Artigo: 'A crise das mídias alternativas e a mídia da crise'
A história de pelo menos 15 anos de luta dos metalúrgicos do ABC por uma concessão de TV é exemplo de como o universo da mídia brasileira foi controlado pelas elites. Enquanto m
Publicado 04/05/2006 19:03
Acostumadas a viver das tetas do Estado, empresas do setor, a exemplo da TV Globo, vivem dificuldades porque não enxugaram nem acompanharam a onda de flexibilização das relações de trabalho, que transformou a categoria de jornalistas em um exército de PJs (pessoas jurídicas). No mais, a mídia conservadora continua bem, obrigado. Que o digam os coronéis e oligarcas que continuam controlando jornais, rádios e TVs por todo o País, todos vivendo momentos de muita expectativa diante das mudanças tecnológicas à vista. E com um discurso mais afiado que nunca, mais centralizado e uníssono que nunca.
Na semana passada, durante Seminário Internacional sobre Mídia e Democracia, realizado pela Escola de Comunicação da UFRJ, o professor da Universidade Cândido Mendes, Wanderley Guilherme dos Santos foi direto ao ponto, sustentando que, na sociedade contemporânea, a “estabilidade política” produzida pela mídia costuma ser utilizada por ela como mercadoria para dobrar os joelhos dos governantes diante do altar de seus próprios interesses econômicos. Atrasado do ponto de vista empresarial, é o único segmento da economia brasileira que, segundo ele, ainda depende do Estado para sobreviver.
Para o diretor da Ancine, Manoel Rangel, que também participou do Seminário da UFRJ, lembrando a campanha contra a regulamentação do mercado cinematográfico brasileiro ensaiada pelo governo Lula, este discurso conservador é responsável por uma verdadeira “interdição” do debate público sobre os interesses e atores que empolgam a mídia brasileira. Segundo ele, um mínimo de transparência sobre a vida do setor permitiria, pelo menos, ver a correlação de forças embutida no processo de disputa que se trava nesta cena política e que será responsável, por exemplo, pela definição sobre o modelo japonês ou europeu de TV digital.
Quem anda em crise, na verdade, são as chamadas mídias alternativas. Ao longo destes anos de discurso único neoliberal da mídia conservadora – uma década, no mínimo -, a esquerda brasileira alimentou o mito de controlar estas ferramentas de comunicação moleculares. Entre elas, costuma elencar os milhares de jornais sindicais, rádios comunitárias e a internet – este fetiche tecnológico cujo potencial é ilimitado mas que, na realidade, ainda “trava” muito computador e deixa muita gente de cabelo branco, rodando atrás do próprio rabo.
Na verdade, há muita confusão sobre a realidade das chamadas mídias alternativas no Brasil. A primeira delas é acreditar que as mídias alternativas (no plural), possam fazer contraponto ao discurso (único) hegemônico da direita sustentado pela grande mídia. No seminário da UFRJ o ex-presidente do PT e ex-ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu recorreu ao argumento das mídias alternativas para relativizar a tragédia política representada pela ausência de uma mídia anti-hegemônica, capaz de contrapor-se ao golpismo da midia conservadora que não dá um segundo de trégua ao governo Lula. Exceções como a Carta Capital são sempre lembradas e há outras como a Agência Carta Maior que apenas confirmam a regra.
Outros palestrantes como o professor Giuseppe Cocco, da UFRJ, reafirmaram denúncia contra o monopólio conservador da mídia brasileira e apontaram a necessidade de aprofundar a discussão sobre as razões que bloqueiam a democratização da comunicação e/ou impedem o desenvolvimento de uma mídia anti-hegemônica no Brasil. As dificuldades são muito grandes. Os debates ocorridos ao longo do seminário suscitaram algumas questões que merecem reflexão e podem apontar caminhos para a democratização da mídia brasileira.
