Niterói Invicta: a luta contra o lawfare e a defesa da democracia
Documentário revela bastidores da prisão de Rodrigo Neves e a resistência comunista que manteve Niterói firme diante de uma tentativa de golpe em 2018
Publicado 24/09/2024 19:34 | Editado 25/09/2024 05:04
Na última sexta-feira (13), o Cinema Reserva Cultural de Niterói foi palco da pré-estreia de Niterói Invicta, documentário dirigido por Igor Alves Pinto. A produção independente revela um capítulo ainda recente e pouco explorado da história política do Brasil: a prisão do então prefeito Rodrigo Neves, em 2018, e a subsequente tentativa de golpe através de um processo de lawfare – o uso das leis e do sistema jurídico como arma de perseguição política.
Em entrevista exclusiva ao Portal Vermelho, o diretor, advogado e professor universitário Igor Alves, revela o que motivou a realização do filme e as nuances por trás desse episódio. “A história da prisão de Rodrigo Neves foi pouco tratada, e a partir dos discursos dos parlamentares e das incongruências que observei, percebi que havia uma história importante a ser contada”, relatou Igor, que também é dirigente do Comitê Municipal do PCdoB em Niterói.
Uma história de resistência e luta democrática
O documentário narra a prisão de Rodrigo Neves sob a acusação de envolvimento em um esquema de corrupção no transporte público de Niterói. O prefeito ficou preso por 93 dias sem nunca ser ouvido pelas autoridades, e mesmo após sua soltura, não teve a oportunidade de depor até o encerramento do processo, em 2023, quando foi inocentado por falta de provas.
A obra destaca o papel central da Câmara Municipal nos acontecimentos, com três pedidos de impeachment sendo protocolados no mesmo dia da prisão de Neves. “Foi uma batalha pelo futuro de Niterói”, afirma Igor.
A sessão da Câmara é um dos focos do filme, com atenção especial aos discursos de figuras-chave, como o vereador Leonardo Giordano (PCdoB), que desempenhou um papel decisivo na estratégia de derrota do impeachment. O documentário também retrata como a união de forças progressistas foi essencial para que Niterói permanecesse “invicta” na defesa da democracia.
Igor Alves sobre a gênese do documentário
Durante a entrevista, Igor revelou o ponto de partida para o projeto do documentário e como sua vivência acadêmica influenciou essa decisão. “Embora seja advogado, minha trajetória acadêmica sempre esteve ligada à pesquisas empíricas sobre movimentos sociais e lutas por direitos, como o trabalho que fiz com o Grupo Tortura Nunca Mais. Essas experiências me fizeram perceber que nem sempre o Direito é capaz de responder às demandas sociais e é nessas lacunas que os juristas devem se debruçar com mais afinco.” Igor ainda explica que, ao observar as incongruências nos relatos sobre o processo de impeachment de Rodrigo Neves, enxergou uma história a ser contada. “Foi essa percepção que me levou a transformar esse episódio numa produção audiovisual.”
Igor diz que o trabalho de resgate histórico por meio do documentário não foi simples. “A memória não é só o que a gente lembra, mas também o que a gente esquece. E eu percebi que, com o passar de apenas seis anos, já havia divergências entre os relatos dos envolvidos”, comenta. Para ele, isso demonstra o quanto é urgente trazer à tona essa história, para que o acontecido não seja distorcido ou esquecido com o tempo.
Além de Rodrigo Neves, o filme reúne depoimentos de sua esposa, Fernanda Sixel, e de figuras políticas centrais na resistência ao impeachment, como o advogado Técio Lins e Silva, a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), além de vereadores de diferentes partidos que se posicionaram contra a tentativa de golpe.
O uso de lawfare e o contexto nacional
No centro da narrativa de Niterói Invicta está o conceito de lawfare, definido como o uso das instituições jurídicas para perseguição política. Este termo ganhou destaque no Brasil com os desdobramentos da Operação Lava Jato, especialmente com a prisão do ex-presidente Lula em 2018. Igor Alves busca, com o documentário, traçar paralelos entre a prisão de Lula e a de Rodrigo Neves, ambos os eventos, segundo ele, serviram de mecanismos para interferir no processo democrático.
