Kucinski: ''A cultura do jornalismo brasileiro é da malandragem''

Bernardo Kucinski, um dos intelectuais mais importantes no cenário nacional, jornalista e professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP, é também autor de diversos livros e ex-editor da revista Veja. Participou como colaborador na

por Dida Egen


 


Como foi o comportamento da mídia durante as eleições de 2006?
BERNARDO KUCINSKI: Eu não tive tempo para fazer uma sistematização um pouco mais explicativa, mas a mídia tentou influir na campanha e como a mídia é homogeneamente conservadora, tentou influir basicamente para um lado só, com poucas exceções. Houve um ativismo da mídia para forçar um segundo turno e a mera falta de imparcialidade. E talvez ao contrário de todas as anteriores, em certo sentido ficou uma campanha em que se o Lula ganhasse a mídia seria derrotada e se o Lula fosse derrotado a mídia seria vencedora. Ou seja, nós nos aproximamos de forma ainda muito distante daquela situação da Venezuela, porque a nossa sociedade é muito mais moderna, mais complexa, mobilizada, organizada, heterogênea, a própria mídia é muito ampla no Brasil. Mas houve uma aproximação dessa situação e que é diferente também da situação da campanha de 1989, onde a Globo tentou forçar uma vitória do Collor de Mello; porque ali foi uma coisa de um pequeno grupo de poder, dos donos da Globo que acham que, além de informar, devem decidir qual será a história do Brasil. Desta vez, acho que foi uma coisa do conjunto dos jornalistas, desde a base até o topo.


Os jornalistas, como categoria, foram a campo para execrar o Lula. É um fenômeno interessante, eu nunca imaginei que chegaria a uma situação desse tipo. Ele reflete por um lado a perda de prestígio da esquerda no Brasil representada pelo PT devido a hipocrisia da principal bandeira do PT, da ética na política. Levou a uma perda em poucos meses, de todo um capital de posições hegemônicas que foi adquirindo junto a classe média, junto aos estudantes durante quase 20 anos, perdeu isso em poucos meses. Por outro lado, também mede a deterioração do pensamento da própria imprensa, não só do pensamento, mas do fazer jornalístico, as duas coisas andam casadas. Quer dizer, a imprensa foi se tornando cada vez mais reduzida no seu fazer, cada vez mais um noticiário baseado no “falou o que?”, “disse o que?”, pouca reportagem, pouca investigação, não há memória, muito unilateralismo. Em toda crise do mensalão a mídia era praticamente pautada pelos porta-vozes do PFL. As manchetes eram as falas do PFL. Um sinergismo, mas que tem origens diferentes. E o resultado geral é bastante assustador, ele é um resultado que deve nos fazer refletir muito sobre a situação que nós nos encontramos hoje e há muita propensão ao linchamento, qualquer pessoa hoje é vítima disso.


E a presunção da culpa que está sendo bastante utilizada, como ficam os direitos do cidadão garantidos pela Constituição da presunção da inocência?
BK – Eu acho que isso não foi um problema puramente político e ideológico. Eu acho que é um problema cultural que tem muito a ver com o próprio jornalismo. Ele foi desenvolvendo essa postura da acusação, ele está aí para acusar, ele não está para elucidar. Desde o Collor de Melo, já houve um fenômeno de linchamento, como disse o Luis Nassif, essa coisa vem de longe, o episódio da Escola Base não foi um fato isolado, ele aconteceu porque já havia um clima de linchamento. Eu fico observando matérias que não são necessariamente relacionadas com política, onde toda narrativa é feita de acusação.


