Robert Fisk: Outro “grande dia” para o Iraque
Assim, o antigo aliado dos Estados Unidos foi sentenciado à morte por crimes cometidos quando era o melhor amigo de Washington no mundo árabe. Por Robert Fisk, para o jornal britânico The Independent.
Publicado 07/11/2006 11:49
Os americanos sabiam tudo sobre suas atrocidades. Mas ontem lá estávamos nós, declarando que a sentença representava “um grande dia para o Iraque”, segundo a Casa Branca.
Foi também o que disse Tony Blair quando Saddam foi desentocado do buraco em que estava escondido, em dezembro de 2003. E agora vamos enforcá-lo. Outro grande dia.
É difícil conceber um monstro mais merecedor do cadafalso, de preferência para execução às mãos do carrasco que seu regime mesmo empregava, Abu Widad, responsável pelas execuções da penitenciária de Abu Ghraib — que costumava golpear suas vítimas na cabeça com um machado, caso ousassem condenar o líder do Baath antes de serem enforcadas.
Mas Abu Widad terminou na forca, em 1985, depois de descobrirem que foi subornado para enforcar um inocente, em lugar do verdadeiro condenado.
O desastroso inferno que infligimos ao Iraque é tão horrível que nem mesmo podemos sustentar essa afirmação. A vida é pior, agora. Ou melhor, a morte é um destino mais freqüente para mais iraquianos do que era no caso dos curdos e xiitas nos tempos de Saddam. Por isso, não podemos alegar superioridade moral nenhuma. Nós apenas praticamos abusos sexuais contra prisioneiros, assassinamos alguns suspeitos e praticamos alguns estupros, além de termos invadido ilegalmente um país, o que custou ao Iraque apenas 30 mil vidas, nos cálculos de George W. Bush.
Saddam era muito pior. Não seremos levados a julgamento. Não seremos enforcados. “Allahu Akbar”, bradou o homem execrável. “Deus é grande.” Não deveria nos surpreender. Foi ele que insistiu que essas palavras fossem inscritas na bandeira iraquiana, a mesma bandeira que hoje tremula sobre o palácio do governo que o condenou depois de um julgamento no qual o genocida iraquiano foi formalmente proibido de descrever sua relação com Donald Rumsfeld, hoje secretário da Defesa de George W. Bush. Lembram-se daquele aperto de mão? E Saddam tampouco pôde falar do apoio que recebeu de George Bush pai.
Eis algumas das coisas sobre as quais Saddam não pôde depor: vendas de produtos químicos, tão repulsiva e que tanto incomodava Bush filho e lorde Blair de Kut al Amara quando decidiram depor Saddam em 2003 — ou terá sido 2002? Em 25 de maio de 1994, a Comissão de Assuntos Bancários, Habitação e Assuntos Urbanos do Senado americano divulgou relatório sobre as exportações de produtos químicos e biológicos de possível uso bélico pelos Estados Unidos ao Iraque.
Essa foi a guerra que levou à libertação do Kuwait por nossas forças, em 1991, e o relatório informava ao Congresso sobre as vendas de agentes biológicos produzidos por empresas dos Estados Unidos, com aprovação do governo americano.
O relatório ainda afirma que os EUA forneceram a Saddam material licenciado de “duplo uso”, que auxiliou no desenvolvimento dos programas de guerra química, biológica e de mísseis iraquianos.
Entendo perfeitamente que não era possível permitir que Saddam falasse a esse respeito. John Reid, secretário do Interior britânico, disse que o enforcamento de Saddam era “a decisão soberana de um país soberano”. Graças a Deus ele não citou as 200 mil libras em tiodiglicol, um dos dois componentes do gás mostarda, que exportamos ao Iraque em 1988, e outras 50 mil libras da mesma substância vendidas em 1989.
Também enviamos cloreto de tiodiglicol ao Iraque em 1988, ao preço de apenas 26 mil libras. Eu sei que esse componente poderia ser usado para produzir tinta para esferográficas e corantes para tecidos. Mas trata-se do mesmo país, o Reino Unido, que oito anos depois se recusaria a vender vacinas contra difteria às crianças iraquianas, sob a alegação de que elas poderiam ser usadas para produzir armas de destruição em massa.
Nós, no Ocidente, mantivemos o silêncio quando Saddam massacrou 180 mil curdos durante a limpeza étnica de 1987 e 1988. E será que nos cabe ousar falar de nossa traição aos iraquianos que tanto amávamos quando invadimos seu país? Se o fizermos, teremos de condenar Saddam pelo massacre de incontáveis xiitas inocentes, além dos curdos, depois que os primeiros encetaram uma rebelião contra o regime baathista a nosso pedido específico.
Milhares de pessoas morreram porque as traímos e deixamos que combatessem as hordas de Saddam sem ajuda. “Tumultos” foi a palavra que o infame “dossiê da enrolação” de lorde Blair usou para descrever essas atrocidades, em 2002, porque classificar a situação como um levante (o que de fato era) nos forçaria a questionar quem foi o responsável por provocar esse banho de sangue. A resposta? Nós, os britânicos.
Mas agora demos ao povo iraquiano pão e circo, o enforcamento de Saddam. Impusemos justiça ao homem cujo país invadimos e fizemos se dividir. O estranho é que o Iraque hoje está tomado por assassinos, estupradores e torturadores.
Muitos trabalham para o atual governo, que apoiamos. Eles não serão julgados. Nem enforcados. Essa é a extensão do nosso cinismo. Da nossa vergonha.
Em algum momento a justiça e a hipocrisia já estiveram unidas de forma tão obscena?