Segundo Igor, um dos objetivos principais do documentário é “mostrar que uma perseguição política pode acontecer a qualquer momento”, e que isso pode afetar profundamente a vida pessoal e política de quem está envolvido. Ele conta que, como morador de Niterói há mais de 15 anos, não tinha plena consciência da dimensão do que havia acontecido com Rodrigo Neves e sua família até começar a mergulhar nas entrevistas e nos relatos pessoais. “Ouvir o relato de Fernanda Sixel sobre como a filha, grávida de sete meses, ia até a cadeia visitar o pai por ser advogada (…) tudo isso deu outra dimensão para aquele evento”, disse o diretor.
A resistência na Câmara Municipal
O diretor destacou a importância da resistência na Câmara Municipal durante o processo de impeachment, especialmente o papel do vereador comunista Leonardo Giordano, que apresentou a proposta de compensação – uma estratégia legislativa que unificou os pedidos de impeachment, obrigando os partidos adversários a dividirem uma tribuna.
“A estratégia de realizar a votação de maneira rápida (a prisão foi na segunda e o pedido apreciado já no dia seguinte) foi encabeçada pelos comunistas. Da mesma forma, um procedimento de apensamento, isto é, a junção dos pedidos de impeachment, fez com que o PSOL, PSL e o PSDB fossem obrigados a dividir a tribuna na defesa do impeachment, o que, por óbvio, gerou grande atrito no plenário. Essa iniciativa, segundo os relatos do filme e os vídeos da própria sessão da Câmara, também foi de iniciativa do Giordano”, conta. Essa manobra foi essencial para evitar que o impeachment de Neves fosse aprovado.
Segundo o diretor, uma das razões pelas quais o documentário é relevante agora é a proximidade das eleições em Niterói, onde os mesmos personagens daquela época – como Carlos Jordy, Bruno Lessa e Talíria Petrone – disputam a prefeitura. “A disputa de 2018 foi uma tentativa de abreviação das eleições que estão acontecendo agora. É importante resgatar esse episódio para entendermos o que está no jogo hoje”, pontua Igor.
Desafios na produção
A produção de Niterói Invicta trouxe enormes desafios. Para Igor, condensar horas de material, entrevistas e registros históricos em um documentário de 45 minutos sem perder a profundidade dos acontecimentos foi um dos mais complexos. “Minha maior dificuldade foi transformar as quase 8 horas de entrevistas, 9 horas de sessão da câmara e as muitas reportagens em um documentário de 45 minutos, de maneira que contase a história e não fica enfadonho”, confessa.
O diretor também relembra um dos momentos mais impactantes durante a produção: “Ver o advogado Técio Lins e Silva relatar como a esposa de Rodrigo, Fernanda Sixel, foi acusada pelo Ministério Público ‘por engano’ e só assumiu isso no dia do julgamento de maneira envergonhada, foi algo que realmente marcou”, reflete Igor.
Um legado para a cidade e para o Brasil
Niterói Invicta vai além de um simples documentário político. Para Igor Alves, trata-se de um esforço para que a memória da resistência democrática de Niterói seja preservada. O título, que faz referência à resistência histórica da cidade contra Saldanha da Gama em 1894, também simboliza a vitória contemporânea de Niterói contra a tentativa de golpe e o avanço da extrema-direita.
O filme, ainda que tenha uma abordagem autoral, oferece um importante registro da história recente de Niterói e se conecta com as discussões nacionais sobre lawfare e a defesa da democracia. Em tempos de polarização política, Niterói Invicta surge como uma lembrança de que a resistência política é possível, e que a luta pela verdade e pela justiça deve sempre ser mantida viva.
“O filme traz um pouco dessa mensagem, de acreditar que é sim possível fazer a diferença através da política. Não podemos deixar a luta para outros momentos. E Niterói, que passou por um processo similar ao da prisão de Lula e do ataque à democracia no Brasil, foi capaz de vencer e se permanecer como o título diz: invicta”, conclui Igor Alves.