque nessa obra o concreto é projetado manualmente, formando-se camadas como numa cebola e, por isso, tem que sair da usina com o grau de aderência correto. Mas esse grau de aderência era monitorado com a freqüência necessária? E não é impossível que, mesmo com bom controle de qualidade da aderência, tenha havido imperícia na aplicação manual das camadas de concreto.
A Folha de S. Paulo diz que o Metrô ocultou laudos de um desmoronamento anterior na linha 4, no qual o teto rachou porque estava menos espesso do que o previsto no projeto (nota 3). Não é impossível que, dado o ambiente da obra, de ganhar tempo, não se esperava o necessário à secagem de uma camada, antes de aplicar a seguinte. Quando a prioridade é o tempo e não a segurança, nada é impossível.
Notas
1) Segundo o engenheiro Álvaro Rodrigues dos Santos, mimeo, 25/01/07;
2) Folha de S. Paulo, 17/01/07;
3) Folha de S. Paulo, 17/01/07.