Eleição municipal pode contribuir para uma nova visão de segurança pública
Processo de escolha de novos prefeitos e vereadores é oportunidade para mudar a concepção atual de segurança pública, ditada pela direita, e ampliar a participação dos municípios
Publicado 13/09/2024 20:00 | Editado 17/09/2024 08:31
Problema que afeta milhões de brasileiros há anos, a violência é um dos temas que sempre surgem no período eleitoral. Mas, em geral, o debate é contaminado pela visão autoritária e punitivista da direita, que tem sido hegemônica no Brasil e que ganhou novo impulso com a ascensão do bolsonarismo.
Nesse cenário, o pleito deste ano pode ser um ponto de virada para iniciar uma nova fase no debate sobre a segurança pública que leve em conta os direitos humanos e os problemas sociais, bem como a maior participação dos municípios.
Mesmo que, de acordo com a legislação vigente, a responsabilidade da segurança pública esteja direcionada aos estados e em parte à União, os municípios podem cumprir papel fundamental, principalmente na chave da prevenção, contribuindo para forjar essa nova visão.
“A Constituição, no seu artigo 144, trata da segurança pública, em sentido estrito, como atividade ligada à polícia. E delega aos municípios a formação de guardas para cuidarem de seus próprios públicos. Mas, a minha interpretação vai além”, diz José Carlos Pires, membro da coordenação da Associação dos Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania (ADJC) e ex-secretário de Segurança de Jundiaí (SP) entre 2013 e 2016.
Leia a primeira parte desta reportagem: Segurança pública precisa avançar para além da repressão e do encarceramento
Além do papel das polícias no artigo 144, argumenta Pires, “a Constituição traz a questão do direito social à segurança em seu artigo 6º, bem como estabelece o papel dos municípios e a sua capacidade de legislar, conforme o interesse local, no artigo 30. Soma-se a isso a Lei do Susp (Sistema Único de Segurança Pública), que coloca a segurança como dever e responsabilidade de todos — União, estados, Distrito Federal e municípios”.
Ele defende a articulação desses dispositivos legais para estabelecer parâmetros de atuação dos municípios na área da segurança pública e, ao mesmo tempo, a necessidade de desenvolver políticas de âmbito social para enfrentar a violência.
“É possível trabalhar, de um lado, na prevenção, combinando a atuação das guardas municipais com a dos órgãos que têm poder de polícia administrativa como os de fiscalização do comércio, do trânsito e de vigilância sanitária. E de outro lado, é preciso implementar políticas sociais, que também funcionam de maneira preventiva, em áreas como educação, saúde, assistência social, esporte, cultura e lazer. Esse conjunto de políticas, se bem aplicado no território, contribui para o enfrentamento da violência e da criminalidade”, aponta.
A concepção da socióloga da USP, Vanessa Orban, segue por esse mesmo caminho. “As cidades podem ser facilitadoras ou inibidoras do crime: áreas iluminadas, maior presença de um efetivo da Guarda Municipal nas ruas, uma dinâmica espacial com comércios que permitam o fluxo de pessoas e as estimulem a sair de casa e circular pelo espaço público, locais de lazer que sejam atraentes para as pessoas frequentarem até altas horas…Tudo isso se relaciona à atuação municipal que ajuda (e muito) na inibição dos crimes mais cotidianos, como assaltos e furtos de cidadãos”.
Abordagem policialesca
Principal cidade do Brasil, o que acontece em São Paulo pode influenciar outros municípios e, ainda, servir de termômetro para o que vem sendo pensado pelas forças políticas em disputa pelo país. Na capital paulista, o foco na repressão e na valorização da solução policialesca segue sendo a tônica dos candidatos alinhados à direita ou ao centro.
“Nestas eleições, observamos em São Paulo que todos os candidatos defendem o aumento do contingente da GCM (Guarda Civil Municipal). Dentre os de direita, verifica-se, ainda, a presença do ex-comandante da Rota, Ricardo Mello de Araújo (PL), na chapa do prefeito Ricardo Nunes (MDB) e da policial militar Antonia de Jesus na chapa de Pablo Marçal (PRTB)”, aponta Natasha Bachini, pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP).
