Mostra de Cinema de SP assume tom marcadamente esquerdista
Por André Cintra
As principais sinalizações da 30º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em cartaz desde quinta-feira (19/10), indicam uma programação mais politizada. Não que o evento deixe de lado sua principal marca – a diversidade -, constat
Publicado 23/10/2006 17:13
Um senão: ainda que haja filmes ruins aos montes, vale a curiosidade de encarar, sem preconceitos, a modesta produção de países como Peru ou Cazaquistão. Fazer filmes em nações sem tradição cultural é uma verdadeira proeza – e o resultado pode surpreender. Mas é preciso arriscar – coisa que os cinéfilos da mostra fazem com mais naturalidade que o espectador médio, acostumado à infantilização de Hollywood.
Justamente por ter ajudado a formar uma geração de espectadores mais críticos, a mostra se permite, neste ano, um tom marcadamente esquerdista. E talvez não seja coincidência que esse aspecto sobressaía em ano de eleição presidencial no Brasil – e de maior resistência antiimperialista no mundo.
Você poderá ver ficções despretensiosas e filmes açucarados, mas o que está em evidência é o chamado cinema político. Uma das retrospectivas traz produções italianas filmadas nos anos 60 e 70 – época em que a Itália ainda contribuía, decisivamente, com filmes reflexivos. Hoje, o país de Fellini, Visconti e Rosselini vive uma entressafra evidente, tendo de esperar por longas dos velhos cineastas.
Esse cinema que a Itália legou é uma jóia até hoje interessante. A mostra traz algumas de suas melhores obras, como A China Está Próxima, A Classe Operária Vai ao Paraíso, Feios, Sujos e Malvados e Sacco e Vanzetti.
O ponto de partida
Outra amostra esquerdista se deu na cerimônia de abertura. Os dois filmes que inauguraram o evento – Eu Quero Ser Piloto e Os Estados Unidos contra John Lennon – situam-se num campo ideológico próximo.
O primeiro é um curta-metragem de 12 minutos, criado por Diego Quemada-Diez. Centra-se num poema feito pelo próprio cineasta e narrado por um garoto de 12 anos, Omondi, que mora na favela africana. O sonho do menino é ser piloto – porque voar, ele pensa, é a melhor forma de estar longe do inferno da miséria.
O poema abusa um pouco da caricatura e do “politicamente correto”. Às vezes, parece mesmo que o filme é um desses comerciais veiculados pelas Nações Unidas para arrecadar fundos contra a fome. Compensa pelo posicionamento político avançado, mais do que pelas modestas qualidades cinematográficas.
Paranóia
A surpresa da abertura foi mesmo Os Estados Unidos contra John Lennon, da dupla David Leaf e John Scheinfeld. É um documentário com excelente apuração – cenas inéditas, vasta busca em arquivos do FBI, diversos depoimentos. A narrativa também se esforça para ser agradável e até tocante. Tudo para contar a perseguição de Nixon e do FBI a Lennon, o mais polêmico dos quatro músicos dos Beatles.
Há uma tese no documentário: o encontro e o casamento com Yoko Ono catalisaram como nunca o espírito contestador de Lennon. As letras de suas músicas ficaram ousadas, ao pedirem igualdade, paz e até revolução. O novo Lennon, bem menos comercial que os Beatles, atraiu a atenção de ativistas americanos, notadamente em temas como a igualdade racial e o fim da Guerra do Vietnã.
A reação foi à moda republicana: Nixon pediu ao FBI uma investigação contra o beatle, cujas intenções principais eram dar-lhe a pecha de imigrante desnaturado, incivilizado e drogado. A deportação de Lennon é um escândalo à parte – mas você precisa ver o filme para saber os detalhes sórdidos. Há entrevistas com Yoko, amigos de Lennon, jornalistas, ex-funcionários do FBI, o ex-governador McGovern e até intelectuais progressistas, como Gore Vidal, Noam Chomsky e Tariq Ali. Um filmaço. Só escorrega ao edulcorar demais a relação entre Lennon e Yoko.
Num tempo em que as mais rentáveis salas de cinema praticamente evitam produções alternativas e brasileiras, a “esquerdização” da mostra é uma ótima notícia. Pelo menos em São Paulo, nenhum outro evento artístico proporciona tantos e tão interessantes pontos de vistas políticos.