 


Por que acontece esse fenômeno?
BK – É um fenômeno cultural, o tempo todo vemos matérias construídas em cima da busca de uma relação imoral. Mas essa relação não existe necessariamente, nunca há um crime definido, tipificado, e são manchetes todo dia em todos os setores, constitui-se numa maneira de ver o mundo. Hoje, o jornalista brasileiro vê o mundo como um conjunto de pessoas que procuram sempre tirar vantagens de situações, há um moralismo na mídia, e as matérias são todas assim. Com especulações de quanto ganha um deputado, mas você nunca vai ver uma matéria sobre quanto um jornalista acumulou de riqueza e quanto eles ganham. Por exemplo, um jornalista que ganha R$ 40 mil dizer que um deputado que ganha R$ 12 mil, ganha demais. Eu não entendo onde estão os critérios, o que está se cobrando, o que é que isso está substituindo em termos de narrativa? Mas é um fenômeno de decadência geral. Outra coisa que está acontecendo também é a fuga das discussões honestas e substantivas. Tudo é transformado em argumento falacioso, numa acusação, procuram-se motivos subalternos para as posições e está difícil discutir questões substantivas. Eu fiz uma crítica a maneira como a mídia cobriu a proposta do grupo de trabalho sobre comunicação, depois eu me dei conta que eu tinha usado os mesmos truques que eles estavam usando. Por isso que o fenômeno é cultural, ele atinge todo mundo, até os que têm consciente do que está acontecendo. Nós precisamos dar uma parada e pensar: Nós queremos ser pessoas da idade da razão, que usam uma razão argumentativa, que usam os fatos, mantêm suas divergências, ou nós vamos virar uma palhaçada, em que só se acusa. É essa situação em que se chegou hoje. Nós temos um problema no jornalismo, na política, na esquerda. Eu já estou cansado disso.


 


Esse fenômeno é uma tendência ou é circunstancial?
BK: Não sei, eu sou um fanático do jornalismo. Eu não sou do discurso de que o jornalismo não presta. Muitas das coisas erradas que acontecem são inerentes ao ato de informar, você informa, você erra, depois você corrige. A informação jornalística não é acadêmica, nem um historiador é exato, muito menos jornalista. Basicamente ele precisa ser honesto, ele precisa tentar ao máximo possível chegar a verdade, ser honesto com ele, com os leitores, com a fonte. O que está acontecendo no jornalismo brasileiro, é que os jornalistas deixaram de ser honestos, viraram todos malandros. A cultura do jornalismo brasileiro é da malandragem. O sujeito vai fazer uma entrevista, ele não quer saber o que você pensa, ele quer montar uma armadilha, e se ele consegue esse objetivo, ele volta orgulhosíssimo para a redação. A relação deixou de ser uma relação civilizada, dialogada, é uma relação dissimulada. E por isso muita gente foge dos jornalistas. Eu ainda acho que não é uma tendência no sentido secular. É uma tendência, no Brasil está sendo mais grave, mas eu acho que ela se reverte e tem tendências no sentido contrário, principalmente através da internet. Você tem hoje uma profusão de informações, debates e intervenções do público leitor através da Internet.


 


O senhor acha que a Internet é um espaço democrático?
BK – Ela é por sua natureza dinâmica, pois o jornal impresso ainda não redefiniu sua função. Desde que apareceu a TV ele ficou muito preso a sua forma clássica de registrar o que aconteceu no dia anterior. O papel de registro que ao mesmo tempo era a notícia, mas depois ficou só o registro porque a notícia já saiu à noite no jornal da TV, sai na Internet na mesma hora. Sua função será de um jornalismo opinativo e de registro, um arquivo. Mas certamente isso não basta para o jornal. Na história das diferentes mídias o jornal foi o meio de informação política e social que foi hegemônico durante mais tempo, desde o século XVII até o século XX, 250 a quase 300 anos que o jornal dominou a cena urbana. Até que surge o cinema, a televisão e o rádio, sendo que cada um deles teve um período de hegemonia muito curto, já convivendo com os outros, então esse prestígio que o jornal ainda tem até hoje, deriva um pouco disso. Ele é a forma histórica assumida pelo jornalismo, institucionalizada, mas do ponto de vista do cotidiano da política ele está perdendo o poder, na formação da percepção das pessoas, no dia-a-dia ele perde o poder. Ele ainda fala em nome da sociedade mais do que os outros, mais forte. Mas, no cotidiano das pessoas, essa eleição mostrou que tem pouca influência. Por que as pessoas têm informações de vários veículos diferentes.


