A crise política, segundo Marquês de Sade
Peça do grupo Satyros, em cartaz até junho em São Paulo, faz conexão entre os porões corruptos do poder e o clássico romance “Os 120 Dias de Sodoma”, escrito pelo Marquês de Sade. Leia crítica de
Publicado 28/05/2006 18:26
Se na França os cambalachos escusos dos poderosos de plantão resultaram em uma revolução, na opinião de Rodolfo García, que assina a adaptação e a direção da peça, por aqui a crise, até o momento, só teve resposta por meio da apatia coletiva, sentimento que somou peso na decisão de encarar a empreitada de trabalhar com um texto tão polêmico: “O teatro não pode permanecer indiferente a um dos períodos mais turbulentos da história política recente e encontramos na obra de Sade várias semelhanças com o momento atual, por isso aceitamos o desafio”, observa García.
Mas, a peça não se fixa a nomes, datas ou a fatos pontuais. O imbróglio político do momento, somado ao texto corrosivo de Marquês de Sade, tornaram-se canais para uma reflexão ainda maior, não apenas sobre nossos horizontes mais próximos, mas também sobre valores que perpassam, inclusive, os limites políticos. “O objetivo não é fazer uma conexão simplista com os fatos atuais”, explica García. “Falamos de uma condição básica do ser humano, ou seja, satisfação pessoal e destruição do que não nos dá prazer”, completa.
Escola de libertinos – Inspirado na obra clássica de Marquês de Sade “Les 120 journées de Sodome”, a montagem de “120 Dias de Sodoma”, faz parte da trilogia sadeana que o grupo Satyros iniciou anos atrás com “Filosofia na Alcova” e que deve ser concluída com “Julieta de Sade”, em junho. Considerada pelo próprio Sade uma de suas criações mais complexas e polêmicas, a história narra a insana idéia de quatro libertinos, ligados ao poder vigente, de submeter jovens virgens aos seus mais bizarros desejos. Por trás da trama, a estrutura do pensamento filosófico de Sade, segundo a qual as paixões poderiam ser divididas em quatro classes: simples, complexas, criminosas e assassinas.
Por suas idéias libertinas e em conseqüência de uma vida regada a todo tipo de orgias, Sade, embora filho de uma rica família da aristocracia francesa, passou quase metade de sua vida entre presídios e hospícios. Aliás, foi em um de seus exílios, em uma cela da Bastilha, entre outubro e novembro de 1785, que escreveu “120 Dias de Sodoma”. Com parcos recursos, o manuscrito foi escrito em um rolo de papel de 12 metros de comprimento. O romance, por seu conteúdo subversivo, foi publicado clandestinamente, mas amargou quase dois séculos de proibição e silêncio.
Por suas imersões no pântano perigoso das perversões humanas, a adaptação do romance de Sade apresentou vários obstáculos, entre eles, encontrar um elenco disposto a dialogar com a obra que exigiria cenas de conteúdo fortíssimo com violência sexual, estupro, sodomia, escatologia, torturas físicas e mentais, e claro, a exposição do corpo nas várias cenas de nudez, durante quase todo o espetáculo. A atriz Gabriela Fontana aceitou o desafio, mas conta que enfrentou inúmeras dificuldades. “Precisava estar totalmente disponível e inteira para a peça, pra isso tive que enfrentar alguns fantasmas, por exemplo, perder o pudor que sempre tive com meu corpo e também esquecer meus próprios valores, ao menos durante a peça, pois muito deles são derrubados pelo autor”, revela a atriz.
A praça é nossa – O grupo Satyros, criado em 1989, por Ivan Cabral e Rodolfo Gárcia Vazquez, ocupa hoje duas salas de espetáculos na praça Roosevelt, bem no centro nervoso da capital paulista. A região que há bem pouco tempo era conhecida pela violência e pelo intenso tráfico de drogas, com a presença dos vários teatros, respira hoje outros ares. A convivência harmoniosa entre intelectuais, travestis, atores e os tantos outros personagens que circulam pelo lugar inspirou uma homenagem celebre, assinada pela alemã Dea Loher, que ficou impressionada pela estranha simbiose do lugar.
A peça “A Vida na Praça Roosevelt”, da escritora e dramaturga alemã, montada em 2005 pelo grupo Satyros, rendeu à Gárcia um premio Shell pela direção do espetáculo e também a aproximação com a Alemanha. Enquanto a trupe sadeana prossegue sua temporada em São Paulo, o elenco dessa outra peça, seguiu na semana passada, com os diretores Rodolfo García e Ivan Cabral para uma série de apresentações ao publico alemão. “Eles estão com uma grande expectativa em torno de nosso trabalho, querem saber como a cultura substituiu a violência nas calçadas da Roosevelt”, analisa García. “Também estão curiosos para ver como respondemos a este texto, escrito por uma das maiores dramaturgas alemãs vivas”, completa. Dea Loher ganhou recentemente o Prêmio Brescht de Teatro.