Lula destaca fragilidades da ONU na solução de conflito na Palestina e Ucrânia

Em entrevista em Nova York, Lula condenou o genocídio causado por Netanyahu e rebateu críticas de Zelensky. O presidente ainda defendeu o papel do Brasil no debate energético

25.09.2024 -Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em entrevista coletiva à imprensa na Sede das Nações Unidas (ONU), sala de entrevistas. Nova York - Estados Unidos. Foto: Ricardo Stuckert / PR

Em coletiva de imprensa realizada em Nova York, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abordou temas fundamentais de sua participação na Assembleia Geral da ONU e reafirmou a posição do Brasil na defesa de uma renovação urgente das Nações Unidas. A coletiva, marcada por um tom firme e esperançoso, reflete o esforço de Lula em fortalecer o Brasil não apenas internamente, mas também no cenário diplomático global, promovendo diálogo e inclusão como bases de seu governo.

Durante o discurso inicial, Lula destacou a importância de se adaptar a organização às mudanças geopolíticas e aos desafios globais atuais, que são muito diferentes daqueles de 1945, quando a ONU foi fundada.

“Quando a ONU foi criada, eram 51 países. Hoje são 193. A geopolítica de hoje é diferente da geopolítica de 1945. O que estamos defendendo é uma nova conformação geopolítica para que todos os continentes estejam representados”, afirmou o presidente, reiterando a necessidade de reformar o Conselho de Segurança, inclusive com a eliminação do direito de veto.

O líder do G20 também respondeu com firmeza sobre críticas do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, criticou o premier israelense Benjamin Netanyahu pela escalada da guerra na região e ainda pontuou os motivos de suas reuniões com agências de risco e a exploradora de petróleo americana Shell.

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Conflitos globais e a falta de governança

Lula chamou atenção para a falta de governança global, que, segundo ele, tem permitido a multiplicação de conflitos no mundo. Referindo-se à guerra entre Rússia e Ucrânia, bem como aos recentes conflitos no Oriente Médio, Lula observou que, apesar de decisões e debates na ONU, nenhuma solução concreta foi implementada.

“A ONU teve força para criar o Estado de Israel, mas agora não tem força para criar o Estado Palestino. Precisamos de uma solução diplomática, e o Brasil tem insistido em discutir a paz”, disse ele, ressaltando os esforços de seu governo em buscar o diálogo entre as partes envolvidas, como a atuação de Celso Amorim, assessor especial da presidência, em negociações com Rússia, China e Ucrânia.

Extremismo e defesa da democracia

Outro ponto destacado pelo presidente foi a preocupação com o avanço do extremismo, que, segundo ele, tem encontrado apoio na indústria de desinformação e fake news, que se tornou um negócio lucrativo em várias partes do mundo. Para Lula, a ascensão da extrema-direita coloca em risco a própria democracia, sistema que ele considera o mais extraordinário de governo.

“Convocamos uma reunião com presidentes democratas para discutir a revitalização da democracia e o surgimento da extrema-direita. Precisamos entender onde a democracia errou para permitir que esse extremismo ganhasse força”, afirmou Lula, em referência ao evento organizado em conjunto com o presidente Pedro Sánchez, da Espanha, também à margem da Assembleia Geral da ONU.

Brasil e a transição energética

Além dos desafios diplomáticos e políticos, Lula ressaltou as oportunidades que o Brasil tem na área de energia renovável. Com 90% de sua matriz energética já baseada em fontes renováveis, o país tem, segundo ele, o potencial de liderar a transição energética global, destacando o papel do etanol, biodiesel e a expansão da energia solar e eólica.

“O Brasil tem condições de ser um exemplo para o mundo, com a energia mais limpa do planeta. Não vamos desperdiçar essa chance”, declarou, lembrando que o país já mistura etanol à gasolina há 50 anos e está ampliando o uso de biodiesel.

