Filme rodado no Brasil surpreende Festival de Cannes
"Sonhos de Peixe" do diretor russo Kirill Mikhanovsky, conta num lugarejo brasileiro, Baía Formosa, a história de um triângulo amoroso envolvendo o pesacador Juce, sua amada Ana e o rival, um motorista de buggy com boa dose de crític
Publicado 27/05/2006 14:02
Kirill Mikhanovsky, o diretor russo criado nos Estados Unidos, que nunca morou no Brasil, mas fala português, explicou, em inglês, que a idéia do filme nasceu de uma visita ao Rio Grande do Norte como turista há alguns anos. Daí, foi conseguir financiamento (setecentos e cinqüenta mil dólares, numa co-produção entre Brasil e Estados Unidos), contratar técnicos brasileiros (mais baratos do que os estrangeiros) e desembarcar no nordeste, mais especificamente no povoado de Baía Formosa, para usar a realidade dos moradores locais como enredo.
O resultado é um filme que deu certo. Preparado em menos de cinco semanas, filmado em disputa com a meteorologia, por um diretor que declarou no festival ter arrependido-se de escalar atores profissionais para o elenco (fazendo imaginar o ambiente de trabalho que deve ter reinado na filmagem), “Sonhos de Peixe” consegue traçar um retrato tocante sobre o dia-a-dia dos pescadores desse vilarejo – e de tantos outros semelhantes no litoral nordestino.
Acompanhamos a realidade do protagonista, Juce, pescador, que mergulha a profundidades de trinta metros para capturar lagostas e raias, sem qualquer equipamento de segurança ou treinamento especializado. Ele sonha em ter seu próprio barco, do qual constrói maquetes que batiza de Ana, a mulher que almeja e disputa com um motorista de buggy do povoado.
A trama se concentra no triangulo amoroso, mas sem negligenciar os aspectos econômicos e sociais do ambiente em que vivem. Seja pela seqüência de negociação entre os pescadores e o comprador de peixe que os explora, seja pelas cenas em que famílias inteiras se reúnem em torno da televisão para assistir à novela, Mikhanovsky demonstra um olhar critico e sensível, de quem sabe onde quer chegar em termos de crítica social, mas sem se tornar panfletário.
O som é outro grande tesouro do filme. Ele tem papel fundamental na captação desse ambiente e os mais desligados podem perceber sua força nos créditos finais, quando a banda de som acompanha o letreiro em fundo preto. Como declara o diretor ao final da sessão, agradecendo aos que haviam ficado até o final dos créditos, o ambiente sonoro de “Sonhos de Peixe” tem vida própria, poderia ser um filme à parte.
“Sonhos de Peixe” é, acima de tudo, um retrato humano de um jovem que, como todos os demais, sonha. José Maria Alves, o pescador que interpreta Juce e veio a Cannes acompanhando o filme, declarou que o personagem guardava muita semelhança com ele próprio e sua realidade quotidiana em Baia Formosa. E quando o vemos, num coquetel de lançamento do Funcine, no dia seguinte, em Cannes, abordando o Ministro Gilberto Gil para realizar uma foto com o artista, é fácil "pescar" vestígios do Juce que vai à cidade comprar o maior televisor existente para conquistar Ana.
Essa última etapa do roteiro talvez não fosse necessária e o filme sobrevivesse bem (e até melhor) se terminasse seu relato com o batismo de "Ana", o barco de Juce, no mar. A grande empreitada da televisão dá à historia um tom messiânico do qual ela poderia abster-se.
O diretor russo declarou que fazer o filme foi muito mais um exercício de absorção do que de imaginação, a riqueza de “Sonhos de Peixe” estaria no próprio povoado de Baia Formosa. Mas nada disso retira o grande mérito de Mikhanovsky, que, ainda quedetentor de um olhar inevitavelmente estrangeiro, não caiu na armadilha do retrato pitoresco de um povoado do Brasil.