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Além disso, acrescenta, “temos a reprodução do argumento e de jargões das disputas anteriores, como acontece com José Luiz Datena (PSDB), que afirma que ‘vagabundo não tem vez’, promete colocar fuzis nas mãos da GCM e defende ‘tolerância zero com usuários de drogas’. Marçal, de forma semelhante, defende uma equiparação da GCM à Polícia Militar. Por sua vez, Tabata Amaral (PSB) — que não se diz exatamente de direita — propõe gratificações para profissionais que atuem em áreas com maior índice de criminalidade, o que pode incentivar maior letalidade por parte polícia”.
Ela salienta, contudo, que no âmbito das campanhas digitais, esse tema ganha maior espaço e gera mais engajamento nos perfis dos candidatos à vereança, especialmente aqueles oriundos das forças de segurança pública, que postulam cada vez mais espaços institucionais. “Neles, verifica-se que a estratégia bolsonarista continua a ser reproduzida em âmbito local, a partir das críticas ao uso de câmeras corporais por policiais (tema do qual os candidatos ao Executivo fogem), e de menções positivas aos treinamentos e operações policiais, especialmente envolvendo membros da Rota”.
Conforme salienta Vanessa Orban, “para a extrema direita, a guerra é a saída para o alcance da paz. Na narrativa dela, não há como enfrentar o crime sem o confronto bélico. Então, armar a população é como preparar a todos para uma guerra de todos contra todos”.
Ela aponta que nessa chave discursiva, “a polícia ganha uma posição heróica e a legitimidade de ser a única apta a falar sobre crime. Esse discurso tem, cada vez mais, ganhado hegemonia entre todos os grupos sociais e isso inclui a esquerda. Outras opções de combate à criminalidade estão cada vez mais deslegitimadas e consideradas infrutíferas, mesmo sem terem sido implementadas. A prevenção nem é citada, ou quando é, está associada somente às câmeras de vigilância”.
A socióloga avalia que, de maneira geral, a esquerda “se eximiu de entrar nesse debate e disputar o direito de falar e opinar sobre segurança pública ao longo de anos, o que acabou colaborando na associação entre segurança pública e polícia. E uma vez que polícia é associada à ditadura militar, logo é assunto da direita e não da esquerda”. E completa observando que, durante décadas, “essa associação foi sendo construída no imaginário da população e do eleitor sem nenhuma contraposição”, de maneira que “quem não defende a polícia nas ruas perde voto”.
Perspectiva interdisciplinar
Para mudar essa situação e viabilizar uma proposta democrática e avançada da segurança pública efetiva, Natasha, do NEV, defende ser preciso uma perspectiva interdisciplinar, baseada nos direitos humanos.
“De todos os programas de governo, o de Guilherme Boulos é o que mais traz essa dimensão e se dedica a questões como a redução da violência contra a mulher a partir da descentralização da patrulha guardiã Maria da Penha, e ao caso da ‘cracolândia’, a partir do acolhimento humanizado às pessoas em situação de rua. A respeito desse último caso, Tabata apresenta um plano semelhante e ainda traz uma proposta interessante de programa de promoção à saúde mental para os agentes da GCM, ponto de suma importância, mas ainda pouco discutido”.
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Na avaliação de José Carlos Pires, que contribuiu para os debates em torno do programa de governo de Boulos, um ponto importante é garantir financiamento contínuo aos municípios. “Acho que o governo federal precisava ter uma relação mais direta com os municípios e criar mecanismos para financiar, de forma perene e sistêmica, a política de prevenção. Para isso, o município precisa participar, também de maneira perene e sistêmica, do Fundo Nacional de Segurança Pública e aplicar a política conforme diretrizes da União”.
Outro ponto que destaca é atuação da GCM junto à população. “A guarda pode fazer o patrulhamento no bairro e, no contexto do patrulhamento, estabelecer uma relação de proximidade com a comunidade, fazer a ronda escolar nas entradas e saídas das escolas naquele bairro, atuar na patrulha Maria da Penha, além de mediar conflitos. Muitas vezes, ao mediar um conflito, evita-se um desfecho pior, como um homicídio, ou como o recrutamento de um jovem para o crime organizado”.
O advogado conclui ressaltando que “quem tem capacidade e competência para fazer isso tudo são as administrações municipais, que estão perto da população local; não é o estado e, muito menos, a União”.