Paris exibe curtas-metragens brasileiros
Os curtas de ficção "Sonho de criança" e "Desliga", e os documentários "Vou ter um filho", “João Cândido e a
Publicado 02/05/2006 19:38
A associação "Nós do Cinema" surgiu em janeiro de 2000 como uma oficina de interpretação para cinema criada para preparar cerca de 200 jovens de comunidades de baixa renda no Rio de Janeiro para a composição do elenco do filme "Cidade de Deus". Com o sucesso internacional atingido pelo filme e o apoio dos diretores Fernando Meirelles e Kátia Lund, o projeto foi ampliado e tornou-se uma escola de educação audiovisual.
Foram exibidos os curtas-metragens de ficção "Sonho de criança", de Débora Herszenhut, Júlio César Siqueira e Sylke Abdinghoff, e "Desliga", de direção coletiva, e os documentários "Vou ter um filho", de Dávila Pontes, “João Cândido e a Revolta das Chibatas”, também de direção coletiva, e “Vida nova com favela”, de Luis Carlos Nascimento, Coordenador de Comunicação do "Nós do Cinema" que veio a Paris acompanhando a seleção.
"Sonho de criança" é uma espécie de criação lírica sobre o imaginário infantil numa favela. Ainda que haja certa reivindicação social (como nos closes nos brinquedos quebrados), o que o diferencia dos demais é o caráter essencialmente poético.
Em sentido oposto, "Desliga" é um "filme de tese" produzido por alunos de 12 a 14 anos que escolheram como tema a influência da mídia na vida dos adolescentes da comunidade. A execução do projeto vai a tropeços (com atores amadores que deixam a desejar), mas há idéias bem realizadas (como um programa de televisão recriado para representar a força da mídia), que ilustram bem a mensagem que o filme se propõe a transmitir.
Os documentários são formalmente superiores às duas ficções, talvez pela facilidade inerente ao formato, que não depende de atores e conta em grande parte com a força do tema e dos depoimentos e demais informações levantadas pela produção.
"Vou ter um filho" trata do problema da gravidez infantil, mas não deixa de ser um retrato bastante parcial do tema ao se resumir ao acompanhamento de uma só família (ainda que explorada no espaço de duas gerações de mães adolescentes). Apesar de não se equiparar a trabalhos mais complexos e multifacetados como "Meninas" de Sandra Werneck, é um filme que introduz os mais desavisados a um grave problema social bastante recorrente na classe de baixa renda brasileira.
“João Cândido e a Revolta das Chibatas” tem o grande mérito de desvendar uma importante passagem da História brasileira ignorada pela maioria esmagadora da população. O percurso do líder da Revolução das Chibatas, bem como o contexto político, econômico e social em que ela se instaurou, são nele desvendados pelos alunos do "Nós do Cinema", numa demonstração de enriquecimento cultural pelo resgate e apropriação de sua própria História. Há defeitos técnicos (qualidade do som, alguns depoimentos longos, uma edição que poderia ser melhorada), mas que em nada ofuscam o brilho da idéia e do resgate histórico realizado pelos alunos.
Mas o destaque da seleção é sem dúvidas “Vida nova com favela”. De qualidade técnica nitidamente superior aos demais (o que se explica talvez em parte pelo fato de o diretor fazer parte do "Nós do Cinema" desde sua criação), o filme acrescenta à simples leitura crítica da realidade uma proposta social.
O projeto inicial era recuperar a História das favelas brasileiras, desde seu surgimento quando da abolição da escravatura. Por falta de recursos, o relato teve que ser abreviado e o filme limita-se ao período compreendido entre a ditadura militar e nossos dias. Mas o projeto inicial não foi descartado e, valendo-se de "Vida nova" como amostra do trabalho mais ambicioso ainda por vir, o diretor está atualmente captando recursos para a produção do longa-metragem que retratará o período completo.
O curta-metragem exibido no Festival efetivamente já constitui bom demonstrativo da idéia que originou o projeto: apresentar a favela como um outro tipo de organização social possível e propor um novo ponto de vista a seu respeito. Não que o filme coloque-se a enaltecer a favela em oposição à vida "embaixo do morro", mas há simplesmente uma tentativa de apresenta-la como uma outra comunidade social possível.
No debate que seguiu as projeções, o diretor Luis Nascimento abordou a oposição entre a idéia de se "trazer cultura para as favelas" e a proposta de produção cultural pela própria comunidade. A mesma idéia está na origem da metodologia de ensino da escola de formação, fundada na concepção de educação popular do teórico Paulo Freire e com base na qual os professores têm como objetivo não apenas transmitir conteúdos técnicos específicos, mas despertar uma nova forma de relação dos alunos com sua experiência vivida. A experiência pessoal de cada um transforma-se, assim, no material bruto a ser trabalhado pelos educadores, abrindo espaço para que os alunos reflitam sobre sua realidade e encarem a produção audiovisual como instrumento de expressão e intervenção social.
A amostra da produção do "Nós do Cinema" trazida a Paris confirma esta apropriação da imagem por esses jovens crescidos nos morros e que vêm, muitas vezes, de contextos dramáticos de abuso sexual, violência, envolvimento com tráfico de drogas etc. Difícil pedir a esses meninos e meninas que falem de outra coisa que não a vida na favela, muitas vezes se valendo de documentários: a realidade, neste caso, se impõe a todo o momento e é muito difícil de contornar.