 


Existe imparcialidade no jornalismo brasileiro, e é realmente necessário ser imparcial?
BK: A imparcialidade tem dois aspectos, do ponto de vista teórico não existe a imparcialidade, a gente não trabalha mais com conceito nem de imparcialidade, nem de objetividade. O jornalista não pode ser imparcial frente a injustiça. Eticamente não é correto, ele tem que ser eqüitativo. O jornalista tem que ficar naturalmente ao lado dos menos poderosos, é ali onde ele pode ter uma função importante. Às vezes até decisiva, ele é o único que pode nessa situação fazer uma diferença, frente às violações dos direitos humanos, ao abuso de poder econômico, à prepotência. É aqui que está o ‘sal’ da terra do jornalismo. Não existe a imparcialidade. Do ponto de vista da objetividade, também ela não existe, porque o jornalista estará sempre vendo os fatos através dos olhos dele, da mente dele. Trabalhamos hoje com os conceitos de veracidade, a versão da verdade trabalhada com o maior número de informações, honestidade de propósitos, mais bem organizadas, segundo um certo enfoque. E também o de honestidade, você não deve ser imparcial, mas você deve ser honesto. Você não pode ser desonesto intelectualmente, é essa que é a questão do jornalismo.


 


E a questão da ética no jornalismo?
BK: Os jornais historicamente são ideológicos, como os conservadores, católicos, laicos, de direita, de esquerda. Então não são veículos ideologicamente neutros. O que não pode, são os veículos oriundos de uma concessão pública, assumirem posição partidária e serem flagrantemente unilaterais. O Estado concede às rádios e televisões o direito à transmissão, por isso esses veículos têm de obedecer um estatuto diferente dos demais veículos que são privados, não devem assumir posição político-partidário. Nas condições concretas dadas, o Mino Carta desempenhou um papel da contra-corrente, desempenhando um papel muito mais importante do que qualquer outro veículo. Todos os outros estavam dizendo as mesmas coisas e ele teve a coragem, a ousadia de dizer que não era bem assim. Essa contribuição que ele deu é vital. Então nesse sentido a cobertura da revista Carta Capital, assumiu um valor único, um valor que não teria antes. Não é uma questão de ser ou não imparcial, ser ou não ser ético. Eu achei muito boa a posição do Mino Carta, eu fiquei até emocionado com essa atitude. Ele já havia demonstrado em outras ocasiões um entendimento do jornalismo muito melhor do que essa molecada que anda por aí. Do que é jornalismo, o que é o espírito do jornalismo. E nesse momento ele teve esse papel de ser emblemático desse espírito, não foi o único, mais foi o mais importante. Todo o resto é tudo lixo. Esses menininhos que ficam fazendo provocaçõeszinhas, isso não é nada. O que importa é esse enfrentamento maior dos poderosos. Acho que no começo foi difícil, mas outra medida da importância da posição que ele assumiu foi se legitimando e depois se tornou uma coisa reconhecida, que ele desvendou um lado de toda essa história que  ninguém queria falar.


 


E o dossiê da mídia, até onde vai?
BK: Eu acho que há um mal estar, mas há uma discussão hoje. Eu sou muito cético quanto ao desenvolvimento disso porque é um fenômeno cultural mais profundo, de desgaste da esquerda, de falta de uma mensagem da esquerda, de abandono. A esquerda foi abandonada por toda uma geração, que já era difícil dela ter ao seu lado e no entanto teve num certo momento. Eu sou jornalista há mais de 30 anos, eu sempre tive uma visão muito negativa da nossa categoria, à partir de outros episódios, comportamentos de manada que sempre me assustaram. Claro que tem dezenas de jornalistas excelentes, de veículos excelentes. A imprensa brasileira ainda é um mundo muito pequeno, são sempre aquelas 15, 20 pessoas que mandam em todas as redações, que ficam se revezando, sempre os cargos de confiança são daquele mesmo grupo. E eu sou muito cético.


