Em carta, Genoino faz auto-crítica e explica recolhimento

O ex-presidente nacional do PT José Genoino divulgou hoje (18), em seu site (www.genoino.org), uma longa carta dirigida aos petistas em que coloca sua versão para a crise política que atingiu o part

O ex-presidente nacional do PT José Genoino divulgou hoje (18), em seu site (www.genoino.org), uma longa carta dirigida aos petistas em que coloca sua versão para a crise política que atingiu o partido no ano passado. Genoino retoma sua história de vida e sua trajetória partidária, elenca erros cometidos pelo partido durante sua gestão na presidência e condena a exploração de tais equívocos por "setores que sempre se opuseram ao projeto político do PT", o que, segundo a carta, levaram-no ao recolhimento.

"O clima e a onda criados produziram um ambiente em que imperava o pré-julgamento. Minha versão acabaria distorcida e qualquer declaração poderia produzir uma notícia negativa e danosa, não só a mim, mas ao partido. Foi um período duro, difícil e de muita reflexão", afirma.

Leia abaixo a íntegra da carta:


Motivado pelo compromisso com a luta pela igualdade social, que sempre pautou e pauta minha conduta, e em consideração a todas as pessoas que, divergindo ou não, respeitaram e respeitam minha trajetória política, venho a público me manifestar sobre os fatos que colocaram o PT no centro da crise política e, principalmente, me defender e narrar, de forma muito franca, a minha verdade…

Carta aos petistas

Iniciei minha atuação política no movimento estudantil, participei da preparação da Guerrilha do Araguaia, fiquei preso por cinco anos, ajudei a fundar o Partido dos Trabalhadores e, durante 20 anos, fui parlamentar. Atuei intensamente na Assembléia Nacional Constituinte e integrei as principais lutas do Congresso Nacional, como as campanhas pelas Diretas Já, pelo Parlamentarismo e de combate ao governo Collor. Meus mandatos foram marcados pelo debate de idéias e por um nítido posicionamento político. Participei ativamente de todos os momentos importantes da vida do PT nesses 26 anos, contribuindo nas disputas internas e na consolidação do partido. Minha militância sempre foi em razão de um projeto coletivo, de uma missão, de um sonho, de uma causa.

Foi nessa condição – de um militante com ideais e motivações – que alterei o sentido da minha trajetória política e engajei-me na construção da candidatura a governador de São Paulo e, depois, assumi a presidência do PT.

A decisão de concorrer ao governo paulista não era a decorrência natural da minha militância. Naquele momento, abandonei uma carreira parlamentar vitoriosa para dedicar-me a uma tarefa que não havia traçado. Foi uma mudança radical, ocorrida em virtude de circunstâncias e contingências históricas que se colocam na vida e na militância de qualquer liderança.

A campanha ao governo de São Paulo foi modesta, partidária e apoiada nos militantes. Foi concebida estrategicamente, tendo como principais objetivos impulsionar a campanha de Lula e fortalecer o partido no Estado. Também foi uma campanha que estabeleceu relações não-sectárias, de convivência plural e de respeito às instancias do PT.

Da mesma forma, assumi a presidência do PT como uma tarefa que estava inserida nesse projeto global e coletivo. Enfrentei mais esse desafio sem escamotear minhas posições políticas, defendendo internamente minhas idéias e opiniões, mas também respeitando as divergências.

Todos sabíamos das dificuldades que teríamos pela frente: vários quadros políticos e dirigentes experientes haviam deixado o PT para compor o governo. E a nova condição do partido impunha desafios sem precedentes, especialmente o de, sendo de esquerda, governar sem maioria política, tanto na sociedade como no parlamento. Como aquele mandato era de transição – a nova direção viria a ser eleita no Processo de Eleição Direta (PED) em 2005 – e porque não detinha a força das urnas, seria necessário construir legitimidade e autoridade política no decorrer do próprio exercício da presidência.

Ao presidir o PT, coloquei minha visibilidade pública e minha representatividade política a serviço das seguintes tarefas, que ocupavam todo o meu tempo e eram do conhecimento de todo o partido: a defesa do PT e do governo; a relação com a militância, bancadas e instâncias partidárias e com os aliados; além da conseqüente sustentação política do governo. Portanto, o exercício da presidência tinha uma dimensão e um perfil eminentemente políticos. Em razão desse entendimento, sempre explicitei perante o PT que minhas tarefas não incluiriam a administração nem as finanças do partido.

Dois momentos sintetizam as dificuldades desse período e a complexidade dessas novas responsabilidades. O primeiro foi de grandes e intensas divergências e de um esgarçamento das relações internas, provocado pelo processo de afastamento de quatro companheiros. O segundo, do qual fui um dos protagonistas, foi o da construção e sustentação da candidatura do companheiro Luis Eduardo Greenhalgh para presidente da Câmara dos Deputados. Nesses dois episódios houve um grande empenho para a manutenção das relações internas e dos laços partidários, numa dimensão complexa e nova.