Uma destas dificuldades é relativa às opções colocadas tanto pela digitalização das rádios e TVs, quanto pelo desenvolvimento da internet. Para o professor da Faculdade Casper Líbero, Sergio Amadeu, os dilemas não são técnicos, como quer fazer crer a midia conservadora, mas políticos: dizem respeito ao poder da sociedade de controlar estas ferramentas. Segundo Amadeu, o discurso liberal-conservador procura reservar ao monopólio o controle dos meios – da web e do espectro rádio-televisivo – subordinando o usuário à condição de consumidor ignorante dos processos e desprovido de qualquer poder sobre o uso político e a propriedade destes meios.
O problema da democratização do espectro de rádio e TV torna este dilema entre o técnico e o político ainda mais claro. Para a sociedade brasileira a discussão sobre a digitalização, para além das vantagens tecnológicas de cada modelo, precisa ser conduzida sob a ótica da necessidade de democratizar os meios. A questão portanto é técnica, mas antes de tudo, é também política e precisa ser tratada como tal. O que não se pode admitir é que o debate se limite ao modelo tecnológico enquanto concessões de TV Educativa como a que foi requerida pela Fundação Cultura e Trabalho, instituída pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, continua sem solução por força de embargo imposto há um ano pela Justiça Civil de São Bernardo que questionou a legalidade de um registro em cartório de Registro de Títulos e Documentos.
A história de pelo menos 15 anos de luta dos metalúrgicos do ABC por uma concessão de TV é exemplo de como o universo da mídia brasileira foi controlado pelas elites. Enquanto ao longo dos anos milhares de concessões foram distribuídas em todo o País, nem mesmo a posse na presidência da República de um ex-membro do conselho diretor desta Fundação permitiu que a entidade pudesse romper com a lógica dos esquemas que hegemonizam a mídia eletrônica no Brasil. A limitação do sinal a Mogi das Cruzes também não foi bastante para permitir que o processo chegasse a bom termo.
Outro pedido feito a mesma época, relativo a uma emissora de rádio educativa, fora da Capital paulista, também foi embargado por força da mesma decisão judicial. Esta história mostra o zelo das elites brasileiras no controle da comunicação. Se quiserem ganhar uma concessão, os metalúrgicos do ABC, além de eleger um Presidente da República, devem preparar-se para ocupar o STF e eleger o presidente do Senado, de forma a poder cumprir uma última etapa do processo de concessão, ou seja, conseguir a aprovação do Senado Federal.
Mas o debate político que se faz necessário para democratizar a mídia ainda não se encerra no acesso aos meios. Se a esquerda brasileira e as forças progressistas quiserem de fato encarar o desafio da democratização da comunicação terão de resolver uma outra questão tão importante quanto a quebra do monopólio dos meios: a construção de um discurso político anti-hegemônico, que não precisa ser único, mas que precisa ser hegemônico.
Nós já vimos que o neoliberalismo, como toda ideologia, é hábil em esconder a verdade. Ele sustenta a liberdade dos mercados, mas pratica a reserva de mercados. Sustenta a flexibilização dos contratos de trabalho, mas pratica um regramento meticuloso nas relações de consumo. Levanta-se em uníssono contra qualquer possibilidade de discutir os meios de comunicação, clama que é censura, que é controle público – como ocorreu com a proposta da FENAJ de criar um Conselho Nacional de Jornalismo -, mas não tem dúvida sobre seu direito de concentrar meios e monopolizar a palavra. Enquanto isto sustenta que a democratização da comunicação é igual à diversidade de discursos, tantos quantos correspondam a um país de uma diversidade inigualável, como a do Brasil. A partir desta lógica, toda e qualquer possibilidade de gerar uma centralidade, a partir de um governo, de um partido político, ou de uma central sindical, por exemplo, será igual a totalitarismo.
Mas, construir um discurso anti-hegemônico não é uma simples questão de vontade política de algum ator social, por mais enraizado que se encontre. Não depende também, pura e simplesmente, de acesso a meios. É um acúmulo histórico. A esquerda e os movimentos populares, ongs, sindicatos etc acabaram absorvendo o ideário neoliberal de que a democratização da comunicação é sinônimo de possibilidade de acesso às várias alternativas disponíveis, espaços de TV, internet, garantindo a cada segmento da sociedade possibilidade de falar para si mesmo em algum espaço comunitário. Assim, enquanto negros falam com negros, índios com índios, as classes dominantes não serão ameaçadas em seus interesses estratégicos.
