Redução da jornada de trabalho é fundamental para humanizar sociedade

Para René Mendes, do Observatório dos Impactos das Novas Morfologias do Trabalho, luta contra escala 6×1 é grito desesperado contra sistema opressor

Manifestantes cobram fim da jornada 6x1. Foto: Tania Rego/Agência Brasil

Jornadas exaustivas; longos períodos de deslocamento; sobreposição de tarefas domésticas e cuidados familiares; pouco tempo para o descanso e para o lazer; salários baixos; direitos ignorados e condições precárias de trabalho. Esse é o quadro geral enfrentado pela maioria da classe trabalhadora brasileira, situação que ficou mais explícita (inclusive para ela mesma) quando o debate sobre o fim da escala 6×1 ganhou força na opinião pública. 

“A luta contra a escala de 6×1 deve ser vista como um grito desesperado contra um sistema opressor, cruel, com seus múltiplos tentáculos sufocantes. Apoiar esta luta é necessário, mas, claramente, não é suficiente”, explica o professor René Mendes, médico sanitarista e do trabalho e  coordenador do Observatório dos Impactos das Novas Morfologias do Trabalho sobre a Vida e Saúde da Classe Trabalhadora, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. 

Tal situação é parte da velha, mas ainda e infelizmente atual exploração humana em busca do lucro, um dos fundamentos do sistema capitalista que, de tempos em tempos, muda de forma, mas não de essência. 

Leia também: “Escala 6×1 é incompatível com a dignidade”, diz líder comerciário sobre PEC

Ao longo dos anos, novos ingredientes foram sendo acrescentados a essa receita. Os diversos tipos de crise gerados pelo próprio capitalismo em nível mundial e a obsolescência de boa parte da população frente às novas tecnologias, entre outros fatores, ampliaram o desemprego e a busca pela sobrevivência ficou ainda mais intensa, o que vem resultando em ocupações cada vez mais extenuantes, mal remuneradas e desprovidas de direitos básicos. 

No Brasil, a reforma trabalhista de 2017 foi mais uma pancada sobre os trabalhadores inseridos nesse contexto, sobre os quais incidem, ainda, as mazelas típicas dos países colonizados, entre as quais estão os ecos da escravidão e a profunda desigualdade social.

Como resultado, ainda que o Brasil tenha avançado na criação de empregos nos últimos anos, a precarização e as longas jornadas ainda são a regra no mercado. Segundo análise feita pela agência Lagom Data para a revista CartaCapital, tendo como base informações do Ministério do Trabalho e Emprego, atualmente mais de 32 milhões de pessoas fazem, formalmente, a jornada 6×1, o que representa mais de 65% dos contratos vigentes. Considerando dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (Pnad) do IBGE, 75% dos trabalhadores brasileiros têm jornadas de 40 horas ou mais de trabalho. 

Leia também: Jornada de trabalho em todos os países do G7 é inferior à do Brasil

Ao se analisar estimativa feita pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), conclui-se que a média de 11% de trabalhadores que, no Brasil, estão submetidos a jornadas longas (superiores a 48 horas semanais) é inferior à média mundial, de 17,7%. Porém, não se pode desconsiderar os contextos em que se dão essas cargas horárias e o que a falta de tempo para a vida além do trabalho representa para a experiência humana. 

René Mendes. Foto: reprodução/IEA-USP

Em entrevista ao Portal Vermelho, o professor René Mendes destaca que “as jornadas abusivamente longas e a intensificação do trabalho, em todas suas formas, estão na raiz dos adoecimentos físicos e mentais provocados ou agravados pelo trabalho, e explicam também os acidentes do trabalho”. E, lembrando as palavras de Antonio Candido, destacou: “a luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: ‘eu quero aproveitar o meu tempo de forma que eu me humanize’”.

Leia abaixo os principais trechos dessa conversa. 

Redução da jornada, uma luta histórica e necessária

“A luta pela redução da jornada de trabalho é uma luta histórica, com avanços e retrocessos, mas que não pode, neste momento, ser reduzida à questão da escala 6×1. Como se sabe, os limites constitucionais máximos de 8 horas diárias e de 44 horas semanais, que deveriam ser ‘tetos máximos’ protetores, tornaram-se, na verdade, ‘pisos mínimos’ para significativa parcela da classe trabalhadora, uma rotina de sobrecarga, seja como expressão da crescente tendência de super exploração capitalista e precarização do trabalho, caracterizada pela exigência contumaz de horas extras; pela sonegação e subtração de pausas e intervalos de repouso; pela redução do horário para refeições, e por outros expedientes abusivos consagrados pelo retrocesso trabalhista legalizado em 2017”. 