Além disso, durante todo o exercício da presidência sempre defendi que até mesmo o debate em torno das nossas resoluções deveria ter como objetivo a construção de um diálogo entre as correntes e instâncias do partido que possibilitasse uma necessária repactuação das relações internas. Havia ainda a expectativa de que o debate decisivo e impreterível sobre as reformas organizativas, políticas e programáticas se daria durante o PED.

No período de 30 meses em que presidi o PT, estive presente nas principais atividades partidárias em todos os estados. Promovi periodicamente as reuniões do Diretório Nacional e da Comissão Executiva. Enfrentei e conduzi discussões internas em que haviam divergências profundas, como, por exemplo, a natureza das primeiras medidas do governo e sobre a nossa posição frente às reformas da Previdência e Tributária.

Embora aquele tenha sido um período inédito e extremamente difícil e complexo, o número de filiados praticamente dobrou e alcançamos a marca de 4.500 municípios com o PT organizado. Em 2004, o PT foi o partido mais votado em número de eleitores, de capitais e de grandes cidades.

No entanto, durante a minha atuação na presidência do PT, cometemos uma série de erros, os quais sintetizo:

Em razão da grande visibilidade pública, em alguns momentos exerci a presidência privilegiando as tarefas da representação política em detrimento daquelas que exigiam decisão executiva e que eram de natureza prescritiva. Não enfrentamos a tendência à burocratização no funcionamento das instâncias nem o peso das personalidades sobre o coletivo. Não criamos mecanismos que oxigenassem a vida partidária, não fortalecemos o processo de co-responsabilidade dos órgãos coletivos do partido e não superamos a informalidade na ação dos dirigentes. 

Iludimos-nos ao acreditar que, ao se tornar partido de governo, o acúmulo do PT já era suficiente e que nossas experiências administrativas e nossa formulação estratégica não seriam confrontadas com nossas elaborações anteriores e nosso projeto de País. Não avaliamos corretamente o grau do enfrentamento político, a radicalidade da disputa nem a magnitude da intransigência dos nossos adversários. 

Descuidamos da defesa de algumas bandeiras históricas do PT e da disputa política autônoma em relação à esfera institucional. Isso nos levou, por exemplo, a não ter assumido a defesa da Reforma Política já no início do governo. Embora tivéssemos a compreensão de que para reformar o país era necessário, também, reformar a política e as instituições, não resistimos à pressão institucional imposta. Ao lado da agenda definida pelo governo (Reforma da Previdência, Reforma Tributária e leis complementares, entre outras questões), e sem abrir mão da defesa do próprio governo, o partido necessitava de uma agenda própria. Evidentemente a tarefa de um partido que elege o presidente da República é defender seu governo. Porém, ao relegar a segundo plano a agenda eminentemente partidária, prejudicamos nossa interlocução com os movimentos sociais organizados e passamos a dar prioridade às ações do campo institucional.

Não compreendemos que, para enfrentar essa nova situação, o PT deveria se destacar na defesa das bandeiras relacionadas à nossa história e à nossa identidade política. Demandava-se, também, um esforço adicional para que o nosso debate interno fosse além das questões conjunturais de governo. E, acima de tudo, essa disputa política requeria um grande investimento na formação política dos militantes e dirigentes. 

Não construímos uma formulação política e uma estratégia capazes de criar uma governabilidade, necessária para um governo de esquerda nas condições do Brasil, que deve se sustentar em duas dimensões complementares e indissociáveis: a institucional – que deve ser uma tarefa essencialmente de governo – e a social, tarefa essencialmente de partido. Nossa tática para a campanha eleitoral de 2004 foi a demonstração desse equívoco. A idéia de que a consolidação do nosso governo estaria garantida pela vitória eleitoral em 2004 foi a absolutização da governabilidade institucional. Tivemos uma grande vitória eleitoral, em número de votos e de grandes cidades. Porém, como não demos prioridade à disputa de projetos, não respondemos à altura os ataques da oposição, de que o PT seria autoritário, hegemônico e exclusivista, e defendemos o governo Lula sem usar os argumentos e dados que sinalizavam a mudança de rumos do país.

E foi justamente na preparação e realização da campanha eleitoral que o PT cometeu seu principal erro, que está na origem de toda a crise: o financiamento das campanhas eleitorais.