Crescimento econômico e inclusão social

Com otimismo, Lula comentou o crescimento da economia brasileira e a recuperação da confiança de investidores, além dos esforços para reduzir a desigualdade social e erradicar a fome. Ele celebrou as recentes conquistas, como a retirada de milhões de pessoas da linha da pobreza e a aprovação de reformas importantes no Congresso Nacional, como a reforma tributária.

“Quando voltei à presidência, o Brasil tinha 33 milhões de pessoas passando fome. Já conseguimos tirar 24 milhões dessa situação, e até o final do meu mandato quero que todas as crianças tenham café da manhã, almoço e jantar”, comprometeu-se o presidente.

Lula condena genocídio causado por Netanyahu e critica inação global

Durante a coletiva de imprensa, o presidente Lula condenou veementemente a escalada de violência no Líbano e as ações de Israel, classificando a situação como um genocídio. Questionado pela jornalista da agência turca Anadolu, sobre o alto número de mortes de civis e os planos de uma ofensiva terrestre israelense, Lula expressou preocupação profunda com o agravamento da crise humanitária.

“É importante lembrar que no Líbano o total de mortes já chega a 620 pessoas, o maior número desde a guerra civil que durou de 1975 a 1990”, destacou Lula. Ele também mencionou o impacto devastador sobre mulheres e crianças: “Morreram 94 mulheres e 50 crianças, além de 10 mil pessoas que foram forçadas a abandonar suas casas.” Lula ampliou sua análise, apontando que, na Cisjordânia ocupada, a violência já resultou em mais de 5.700 feridos e a morte de 160 crianças.

Para o presidente, a comunidade internacional tem sido omissa, e as resoluções da ONU têm sido ignoradas pelo governo de Israel, liderado por Benjamin Netanyahu. “Houve várias tentativas de cessar-fogo aprovadas no Conselho de Segurança da ONU, mas Israel não as cumpre”, afirmou. Ele defendeu que a ONU precisa ser fortalecida para que tenha poder de tomar decisões e garantir a implementação de acordos de paz.

Lula não poupou críticas ao apoio internacional a Israel, pedindo que os países que sustentam o governo Netanyahu façam mais para conter o que chamou de genocídio na Faixa de Gaza. “Nós estamos lutando para melhorar a qualidade de vida no planeta, enquanto seres humanos continuam a se matar. Isso não faz sentido”, concluiu o presidente.

Diplomacia e o papel do Brasil no debate energético

Durante a coletiva, Lula também foi questionado sobre o encontro recente com representantes da Shell, que demonstraram interesse na exploração de petróleo na margem equatorial do Brasil. Alguns membros do governo expressaram desconforto com a aparente contradição entre a busca pela descarbonização e o incentivo à exploração de petróleo.

O presidente foi categórico em sua resposta: “Eu não vejo contradição. A Shell está no Brasil há mais de 100 anos, antes mesmo de eu nascer. Eles só irão para a margem equatorial se o governo brasileiro, dentro das exigências ambientais, permitir.” Lula defendeu que, até que haja autossuficiência de outras fontes de energia, o Brasil ainda precisa do petróleo para garantir sua segurança energética.

Ele ressaltou a importância de transformar a Petrobras em uma empresa de energia, e não apenas de petróleo, para que o país esteja preparado para o futuro, quando o uso de combustíveis fósseis for reduzido.

Aliança global contra a pobreza e a fome

Lula também abordou sua iniciativa da Aliança Global Contra a Desigualdade, Fome e Pobreza, destacando a ampla aceitação de líderes globais ao projeto. “Até agora, todos os países com quem conversamos estão dispostos a participar. Não há um presidente que recuse uma bandeira tão nobre”, disse.