 


O senhor é a favor do Conselho Federal de Jornalismo?
BK: Eu tenho uma discordância muito grande com a FENAJ e toda a visão que ela tem de categoria. Acho que muito do que está acontecendo é culpa da FENAJ, da forma corporativa como ela trata os assuntos da categoria, dessa coisa do diploma, de ficar perseguindo jornalista que não tem diploma, é um escândalo. Como se fosse o papel do sindicato decidir quem pode ser jornalista. Quando o papel do sindicato é defender quem é jornalista. Eu sinto que as contradições devido a esses equívocos vão se agravando e contribuíram para essa desmoralização da profissão. A proposta da FENAJ era uma proposta pela qual ela tentava assumir um pouco mais de controle sobre o mercado, sobre a categoria, não o controle no sentido negativo, com um pouco mais de acompanhamento. Mas eu acho que eles formularam de forma indevida. A grande imprensa não quis discutir a proposta e fez o possível para impedir que fosse discutida, nem essa, nem da ANCINAVE. A imprensa também está revelando um viés autoritário que é assustador.


 


O senhor foi um dos colaboradores na elaboração do Programa de Governo para Comunicação, em algum instante esse programa contempla essas carências da nossa imprensa?
BK – Minhas proposta foram unilateriais. E não entrei muito nas áreas que eu não conheço, só fiz algumas propostas naquilo em que eu tinha um pouco mais de inserção que é a mídia imprensa. Eu propus que se fizesse o recadastramento das concessões, um mapeamento do setor, é uma medida elementar. Não fizeram o recadastramento do INSS? Eu propus que se criasse uma secretaria especial junto a Presidência da República de inclusão digital e democratização da mídia, especialmente para ver se desencava esse dinheiro e aplica na inclusão digital que são R$ 3 milhões ou R$ 4 milhões, que já foram pagos pela sociedade brasileira e estão congelados, é um escândalo isso não ter sido feito. Tinha que ter Internet em todas as escolas. Elas realmente promovem essas causas e como são ligadas ao Presidente elas têm uma capacidade de agilizar. Além disso, essa secretaria seria encarregada de definir políticas públicas para estimular a imprensa pequena, alternativa, imprensa de interior.


 


Qual o futuro do jornalismo?
BK: O mundo do jornalismo é um mundo muito grande, e isso está mudando muito. Existem formas de jornalismo ativista, onde o jornalismo não é o importante, e sim o ativismo. Eu acho que tinha que estudar melhor essas formas novas de jornalismo cívico, jornalismo público, jornalismo de resultados que assume várias formas em vários países, talvez seja mais relevante do que essa forma clássica.


 


E as escolas de comunicação têm responsabilidade nisso tudo?
BK: As escolas não têm muito a ver com o jornalismo. O curso de jornalismo é um curso barato, atraente, ele engana bem. Não se aprende nada de muito profundo, mas ele acaba sendo útil em várias atividades. É um curso generalista. Porque o jornalista é aquele que sabe falar bem, sabe ler, sabe relacionar coisas. Eles estão formando jovens para um mundo onde a comunicação está em tudo, mas eles não estão formando jornalistas. O jornalista não se forma na escola, a escola pode ajudar muito, especialmente se existir uma escola referencial, que tenha um corpo de doutrina, e nós temos no Brasil duas ou três escolas que se aproximam disso. Os cursos são úteis, socializam os jovens, dão diploma para um monte de gente, mas não sabem bem o que ensinar e não sabem para que eles existem.