Enquanto prevalecer o circo, não ir a debates com Marçal é legítimo
Tática eleitoral de qualquer candidato majoritário – de situação ou oposição, de esquerda ou de direita – não pode ser uma camisa-de-força
Publicado 23/08/2024 08:32 | Editado 24/08/2024 09:13
Esvaziado e irrelevante, o debate entre candidatos à Prefeitura de São Paulo promovido na segunda-feira (19) causou desconforto nos organizadores – notadamente a revista Veja. Seis concorrentes foram convidados, mas três deles – o deputado Guilherme Boulos (PSOL), o prefeito Ricardo Nunes (MDB) e o apresentador José Luiz Datena (PSDB) – desistiram de participar.
Com um palco formado apenas por pleiteantes à terceira via – Tabata Amaral (PSB), Pablo Marçal (PRTB) e Marina Helena (Novo) –, era esperado que os dois últimos recorressem à baixaria para criticar as ausências. Termos como “fujões”, “arregões” e “covardes” inundaram a transmissão e as redes sociais. Até mesmo Tabata caiu na cilada e fez coro com a dupla.
O problema é que os três faltantes podem estar cobertos de razão. Se estragaram agora a festa midiática, é porque a própria grande mídia já vinha desvirtuando o processo eleitoral e a própria democracia ao darem guarida aos impostores da política.
Todo e qualquer político que concorre em eleição majoritária tem interesse em participar de atrações como debates e sabatinas. Para esses candidatos, é uma oportunidade de ganhar visibilidade, criar marcas, fortalecer posicionamentos, fazer acenos, incomodar adversários e pautar a imprensa. Os espectadores, por sua vez, conhecerão melhor as ideias e propostas de quem almeja governá-los.
Mas este é um cenário ideal que, no caso de São Paulo, está longe de se concretizar. Antes do fiasco transmitido pela Veja, houve dois outros debates – o da Band, em 8 de agosto, e o do Estadão, no dia 14. Se você assistiu a qualquer um deles, percebeu que a grande mídia parece não se incomodar com a transformação de um evento político num circo de misérias, fake news, calúnias e outros crimes.
Embora as regras de cada encontro sejam previamente discutidas e consensuadas entre as assessorias dos candidatos, não há nada que garanta sua aplicação. Em caso de “ofensas à honra” ou “acusações sem prova”, por exemplo, está previsto um direito de resposta – que, na prática, só é conquistado com insistência e sorte.
Para piorar, na campanha presidencial de 2022, a extrema direita introduziu um tipo diferente de sabotagem. Padre Kelmon, candidato fantoche do PTB ao Planalto, estava a serviço do então presidente Jair Bolsonaro (PL) e aparecia em cena apenas para provocar o favorito na disputa, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A terceirização da sujeira, do vale-tudo, não era uma novidade. Desde sempre há candidatos nanicos que, por razões invariavelmente pecuniárias, vão ao debate com a missão de antagonizar adversários mais competitivos. Mas o confronto se dava nos marcos do discurso, dentro das regras.
Em 2022, os acordos foram ainda mais rasgados. Além de xingar e provocar Lula, cabia a Padre Kelmon a tarefa de gritar e interromper as falas do petista, constrangê-lo, acossá-lo. No debate da TV Globo, as admoestações do apresentador William Bonner eram solenemente ignoradas – e, para todos os efeitos, Kelmon alcançou o objetivo de desestabilizar e prejudicar Lula.
Em 2024, Pablo Marçal deu um passo além nos debates em São Paulo. Franco atirador, sem compromisso nenhum com as regras estabelecidas, ele renunciou à tática da terceirização e decidiu, ele próprio, tumultuar o debate. Em tempos de “lacração”, pagou para ver – e viu que o crime (eleitoral) compensa.
Não bastaram as insinuações e denúncias dirigidas especialmente contra Boulos – a maioria delas sem direito de resposta. Embora candidatos não possam apresentar objetos no ar, Marçal exibiu, no debate do Estadão, uma carteira de trabalho. O estafe dos candidatos estava proibido de usar telefones celulares ou fazer gravações durante o debate – e foi exatamente isso o que a assessoria de Marçal fez ao longo de toda a transmissão.
O Estadão, promotor do debate eleitoral mais vil na história da capital paulista, nada fez para impedir tamanha degeneração. Nesta quinta-feira, com uma desfaçatez acima do tom, disse que faltar a debates “nem de longe é o caminho para lidar com um fenômeno que só tende a se expandir”.
Sobre sua própria responsabilidade e omissão, na condição de organizador do evento, o jornal não fez menção nenhuma. Se é circo ou carnaval, “deixa a festa acabar, deixa o barco correr”.
Enquanto isso, criminosas fake news disseminadas no debate são convertidas em shorts e viralizam para centenas de milhares – ou até milhões – de eleitores. Quem promove o debate tem duas opções: ou erradica esses novos expedientes antidemocráticos, ou se assumem como colaboracionistas.
Por fim, nem a vida nem a campanha eleitoral se resumem a aparições na TV. Com a overdose de encontros e sabatinas, o risco de uma certa banalização e de cansaço é real. Só na terça-feira (20), Boulos participou de uma sabatina às 11h50 na Record e às 15h30 na CNN. Se Caetano Veloso nos perguntava quem lê tanta notícia, é legítimo questionar quem vê tanta sabatina.
A tática eleitoral de qualquer candidato majoritário – de situação ou oposição, de esquerda ou de direita – não pode ser uma camisa-de-força. Há de haver racionalidade, bom senso e cálculo nas decisões. Evitar debates que contem com baixarias típicas de programas de auditório não é necessariamente um erro. Talvez seja o protesto mais legítimo para resguardar o sentido da política e a importância das eleições.