O presidente compartilhou a experiência brasileira no combate à pobreza, com programas como o Bolsa Família, e sugeriu que políticas similares podem ser adotadas em outras regiões. “O mundo produz alimento suficiente para acabar com a fome. O que falta é garantir que as pessoas tenham recursos para comprar esse alimento”, afirmou Lula, reforçando que é necessário colocar os pobres como prioridade nos orçamentos nacionais.

Lula rebate críticas de Zelensky e defende diplomacia para Ucrânia

Lula também abordou questões críticas da agenda internacional, incluindo as declarações recentes do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, que mencionou o Brasil no Conselho de Segurança da ONU. Zelensky criticou a visão “colonial” que, segundo ele, alguns países teriam sobre a situação da Ucrânia, rejeitando qualquer proposta de paz que não inclua a preservação total da integridade territorial e soberania do país, além de expressar descontentamento com a aproximação entre Brasil e China.

Lula, ao responder à crítica, afirmou que Zelensky “só falou o óbvio”, destacando que o presidente ucraniano está no direito e dever de defender a soberania de seu país. “O que ele não está conseguindo fazer é a paz”, comentou o líder brasileiro, reiterando que sua proposta, assim como a da China, não se trata de impor uma solução, mas sim de estimular o diálogo. “Eles não precisam aceitar a proposta da China e do Brasil porque não tem proposta. Tem uma tese de que é importante começar a conversar”, explicou Lula.

Para o presidente, a solução para o conflito passa necessariamente pelo diálogo. Ele acredita que, enquanto o confronto militar continuar, o povo ucraniano continuará sofrendo. “Se ele [Zelensky] fosse esperto, ele diria que a solução é diplomática, não militar”, ponderou, defendendo que a única forma de garantir a sobrevivência da Ucrânia como nação soberana é sentar para negociar.

Reuniões com agências de risco e reformas estruturais

Em outro ponto importante da entrevista, Lula comentou sobre sua recente reunião com as principais agências de classificação de risco em Nova York. Questionado sobre o objetivo desses encontros, ele destacou a necessidade de as agências ouvirem diretamente do presidente brasileiro o que está acontecendo no país, sem depender apenas de informações do mercado financeiro. “Não precisa ouvir só a Faria Lima, ouça os trabalhadores e o presidente da República”, afirmou, em referência à região que concentra grande parte das instituições financeiras em São Paulo.

Lula fez questão de frisar os avanços econômicos do Brasil desde o início de seu mandato. Segundo ele, o mercado subestimou o crescimento do país, mas agora já reconhece uma previsão mais otimista, apontando para um crescimento de 3,5% em 2024. Ele também destacou a importância da recente aprovação da reforma tributária, algo que “parecia impossível”, e mencionou os investimentos bilionários em setores como a indústria automobilística, papel e celulose, alimentos e energia.

“É esse país, com todas essas marcas de estabilidade, que a gente está oferecendo”, declarou o presidente, enfatizando a necessidade de previsibilidade econômica e política para atrair mais investimentos. Lula ainda mencionou que, sob sua liderança, o governo está focado em não gastar mais do que tem, ressaltando a importância de fazer dívidas apenas para novos investimentos, não para custeio.

Avanços no acordo Mercosul-União Europeia

Em outro momento da coletiva, Lula foi questionado sobre o andamento das negociações do acordo entre o Mercosul e a União Europeia, além de seus recentes encontros com líderes internacionais, como o presidente francês Emmanuel Macron e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. Lula demonstrou grande otimismo em relação à assinatura do acordo e disse que o Brasil está pronto para fechar o tratado.

“Nunca estive tão otimista com o acordo União Europeia-Mercosul”, afirmou o presidente. Segundo ele, as negociações avançaram consideravelmente e agora a responsabilidade pela conclusão está nas mãos da União Europeia. “Durante 20 anos se jogava a culpa no Mercosul. Nós estamos prontos”, garantiu.

Para o presidente, a conclusão do acordo abre portas para novas parcerias estratégicas, não apenas com a Europa, mas também com países como a Índia e a China.

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