Como havia a idéia de que os dois primeiros anos de governo seriam os mais difíceis e que só uma vitória eleitoral poderia nos levar a avançar nos dois últimos, amarramos toda a estratégia da disputa política global a esse entendimento. Se era uma aspiração legítima das lideranças e dos dirigentes almejarem vitórias eleitorais em suas cidades e estados, não compreendemos as contradições presentes nesta equação política. Preponderou a lógica de que a única alternativa política possível era uma grande e indiscutível vitória eleitoral. O projeto nacional foi, então, submetido às lógicas regionais. A partir daí, o marketing, os shows e a qualidade do material tornaram-se objetivos e metas prioritárias de todo o partido. Isso acabou gerando uma visão exageradamente pragmática das alianças, algumas, inclusive fora dos critérios e perfil definidos pelo Diretório Nacional. Além disso, essa excessiva profissionalização das campanhas eleitorais resultou na desvalorização da nossa militância e no desprestígio de toda atividade voluntária.

Além desses erros políticos cometidos na condução do partido, quero prestar contas ao PT e a seus militantes sobre os seguintes fatos:

Os dois empréstimos que avalizei – um de R$ 2,4 milhões do BMG e outro de R$ 3 milhões do Banco Rural – foram feitos num momento em que o PT enfrentava dificuldades financeiras. O Fundo Partidário e as contribuições estatutárias dos filiados não estavam atualizadas com base nas eleições de 2002 e tínhamos dívidas oriundas da mobilização do partido e da festa popular da posse. Esses empréstimos foram rigorosamente legais, fazem parte da prestação de contas do PT dos anos de 2004, 2005 e 2006, e estão sendo renegociados judicialmente. 

A minha relação com o episódio do dinheiro encontrado com o assessor de meu irmão é simplesmente essa: a de ser irmão. Não existe nenhuma outra vinculação. A intensa e virulenta exploração desse fato tinha como único objetivo atacar o Partido dos Trabalhadores. Fui atingido sem ter nenhuma relação, nem com a causa nem com o efeito.

Todo esse cenário de equívocos – maldosa e oportunisticamente explorado por diversos setores que sempre se opuseram ao projeto político do PT – me levou ao recolhimento. Esse processo foi de uma violência muito grande. Ele não só me tirou a presidência do PT, mas me exilou dentro de minha própria casa. Ao ver a minha trajetória política atacada, de uma forma que jamais havia suposto, não tive outra saída. Além disso, não dispunha de nenhuma tribuna para me defender. O clima e a onda criados produziram um ambiente em que imperava o pré-julgamento. Minha versão acabaria distorcida e qualquer declaração poderia produzir uma notícia negativa e danosa, não só a mim, mas ao partido. Foi um período duro, difícil e de muita reflexão.

A bem da verdade, fui citado no relatório da CPMI e estou sendo denunciado pelo Ministério Público pelo simples fato de ter sido presidente nacional do PT. Não existe nenhuma outra razão concreta que justifique a inclusão de meu nome nas denúncias.

Quanto ao relatório da CPMI dos Correios, meu nome não aparece nas investigações documentais nem nos vários depoimentos prestados. Apenas existem referências genéricas à minha condição de presidente nacional do PT. Não estou relacionado a nenhum ato ilícito ou ilegal. Autorizei a quebra dos meus sigilos bancário, fiscal e telefônico e nada foi encontrado de ilícito ou irregular. Não fui ouvido na CPI dos Correios e, portanto, não tive direito ao contraditório nem à defesa. A proposta de indiciamento não é amparada em fatos, é sem provas e é política.

Quanto à Denúncia do Ministério Público Federal, é genérica e não descreve os fatos com a sua devida conformação. Os crimes tipificados nesse documento são as atividades políticas de construir alianças, de almejar permanecer democraticamente no poder, de ganhar eleições e de fazer maiorias. São ilações e afirmações sem coerência com fatos concretos ou provas. É a criminalização do exercício da presidência do PT e das tarefas, legítimas e legais, derivadas desse exercício.

E o pior: tudo isso é produzido sem base em uma investigação concreta dos fatos. Criminaliza-se a partir de um pressuposto condenatório. Não há fato algum no Relatório da CPI ou naqueles relacionados, ou em notas de rodapé ou em depoimentos, pelo Ministério Público, que me atingem como prova material. A investigação de atitudes individuais de companheiros do PT foi transformada numa grande e generalizada criminalização do partido, contando com o apoio de setores da imprensa que capitalizaram a idéia do espetáculo condenatório. E esse mesmo espetáculo condenatório também serviu para projetar lideranças no campo da oposição e dar prestígio e fama a outras personalidades.

Os erros e equívocos cometidos pela antiga direção e pelo conjunto do PT devem ser enfrentados com reformulações nas questões de método e de conteúdo, e o debate em relação a eles deve ocorrer no âmbito das escolhas políticas e não no terreno criminal. O fato de o partido aspirar vitórias políticas não pode ser considerado um crime. Um partido nasce para disputar o poder, e sua luta é para realizar e consolidar seu programa.