Baixa remuneração e busca por mais trabalho 

“Por outro lado, a baixa remuneração tem obrigado a classe trabalhadora a buscar formas para aumentar seus ingressos, para fins de sobrevivência, onde entram práticas de duplas e até triplas jornadas de trabalho, como, por exemplo, no caso dos trabalhadores e trabalhadoras da saúde e da educação. Acrescente-se o tempo gasto no percurso, no transporte público em grandes áreas metropolitanas – frequentemente precário e deficitário —, o que pode consumir duas a três horas para ir, outras tantas para o retorno. Ou seja, as horas efetivamente gastas na labuta diária ultrapassam 12, 14 e até mais horas, marcadas por intenso desgaste. Isso sem contar a dupla ou tripla carga, com o trabalho doméstico e com atividades do cuidado, o que penaliza, em especial, as mulheres, principalmente as das periferias, as mais pobres, as negras”.  

Ganância capitalista x necessidade de sobrevivência

“Portanto, de um lado a ganância capitalista sem limites; de outro, a necessidade desesperada pela sobrevivência. Um enorme desequilíbrio entre o tempo para o trabalho e o tempo para a vida. E este grave desequilíbrio — que tem profundos impactos negativos sobre a vida e a saúde da classe trabalhadora, isto é, das pessoas que trabalham e de suas famílias – é escandalosamente desigual. E constituem essa equação não apenas o trabalho (com frequência, precarizado), como também questões habitacionais, políticas de ocupação do espaço urbano e de moradia e problemas relativos aos transportes públicos, além da própria intensificação do trabalho, que se torna cada dia mais abusiva e cruel”. 

“Todas estas variáveis são socialmente determinadas e são caraterísticas da opressão e dominação do atual modelo de exploração capitalista no Brasil e em grande parte do mundo. Portanto, a luta contra a escala de 6×1 deve ser vista como um grito desesperado contra um sistema opressor cruel, com seus múltiplos tentáculos sufocantes. Apoiar esta luta é necessário, mas, claramente, não é suficiente”. 

Populações mais vulneráveis à precarização do trabalho 

“Uma questão central nesse debate é a perversa estratificação social de classes nas quais os trabalhos mais pesados, desgastantes, penosos e insalubres são exercidos pelos grupamentos sociais mais periféricos, menos remunerados, geralmente menos organizados, mais explorados, presentes nos acelerados processos de precarização do trabalho, agora legalizados e ‘naturalizados’, principalmente a partir da destruição trabalhista consagrada em 2017, e em prosseguimento”. 

“As jornadas de trabalho abusivamente longas e a intensificação do trabalho, em todas suas formas, estão na raiz dos adoecimentos físicos e mentais provocados ou agravados pelo trabalho, e explicam também os acidentes do trabalho. Por outro lado, os modelos de gestão do trabalho baseados em assédio – por exemplo, na cobrança de metas abusivas – também provocam desgaste mental, sofrimento e formas de adoecimento que estão crescendo aceleradamente em nosso país”.

“Neste contexto, negros, mulheres e imigrantes estão entre os mais atingidos. Portanto, uma vulnerabilidade social de gênero e de raça, e não biológica. Reitero: o bem-vindo ‘agito’ em torno da PEC contra a jornada 6×1 vem oportunizando um grande despertar sobre as condições de vida e trabalho vigentes no Brasil, onde a questão do tempo de trabalho é fulcral, mas também seu corolário: a importância do tempo livre. E mais: nas palavras de Antonio Candido, ‘a luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: ‘eu quero aproveitar o meu tempo de forma que eu me humanize’”. 

Ganhos humanos da redução da jornada

“A redução da jornada de trabalho (se for real, e não substituída por dois ou três vínculos de trabalho para garantir a sobrevivência) implicará em progressivos ganhos de tempo livre. Tempo livre que cada um escolhe como administrar: para fins de lazer, escolares e educacionais, para fins culturais, enfim, para expressões positivas de promoção da saúde individual e coletiva. Assim como a lógica da teoria da determinação social do processo saúde/doença identifica a contribuição negativa das longas jornadas de trabalho (e do tempo e forma de transporte in itinere) sobre a saúde individual e coletiva, sabe-se que as atividades de lazer (não ocupado pelo consumismo), de práticas de esportivas, de estudo, de leitura, de edificação ‘espiritual’, de companheirismo e de construção social da resistência (o mais temido pelo capitalismo) contribuem para a promoção da saúde e prevenção das doenças e dos processos degenerativos, físicos e mentais, e para o envelhecimento saudável”. 

“Aumento da produtividade” 

“Não defendo a tese do ‘aumento da produtividade’ supostamente gerado pela redução da jornada de trabalho, entendendo, também, que as inovações tecnológicas e organizacionais, saudáveis e controladas pelos trabalhadores e trabalhadoras, podem contribuir para eventual aumento da produtividade. Já há muitos que defendem a economia e o capital. Faltam pessoas e ideias que defendam os perdedores de sempre – a classe trabalhadora. Esta é a nossa luta”.