E construir este discurso não é fácil. A experiência da CUT com a produção por dois anos de uma revista de meia hora semanal de televisão, primeiro na Rede TV e em seguida também na TV Bandeirantes, mostra a dificuldade desta construção. Com índices médios de Ibope em torno de uma média de 3 pontos na Band (ou seja, mais de dois milhões de famílias assistindo), o Repercute é uma das mais importantes experiências de comunicação de massa da esquerda brasileira. Os dois anos de experiência, no entanto, com uma equipe profissional trabalhando diuturnamente sobre um conteúdo diferenciado de jornalismo, não foram o bastante para produzir uma nova linguagem de televisão capaz de ampliar o universo de telespectadores do programa.
Na verdade, a eficiência da comunicação conservadora está construída em cima de décadas de investimento contínuo das elites, enquanto as experiências alternativas acabam sempre sem solução de continuidade. Um bom exemplo foi a “Rádio dos Bancários de São Paulo”, do início dos anos 90. O projeto, veiculado pela Rádio Gazeta, de rara eficiência e muito Ibope, conduzido pelos jornalistas Sérgio Pinto de Almeida e Osvaldo Luis Vitta, abandonado por quase uma década, foi retomado apenas em julho de 2004 pela CUT, na gestão Luiz Marinho, com o nome de Jornal dos Trabalhadores. Jornal diário, transmitido em horário nobre, pela Rádio 9 de Julho, em São Paulo, entre 7 e 8hs da manhã, é o primeiro passo no sentido de construir uma cadeia nacional de rádio para a CUT.
O dilema entre o mimetismo da linguagem dominante e a invenção de uma nova linguagem para comunicar o pensamento contra-hegemônico foi também apontado durante o seminário da UFRJ pelo diretor da Ancine, Manoel Rangel, ao falar da dualidade do desafio a ser enfrentado, o acesso aos meios e a produção de conteúdos. Desafio que, nas palavras do representante dos projetos de rádios comunitárias, Romano, da Rádio Aberta, significa a necessidade de criar uma nova estética contra-hegemônica a partir das experiências de comunicação alternativa.
Mas, para isto, ainda vai ser preciso muita estrada. Será preciso deixar de olhar o umbigo de cada movimento, que embora rico na sua experiência local tem pouco significado para o conjunto da sociedade brasileira, e começar a mobilizar bandeiras capazes de unir a sociedade em defesa da democratização da comunicação. Nesse sentido, exemplos como o do boicote contra a RBS em Porto Alegre, em 2004, relatado por Cláudia Cardoso, da Midi@Ética, precisam ser analisados e repetidos como alternativa de enfrentar o monopólio da mídia unificando movimentos e forças políticas interessadas efetivamente na democratização dos meios e na construção de uma linguagem anti-hegemônica na mídia brasileira.
O ano eleitoral que atravessamos sugere a mobilização de todos os movimentos comprometidos com a bandeira da democracia. Se em cada um das principais capitais do País os meios de comunicação fossem fiscalizados para garantir pelo menos a transparência de sua oposição ao governo Lula, a sociedade brasileira poderia dar um importante passo no sentido de consolidar a democracia política no Brasil. Nós não achamos que a mídia deva ser neutra, mas achamos que ela tem obrigação democrática de explicitar sua posição política frente aos partidos políticos e candidatos.
Aliás, segundo o relato da Midia@Ética, o boicote ao Zero Hora, da RBS, obteve resultados surpreendentes. Este ano, o jornal publicou um comunicado informando sua posição frente ao quadro eleitoral que se aproxima. Um resultado que teria um forte significado democrático caso se tornasse rotina na mídia brasileira.
Celso Horta é jornalista, mestre em comunicação e regionalidade pelo IMES e assessor da CUT.