A suposição de que a minha atividade política teria sido uma ação criminosa é inaceitável. A idéia de criminalizar meu exercício na presidência nacional do PT significa transformar toda minha trajetória política em crime. Caso aceitemos essa tese, estaremos abrindo um caminho, perigoso e escuro, para a prática de criminalização das atividades de qualquer corrente política e da responsabilização objetiva de pessoas, sem a concretude do fato e de sua veracidade, tendo em vista os mais diversos interesses.

Uma outra dimensão dessa crise, não menos monstruosa e desumana, é a mídia e sua necessidade de criar manchetes. Assim como o predador persegue sua caça, a mídia busca obsessivamente o espetáculo. Seu alimento predileto são as crises, sejam elas reais ou não. E, para sobreviver, julga e condena sumariamente, mistura público e privado, promove o vale-tudo. Transforma o mundo em um Coliseu pós-moderno, tão sanguinário e horrendo quanto o romano. Na arena estão os erros e equívocos da antiga direção do PT e, para o bem do espetáculo e da manchete, eles só serão redimidos se desabrocharem os ressentimentos contidos e as frustrações abafadas. Para isso, há um incentivo explícito à vingança e um estímulo à barbárie. Há o elogio ao preconceito, o louvor à traição e a proliferação do cinismo.

Retomar minha militância política só tem sentido se eu partir dessas constatações e de uma conseqüente e radical autocrítica. O resgate da minha história e da minha biografia torna-se possível e necessário na medida em que, de posse dos meus equívocos e acertos, orgulho-me de meu passado e não temo olhar para o futuro.

Até porque, os erros e equívocos por nós cometidos de maneira alguma comprometeram a história do PT. Há muito mais nesses 26 anos: há um projeto de sociedade mais igualitária e humana, há a luta por liberdades e democracia, há a repulsão à injustiça e o horror ao desmando. O PT foi criado e nutrido pela dignidade dos trabalhadores e pela força de seus militantes. Temos energia e capacidade para, na crítica e na auto-crítica, resgatar e reformular os nossos valores de esquerda, os ideais do socialismo democrático, assim como, o nosso projeto para o país. Não será essa crise que colocará em risco esse patrimônio coletivo. São claros os sinais da disposição de luta dos petistas e da nossa base política, tanto na defesa do governo Lula como no enfrentamento com a oposição. A participação no PED de 2005 foi uma demonstração inequívoca do valor e do significado da militância petista.

Todos sabemos que por trás de toda essa crise há a intenção de interditar, de estancar um exitoso projeto político de esquerda. É aqui que vamos encontrar a verdadeira razão para tanta virulência, tanta fúria, tanta intimidação. Não nos enganemos! As motivações dessas denúncias não são a ética nem o desejo de combater a corrupção e dotar a política de regras mais transparentes. Até porque, se assim fosse, as Reformas Política e Eleitoral já estariam num nível bem mais avançado de entendimento e consenso. Trata-se, na verdade, de uma disputa radical entre dois projetos políticos antagônicos. Trata-se de uma disputa política acerca dos rumos do País.

Com todas as nossas debilidades e com as limitações impostas pela correlação de forças, nosso governo produziu, nas condições do Brasil, o que há de mais avançado. Ele construiu as condições para alterar a qualidade do nosso desenvolvimento econômico, interrompendo a agenda neoliberal que levaria o País à desolação e ao desdém social. Consolidou as mudanças de forma processual e consistente, sem choques ou aventuras. O governo do PT alterou o rumo da nossa política externa, realinhou o Brasil na disputa política mundial e protagoniza os interesses da integração latino-americana. Redimensionou a política econômica, de modo a manter a estabilidade, impulsionar o crescimento e redistribuir a renda. Os programas do governo Lula são referências de políticas sociais efetivas porque estamos diminuindo a pobreza. A realidade do país e a vida concreta das pessoas melhoraram. E mesmo após meses de intensos ataques da oposição, o governo Lula tem a aprovação da maioria da população. Por isso, o governo do PT é apontado como exemplo e nosso País é citado como modelo quando se trata de alternativa política relevante ao neoliberalismo. Manter esse rumo e avançar é fundamental. Não só para o Brasil, mas para todos os excluídos e abandonados que, em pleno século 21, ainda procuram alternativas que os tirem do caminho da exploração, da injustiça e da fome.

Provido dessas certezas, das críticas e da auto-crítica, retorno à militância e à luta política. Talvez menos ingênuo, talvez mais experiente. Mas, com certeza, mais calejado e mais animado. Com as esperanças e os sonhos de sempre. À luta.

À vitória.

José Genoino

São Paulo, maio de 2006.